Brasil

Rodovias federais foram responsáveis por 30% da propagação da covid-19

Estudo liderado pelo professor Miguel Nicolelis mostra que falta de restrições nas grandes cidades, rodovias e desigualdade na distribuição de leitos levaram coronavírus a se espalhar pelo Brasil

Trânsito na Rodovia Castelo Branco, em São Paulo (SP), em dezembro de 2020: rodovias, que tiveram poucas restrições nas quarentenas, ajudaram a espalhar o coronavírus pelo país (Mineto/Estadão Conteúdo)

Trânsito na Rodovia Castelo Branco, em São Paulo (SP), em dezembro de 2020: rodovias, que tiveram poucas restrições nas quarentenas, ajudaram a espalhar o coronavírus pelo país (Mineto/Estadão Conteúdo)

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Da Redação

Publicado em 21 de junho de 2021 às 16h02.

Última atualização em 21 de junho de 2021 às 16h08.

As maiores metrópoles brasileiras, sobretudo a cidade de São Paulo, e as rodovias federais foram as principais responsáveis por fazer com que o coronavírus se espalhasse para o restante do Brasil no começo da pandemia.

É o que aponta um novo estudo publicado na revista científica Nature (leia na íntegra), assinado pelos pesquisadores brasileiros Miguel Nicolelis (Universidade Duke), Rafael L. G. Raimundo (Universidade Federal da Paraíba), Pedro S. Peixoto (Universidade de São Paulo) e Cecilia S. Andreazzi (Fundação Oswaldo Cruz).

Por meio de modelagem matemática, os pesquisadores buscaram entender como a covid-19 — que chegou ao Brasil por meio de aeroportos e passageiros vindos do exterior — se espalhou rapidamente para os recantos no interior do país nos primeiros seis meses da pandemia.

Segundo a análise, a covid-19 chegou a todo o Brasil majoritariamente por meio de três frentes:

  • Grandes cidades como centros disseminadores do vírus, notadamente a cidade de São Paulo;
  • As principais rodovias federais interligando o país e sem restrições de deslocamento na pandemia;
  • A desigualdade na distribuição de leitos de UTI, que fizeram com que pacientes graves fossem transferidos para outras cidades.

Com base nos resultados do estudo, os pesquisadores avaliam que faltou ao país uma quarentena nacional e maior controle nas rodovias de modo a restringir o espalhamento dos casos oriundos dos "super centros disseminadores" (os super spreaders, no termo em inglês).

De São Paulo para o Brasil

Desde os primeiros casos de covid-19 registrados no Brasil, ainda em fevereiro de 2020, tudo aconteceu em um piscar de olhos: poucos meses mais tarde, o Brasil tinha uma das piores taxas de mortalidade pela doença no mundo.

Em setembro, seis meses após o começo da pandemia, o Brasil já era o segundo no mundo com mais mortes, atrás somente dos EUA, e superando países muito mais populosos e mais pobres, como a Índia.

O estudo mostra que, naquelas semanas de março, São Paulo foi o grande polo por meio do qual o coronavírus se espalhou. A cidade de 12 milhões de habitantes chegou a responder por 80% da disseminação do vírus nas primeiras semanas da pandemia.

As cidades de Brasília, Rio de Janeiro e cinco capitais do Nordeste (Fortaleza, Recife, Salvador, São Luís, e João Pessoa) também foram polos disseminadores importantes no começo da crise, embora em menor grau se comparadas a São Paulo. Outras capitais também contribuíram para espalhar a doença em suas próprias regiões, ainda que com parcela baixa de disseminação no âmbito nacional.

Mesmo com o passar do tempo, e com a covid-19 chegando a mais lugares, São Paulo seguiu sendo responsável por grande parte da disseminação. "No período até 11 de junho, a contribuição de São Paulo nunca caiu abaixo de 30%", escrevem os autores.

Rodovias sem restrições

A grande centralidade de São Paulo no processo de disseminação da covid-19 no Brasil não se deve só à numerosa população, aponta o estudo, mas à grande conexão com as principais rodovias e à alta concentração de leitos de UTI. Esses dois fatores também foram classificados como disseminadores centrais do coronavírus.

No caso das rodovias, 26 rodovias federais foram responsáveis, sozinhas, por 30% da disseminação de casos de covid-19 nos primeiros meses, aponta o estudo. O número deve ser ainda maior, estimam os pesquisadores, se analisadas as rodovias estaduais e municipais.

Nesse cenário, pesquisadores escrevem que os governos nos três âmbitos federativos deveriam ter implementado estratégias para contenção da disseminação dos casos, como restrição às movimentações não-essenciais em rodovias, como viagens pessoais.

Quase nenhuma região implementou esse tipo de restrição, com exceção de algumas cidades ou estados que fizeram um lockdown total, com restrição quase completa de atividades não-essenciais.

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Além disso, uma vez espalhados os casos de covid-19 para o interior por meio das estradas, a concentração de leitos de UTI nas grandes cidades piorou o cenário, aponta o estudo.

É um problema antigo do Brasil: mesmo antes da pandemia, a EXAME mostrou que só 10% das cidades brasileiras atendem a uma recomendação pré-pandemia da Organização Mundial da Saúde, de ter três leitos de UTI para cada 10.000 habitantes, segundo estudo da plataforma Bright Cities. Quando os dados foram coletados, mais de 50% dos leitos brasileiros estavam no Sudeste.

Na pandemia, devido à essa distribuição desigual de leitos de alta complexidade ao redor do país, os pacientes em situação grave tiveram de ser transferidos para as grandes cidades, reforçando o caráter transmissor desses lugares.

Efeito bumerangue

O quadro levou ao que Nicolelis e seus co-autores chamaram de "efeito bumerangue": pessoas contaminadas das capitais levaram a doença para o interior e, com mais infectados graves nesses lugares, sem leitos de UTI, os pacientes foram trazidos de volta para as capitais.

São Paulo, por exemplo, recebeu pacientes de 464 cidades com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), grupo no qual boa parte dos pacientes têm se mostrado infectado por covid-19). A segunda capital com maior fluxo foi Belo Horizonte (pacientes de 351 cidades), seguida por Salvador (332 cidades).

O mesmo vale para cidades médias com boa estrutura hospitalar, como Ribeirão Preto e Campinas, no estado de São Paulo. "Nós observamos que a distribuição das mortes relacionadas à covid-19 se sobrepõe ao equivalente espacial da distribuição de leitos de UTI ao redor do Brasil", escrevem os autores.

Para os pesquisadores, para além da resolução gradual dos problemas de inequidade no SUS, como a distribuição de leitos, faltou ao Brasil implementar estratégias que evitassem com que o vírus seguisse se espalhando pelo país.

Embora o estudo diga respeito apenas ao período até setembro, o cenário de descontrole dos centros espalhadores de coronavírus lançou as bases para a tragédia que viria em 2021, com a nova cepa P1 (também chamada de gama) fazendo o número de mortes superar as 3.000 vítimas diárias.

Com o número de casos escalando, o Brasil chegou também neste fim de semana à triste marca de 500.000 mortos pela covid-19. Nesse ritmo, o país deve nos próximos meses superar os EUA e se tornar o país com o maior número de vítimas da covid-19 em todo o mundo.

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