Globalização em terra plana
Coluna semanal do analista Márcio de Freitas comenta os temas mais debatidos entre os poderes em Brasília
Mariana Martucci
Publicado em 23 de setembro de 2020 às 16h40.
Última atualização em 23 de setembro de 2020 às 16h53.
As Nações Unidas começaram a nascer ainda durante a Segunda Guerra Mundial. Formulada para frear os ímpetos belicosos de alguns países, criar mecanismos de contenção a confrontos e estabelecer instâncias de negociação para evitar novas guerras generalizadas. Mesmo com pequenas derrotas em batalhas significativas, a ONU tem vencido a luta pela paz há 75 anos.
O papel dessa reunião de nações em Nova York é justamente esse. Falar a esse público tem de ser entendido como uma busca pelo consenso mínimo, apesar de tantas diferenças étnicas, regionais, religiosas, culturais e econômicas. É uma babel que se entende pelo instinto de sobrevivência da raça humana.
Um dos pais da ONU foi Winston Churchill, que liderou o governo britânico no enfrentamento do terrorismo estatal de Adolf Hitler. Ao lutar para sobreviver, proteger sua ilha e seu povo, Churchill se uniu ao presidente dos Estados Unidos Franklin D. Roosevelt e ao soviético Josef Stalin, a quem chamava de urso. Teve de suportar também Charles De Gaulle, o irascível líder mobilizador do que restava de resistência francesa.
Essas uniões momentâneas geraram boas tiradas por parte do primeiro-ministro inglês. “Se Hitler invadisse o inferno, eu faria alguma menção favorável ao diabo na Câmara dos Comuns”, disse certa vez. Se falava de seu abraço ao urso comunista, não se pode ter certeza.
Ao perder a paciência com o inflexível De Gaulle, mandou essa: "Ouça! Eu sou líder de uma nação forte e invicta. E, no entanto, todas as manhãs, quando acordo, meu primeiro pensamento é como poderei agradar ao presidente Roosevelt e meu segundo pensamento é como poderei cativar o marechal Stalin. Sua situação é muito diferente. Por que, então, seu primeiro pensamento ao acordar é como desafiar britânicos e americanos?” Não adiantou muito, pois o francês sempre foi um prato intragável para o inglês.
O pragmatismo permite conseguir aliados para os bons momentos e para superar a luta pela sobrevivência nas crises. É uma lição que não se notou no discurso de Donald Trump, o presidente dos Estados Unidos. Talvez a gênese seja o próprio isolacionismo dos Estados Unidos, surgido de 13 colônias autogeridas e, em certo sentido, abandonadas à sua própria sorte na fundação do país.
Trump falou na tribuna mundial da ONU para um público votante em 3 de novembro nas eleições presidenciais. São moradores de pequenas cidades e condados, onde há uma maioria de brancos de classe média, mas cujos empregos migraram para outros países e as oportunidades de futuro não são claras como foram no passado. Ao perderem perspectiva, primeiro culparam o Nafta, tratado com o Canadá e o México.
Hoje miram a China, onde o crescimento econômico robusto dos últimos anos criou uma classe média maior que toda população americana. O país se isola e renega as regras limitadoras de atividades industriais poluentes ou busca barrar o livre comércio que já fez dos Estados Unidos o líder mundial no desenvolvimento econômico. Daí Trump bater na China, com acusação de espalhar o coronavírus pelo mundo. Fechou-se ao mundo para tentar ficar na Casa Branca e terraplanou a globalização.
O líder Xi Jinping fez caminho inverso. Pregou a paz. Quase parecia um democrata a apoiar os protestos em Hong Kong. Defendeu a colaboração para superar o Sars-CoV-2, prometeu ajuda financeira para superar a pobreza em outros países, propôs a colaboração entre povos, emulou o intercâmbio mundial no comércio. Xi abriu as portas da China ao mundo com boa vontade para realizar negócios e efetivar parcerias, enquanto concentra cada vez mais poder em suas próprias mãos.
Seria interessante ver a reação de Churchill a esses discursos tão deslocados no tempo e na história. A China há 500 anos se fechou para o mundo e destruiu sua frota naval para se isolar dos bárbaros; agora se abre. E os Estados Unidos, que nasceram há meio milênio e se tornaram o porto seguro para todos os povos em busca de liberdade, erguem muros para fechar suas fronteiras.
Perpassa todo esse comportamento a discussão sobre o futuro da humanidade. A ONU tem a missão de defender nossa sobrevivência. Se, no passado, a guerra era um inimigo óbvio a ser evitado, hoje a tensão é por preservar o planeta. O líder chinês lançou o desafio de enfrentar o problema, até porque sabe ser a China o país com as maiores emissões de gás carbônico na atmosfera. Xi prometeu ao mundo mudar completamente esse quadro até 2060. O passado recente chinês no processo de industrialização recomenda que se leve a sério o discurso na ONU.
É proposta uma revolução ambiental sobre a revolução tecnológica vivida neste início de século 21. É bom prestar atenção nesta agenda. Ela impacta todos, mas também importa por trazer mudanças no processo produção nos próximos anos, nas formas de gerar energia, de transporte e de abastecer cidades. Não se pode negar o problema e enterrar a cabeça na areia enquanto o fogo arde em volta de nossa sociedade ou fugir de carro para paraísos artificiais a queimar combustível fóssil.
O tema do meio ambiente será onipresente nos próximos anos. É agenda do futuro, da sobrevivência da raça humana. E, nessa luta, o único caminho é ser pragmático e buscar aliados. Mesmo que isso signifique abraçar algum urso panda.
*Analista Político da FSB