Joaquim Levy: Impostos e financiamento da economia
Em um país com grandes choques macroeconômicos, quanto mais alavancadas as empresas, maior a chance de elas se fragilizarem
Bússola
Publicado em 9 de julho de 2021 às 12h08.
Por Joaquim Levy*
O imposto da renda é visto como uma forma moderna e progressista de tributação. Ele permite modular o esforço tributário de cada um à sua capacidade econômica. No Brasil, a proporção da arrecadação total associada ao imposto de renda – das pessoas físicas (IRPF) ou jurídicas, i.e., das empresas (IRPJ) –, é bem menor do que na maioria dos países desenvolvidos.
Não surpreende que o imposto de renda fique atrás dos tributos indiretos no Brasil, porque ele não se adapta tão bem quando há grande dispersão na renda. É difícil tributar a renda dos muito ricos porque suas atividades são complexas e diversificadas, ou as dos mais pobres, porque ela é pouca e muitas vezes informal ou mesmo não monetária.
É nos países com uma classe média forte que o imposto de renda da pessoa física (IRPF) funciona melhor. O IRPF se tornou uma rotina para muitos brasileiros na virada dos anos 70 para 80, quando se criou um dos sistemas mais enxutos e efetivos de tributação da renda no mundo. Ao contrário dos EUA, grande parte dos contribuintes brasileiros fazem sua declaração sem auxílio de escritórios especializados, porque o empregador disponibiliza a informação e a declaração é simplificada.
A inflação afeta o IR e pode enfraquecer sua progressividade – obrigando uma atualização periódica da tabela de alíquotas por faixas de rendas (a última foi em 2015). Exatamente porque essa atualização reflete a inflação e seu provável efeito no aumento geral de arrecadação, a Lei de Responsabilidade Fiscal não exige que ela seja acompanhada de um aumento permanente de outra receita do governo (Art. 14 parag. 1).
Assim, se o governo tem folga em relação à meta primária, como parece ser o indicado no último relatório de gestão fiscal, a atualização da tabela não exige um pacote de medidas compensatórias.
À inflação também é atribuído um mecanismo particular do Brasil, que é deduzir o pagamento dos Juros sobre Capital Próprio (JCP) do lucro tributável das empresas. Até o Plano Real, deduzia-se a inflação do valor desse lucro, ou seja, expurgava-se o que se chamava lucro inflacionário para evitar pagar o IRPJ sobre um ganho fictício. Com o Plano Real, ficou proibida a indexação pela inflação, mas adotou-se a dedução do pagamento dos JCP até um limite proporcional à inflação. Reconheceu-se assim que parte do resultado distribuído apenas reflete o efeito da inflação e não um lucro de verdade, como lembrou recentemente o professor Eliseu Martins em artigo no Valor Econômico.
No conjunto de medidas tributárias recentemente anunciados pelo governo federal (PL 2337/2021), a tributação dos dividendos associada informalmente à atualização da tabela do IRPF, foi acompanhada da proposta de eliminação da dedução dos JCP do lucro tributável. Os dois assuntos, no entanto, não são relacionados.
Como bem lembra o deputado Sabino, relator do projeto na Câmara de Deputados e auditor fiscal por formação, deve-se sempre identificar com cuidado a entidade que está sendo tributada.
Nos dividendos, quem é tributado é o investidor, enquanto no caso dos JCP, quem faz jus à dedução é a empresa. Ou seja, não é óbvio que uma mudança na tributação do investidor (dividendos) tenha que ter reflexos na tributação da empresa. Até porque quem recebe os JCP já é tributado a 15% como se dá com outros rendimentos de renda fixa (por exemplo os fundos de investimento em renda fixa). Tampouco os JCP como mecanismo para evitar erosão do capital das empresas devem ser descartados só porque a alíquota do IRPJ caiu um pouco.
A tributação dos dividendos pode levar a uma maior alavancagem das empresas, dado que os juros pagos a empréstimos de terceiros são dedutíveis e pode ser mais interessante emprestar à empresa do que nela investir, especialmente se a alíquota do imposto sobre o dividendo é maior do que sobre os juros que receber.
A provável adaptação do investidor à mudança das regras é a razão por que a Receita Federal sempre foi cautelosa em reduzir a alíquota IRPJ. O que se perde no IRPJ pode não ser compensado pela tributação do dividendo, já que os agentes econômicos se adaptam a novas situações, como ensinava o prêmio Nobel Robert Lucas, professor da Universidade de Chicago. Daí não ser surpresa que, na recente proposta, a Receita Federal tenha oferecido um pacote tributário com medidas muito duras quando confrontada com a perspectiva de redução da alíquota do IRPJ.
A maior alavancagem das empresas brasileiras, apesar de talvez ser mais fácil hoje com o desenvolvimento de mercados de capital e a robustez do sistema bancário brasileiro, não é imune a riscos. Em um país com grandes choques macroeconômicos, variação de câmbio, risco no suprimento de energia etc., quanto mais alavancadas as empresas, maior a chance de elas se fragilizarem.
Há alguns setores da economia nos quais o risco de alavancagem excessiva pode ter consequências gravíssimas. O setor bancário é o principal deles. Por isso, o governo exige um capital mínimo dos bancos. Ou seja, esse é um setor que não pode se adaptar a uma maior tributação mudando a relação entre sua dívida (os depósitos dos clientes) e seu capital.
Assim, a consequência mais provável do fim da dedução dos JCP da base do lucro tributável poderá ser uma diminuição da capacidade dos bancos emprestarem. Os bancos não poderem irrigar mais a economia pode não ser uma boa notícia quando o país precisa crescer e, como notamos recentemente, é urgente incentivar o investimento para que ele aumente rapidamente.
Texto publicado originalmente no site O Especialista
*Joaquim Levyé engenheiro naval pela UFRJ, com mestrado em economia pela FGV e doutorado em economia pela Universidade de Chicago. É diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Entre outros cargos, integrou o FMI, foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda; economista-Chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e secretário do Tesouro Nacional. Foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, diretor do Banco Mundial e presidente do BNDES.
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