Damares Alves: "Isso aqui vai dar tão certo que vamos ficar 4, 8, 12 anos", disse a ministra em evento da direita em SP (ONU TV/Reprodução)
Clara Cerioni
Publicado em 20 de abril de 2019 às 08h00.
Última atualização em 20 de abril de 2019 às 08h00.
Aos três meses do governo Bolsonaro, a Comissão de Anistia ainda não se reuniu formalmente depois da cerimônia de posse. Conforme a Pública apurou, o primeiro encontro está sendo agendado para o final de abril.
A ausência de reuniões com os conselheiros (como são chamados os membros da comissão) não impediu que a ministra Damares Alves, titular do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos – ao qual se vincula a comissão – assinasse 367 portarias, até o final de março, decidindo sobre pedidos de anistia. O resultado: apenas oito pedidos foram aprovados, contra 271 negados e 88 arquivamentos.
Questionada pela reportagem, a assessoria do Ministério disse que os pedidos já haviam sido avaliados pela gestão anterior e enviou uma nota em que Damares afirma que “é bom deixar claro que não queremos criminalizar as pessoas que, dentro da lei, receberam seu benefício. Há anistiados que realmente tinham direito. Mas aquilo que permanece sob suspeita nós iremos rever, com toda a certeza”, diz.
A Pública apurou também que após a dança de cadeiras promovida por Damares, que manteve apenas cinco dos membros antigos da Comissão, o grupo conta atualmente com apenas um representante de perseguidos políticos – ainda que o decreto da ministra defina o mínimo de dois.
Em 27 de março, após ter recebido críticas do Ministério Público Federal sobre a paralisia da Comissão, Damares publicou as portarias 376 e 378, que alteraram o seu regimento. Além de dispensar a maioria dos antigos membros, a ministra aumentou a quantidade de conselheiros no órgão para 27.
A reportagem traçou um perfil do grupo empossado por Damares, no qual se destaca o número de militares: seis conselheiros. Além disso, o presidente da Comissão de Anistia, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas, chefiou o gabinete de Flávio Bolsonaro (PSL) na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), já advogou na defesa do presidente Jair Bolsonaro (PSL) em acusação de homofobia e é autor de ações contra concessão de anistia a perseguidos políticos no estado do Rio de Janeiro.
Inicialmente nomeado para a assessoria militar do governo, o advogado João Henrique Nascimento de Freitas é agora assessor especial da Vice-Presidência da República. Lotado em cargo de confiança e com uma remuneração básica de aproximadamente R$ 13,6 mil, Freitas foi um dos assessores que acompanhou Mourão na visita ao vice-presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, neste início de abril.
As relações com a família Bolsonaro, porém, são mais antigas. Entre 2005 e 2007, quando chefe de gabinete de Flávio Bolsonaro na Alerj, então deputado pelo Partido Progressista (PP), Freitas foi advogado de Flávio em uma ação de inconstitucionalidade movida por Flávio contra as cotas nas universidades estaduais do Rio para negros, indígenas, alunos da rede pública e pessoas com deficiência.
Antes de ser negada, a ação chegou a obter uma liminar que suspendeu, durante um mês, a lei de cotas no estado. As cotas beneficiam também filhos de policiais civis e militares e de outros agentes de segurança que foram mortos ou incapacitados em razão do serviço.
Freitas foi também o advogado de Flávio em uma representação de inconstitucionalidade contra a reserva de 20% das vagas dos cargos em comissão nos órgãos da prefeitura do Rio para afrodescendentes. O advogado também esteve em uma representação de inconstitucionalidade contra mudanças na previdência dos militares em 2004 e em outra representação, a favor do direito de greve de servidores da segurança pública no Rio. Freitas trabalhou na Alerj como assessor até 2012.
Jair Bolsonaro, então deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro, também foi defendido por Freitas. O advogado atuou em um processo por danos morais de diversos grupos LGBTs após declarações de Bolsonaro ao CQC em 2011.
Apesar da atuação junto à família Bolsonaro, foram os “voos solo” de Freitas que lhe deram popularidade.
Ele processou o governo do Rio contra a lei de concessão de anistia estadual, de 2001. O advogado alegou ser inconstitucional a reparação ser feita pelo Estado e pediu a suspensão do mecanismo no Rio de Janeiro. A ação foi negada pelo Tribunal de Justiça.
Freitas foi o autor da ação para suspender o pagamento da anistia à viúva do ex-guerrilheiro e capitão do Exército Carlos Lamarca, que desertou das Forças Armadas para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
A ação foi aceita provisoriamente pela 21ª Vara Federal do Rio de Janeiro, que suspendeu a indenização a Maria Pavan Lamarca e exigiu o ressarcimento à União dos valores já pagos. Segundo reportagem do G1, a ação permanece aberta e os pagamentos continuam suspensos.
Além disso, Freitas moveu ação contra 44 camponeses vítimas de tortura durante a Guerrilha do Araguaia, que haviam sido anistiados pela comissão, então no Ministério da Justiça. Na ação, o advogado afirmou que havia “vícios graves” e “influência política na decisão” na concessão de anistia. O pagamento foi suspenso em 2010.
Freitas também foi assessor jurídico do Círculo Militar da Praia Vermelha, histórico clube de lazer de militares no Rio de Janeiro.
A Pública questionou Freitas se as suas posições levariam a algum tipo de conflito com o papel de presidente da Comissão de Anistia, mas não obteve resposta até a publicação da matéria. A reportagem também questionou Freitas sobre quais ações já havia desempenhado na Comissão até agora.
O general do Exército Luiz Eduardo Rocha Paiva é, talvez, uma das nomeações mais polêmicas. Em 2012, ganhou destaque pela entrevista concedida a Miriam Leitão na qual questionou as torturas sofridas pela ex-presidente Dilma Rousseff e a necessidade da Comissão da Verdade. Em seu discurso, o general diz que o Exército não precisava pedir perdão pelo que já aconteceu e que, se fosse existir uma comissão, ela também deveria analisar os ataques de guerrilheiros.
Questionado pela jornalista sobre assassinatos célebres durante a ditadura, como Vladimir Herzog e Rubens Paiva, o general levantou dúvidas sobre a real participação do Exército nesses crimes e a falta de provas. Na Revista Sociedade Militar, Rocha Paiva publicou um artigo intitulado “Miriam e Globo Micos”, no qual afirma que “os militantes jornalistas da Globo são mentes condicionadas pela lavagem cerebral a que é submetida a maioria da grande mídia ou pelo servilismo dos que trocam ética e valores morais e profissionais por interesses financeiros”, além de relativizar os problemas econômicos do regime militar.
Também conselheiro da comissão, o coronel da infantaria paraquedista da Aeronáutica Cláudio Tavares Casali ganhou destaque público, pela primeira vez, ao ser um dos responsáveis pelas operações da missão das Nações Unidas no Haiti, em 2006.
Depois, em 2010, foi responsável pela Força de Pacificação na implantação das UPPs nos morros do Alemão e da Penha. Em 2018, o nome do coronel ganhou os veículos de comunicação por seu artigo que conta a história do slogan de Bolsonaro, “Brasil, Acima de Tudo” (sic).
O coronel da Aeronáutica Sérgio Paulo Muniz da Costa comandou o 27º Grupo de Artilharia de Campanha em Ijuí, Rio Grande do Sul, posto que o vice-presidente Hamilton Mourão também ocupou. Doutor em ciências militares, ele afirmou em artigo no Diário do Comércio que a realidade política brasileira era ainda pior do que se imaginava antes do impeachment e que “não há lideranças institucionais, em nenhum dos poderes da República, para fazer face às cobranças e demandas da sociedade brasileira”.
Já o tenente-coronel aviador Diógenes Camargo Soares tem um histórico mais organizacional. Um dos seus cargos foi de chefe da assessoria jurídica do Comando-Geral do Pessoal (Comgep) da Aeronáutica.
Ainda nesse cargo, Camargo Soares participou de um seminário sobre pessoas transexuais nas Forças Armadas e destacou que suas premissas valorizam o desempenho, “não sendo fator relevante a opção sexual ou qualquer outra convicção de gênero de cada um de seus integrantes”.
A lista de militares inclui ainda o tenente-coronel da Polícia Militar de Santa Catarina Dionei Tonet e o cabo da Marinha Leandro do Nascimento Rodrigues.
Outros membros recém-empossados da Comissão de Anistia também têm ligação com o Exército e com o Ministério da Defesa. O juiz Aécio de Souza Melo Filho, do Tribunal Regional Estadual do Pernambuco, ganhou um “diploma de colaborador emérito do Exército Brasileiro” em 2017.
Os requisitos para ganhar o diploma são: possuir “elevado conceito” na classe e na comunidade à qual pertence e ter realizado algo em prol dos interesses do Exército “e seu bom nome”. Já Sávio Luciano de Andrade Filho é servidor no Ministério da Defesa desde 2007. Sua função é de assessor no gabinete do ministro general do Exército Fernando Azevedo e Silva.
Fora os militares, a maior parte dos membros da nova comissão são advogados. Diogo Palau Flores dos Santos, Maria Vitória Barros e Silva Saraiva, Fernando Ferreira Baltar Neto e Joanisval Gonçalves são da Advocacia-Geral da União (AGU) ou consultores do governo. José Roberto Machado Farias é advogado e chefe da assessoria jurídica do vice-presidente Hamilton Mourão.
Já Júlio César Martins Casarin faz parte do movimento “Vem Pra Rua Sampa” e tentou entrar na política como vereador em 2016, candidatando-se pelo Partido Novo em São Paulo. O advogado entrou com algumas ações contra a ex-presidente Dilma Rousseff, uma delas para impedir que o ex-presidente Lula assumisse como ministro.
Além dessa ação, após o impeachment de Dilma Rousseff, Casarin entrou na Justiça novamente, dessa vez para impedir que a ex-presidente usufruísse do Palácio da Alvorada e jatos da Força Aérea Brasileira (FAB), assim como recebesse vencimentos. Nos dois casos, Casarin teve as ações negadas pela Justiça.
As mudanças na Comissão de Anistia e a nomeação dos integrantes militares foram criticadas por representantes de anistiados políticos e pelo Ministério Público Federal (MPF). Em abril, Deborah Duprat, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, recomendou a revogação da portaria que nomeou os novos membros.
Segundo o órgão, a nomeação de representantes das Forças Armadas que são abertamente contra os objetivos da Comissão torna incerta a “imparcialidade e a independência dos trabalhos”.
Em nota, a procuradora também afirma que “a presença de integrantes das Forças Armadas em comissões com esse propósito tem o potencial de gerar visão distorcida no processo integral de resgate da memória oficial”. O órgão criticou também o fato de a revisão das decisões da Comissão de Anistia ser feita pelo corpo jurídico da União, órgão que defende os interesses do Estado brasileiro.
No dia 20 de março, Damares fez uma reunião para discutir a auditoria prometida por ela mesma nas anistias já pagas pela pasta. No encontro, foram convidados técnicos da AGU, Controladoria-Geral da União e Aeronáutica. Ainda não há resultados da auditoria.
Desde o governo de Michel Temer (MDB), defensores de direitos humanos têm questionado o direcionamento da Comissão de Anistia. Um dos primeiros atos da gestão Temer, em setembro de 2016, foi nomear 19 novos integrantes para a comissão.
Também no governo do ex-presidente, a comissão interrompeu o ritual de pedir desculpas em nome do Estado brasileiro aos que eram considerados perseguidos pela ditadura. A decisão foi tomada durante a gestão do último presidente da comissão, Paulo Henrique Kuhn, advogado da AGU.
*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública