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Nem os bons conseguem exportar

O Brasil tem alguns dos melhores pecuaristas do planeta. E eles pagam caro pela irresponsabilidade dos maus produtores e pela inépcia do governo

Hiil, na fazenda Jacarezinho: está na hora de arrumar a casa
DR

Da Redação

Publicado em 16 de outubro de 2010 às 12h46.

O O Brasil do mal - entenda-se, aí, parte dos pecuaristas, dos frigoríficos e várias áreas do governo - foi responsável por fraudar e facilitar fraudes do sistema de rastreamento que o país se comprometeu a seguir. O controle exigido pela União Européia consiste na identificação de cada animal com um número que funciona como um RG. Atrelado a esse RG deve ser criado um prontuário com informações da vida do animal, como as fazendas por onde passou e as vacinas que tomou. O objetivo do sistema - cujo armazenamento de informações e fiscalização devem ser feitos pelo Ministério da Agricultura - é permitir que, caso se constate um problema num bife vendido na Europa, seja possível localizar a fazenda de onde saiu o animal e impedir o alastramento de doenças. Uma série de falhas na implantação do programa e a falta de seriedade com que foi encarado resultaram no vexame pelo qual o país está passando há um mês perante o mundo, com episódios como o vai-e-vem de listas de fazendas e o bate-cabeça protagonizado pelo governo.INGLÊS IAN DAVID HILL deu graças a Deus pelo embargo da União Européia à carne brasileira, em vigor desde 1o de fevereiro. Não, Hill não está defendendo seus patrícios nem é adepto do protecionismo do Velho Mundo - que tenta barrar as importações para proteger produtores incapazes de competir com o preço da carne produzida no Brasil. Seu raciocínio é outro: "Quem sabe, agora, pecuaristas, donos de frigoríficos e o governo brasileiro comecem a arrumar a casa para conseguirmos vender para o mundo inteiro", diz. Aos 55 anos, 31 deles vivendo no Brasil, Hill preside a Agropecuária Jacarezinho, dos irmãos Alexandre e Pedro Grendene, conhecidos empresários do setor de calçados. Administra duas enormes propriedades, que somam 72 000 hectares de terra e abrigam 36 000 cabeças de gado nelore. As fazendas, uma em Araçatuba, no interior de São Paulo, e outra em Cotegipe, na Bahia, são reconhecidas como modelares na criação de gado no país. Mesmo assim, há quase três anos a Agropecuária Jacarezinho não consegue exportar para a Europa a carne in natura (ou seja, que não é industrializada) produzida na fazenda de Araçatuba. O motivo? Desde 2005, a União Européia suspendeu a importação desse tipo de carne de fazendas paulistas, porque São Paulo faz divisa com Mato Grosso do Sul e Paraná, estados que registraram focos de febre aftosa naquele ano. Agora, foi a vez de a fazenda baiana também parar de vender para a Europa, já que o país inteiro foi embargado depois que auditores europeus constataram falhas no sistema de rastreamento do gado brasileiro. "A situação da Agropecuária Jacarezinho é apenas mais um triste exemplo do Brasil do bem que sai prejudicado pelo Brasil do mal", afirma o consultor César de Castro Alves, da MB Agro, especializada em agropecuária.

ESSE TIPO DE ERRO ERATUDO o que os produtores europeus esperavam para fortalecer seu lobby protecionista contra o Brasil. Nos últimos tempos, a indústria brasileira de carne agigantou-se. Em 12 anos, a fatia de mercado do país na totalidade das exportações mundiais passou de 4% para 31%. O Brasil bateu todos os concorrentes e, há dois anos, assumiu a liderança mundial do setor à frente da Austrália. Hoje, o custo de produção da carne brasileira corresponde a 30% do custo médio na Europa. No jogo da concorrência, apela- se para tudo, até para o YouTube, site na internet onde está disponível um vídeo produzido por uma publicação da Associação dos Fazendeiros Irlandeses. No vídeo, os irlandeses mostram cenas do que seria uma fazenda brasileira que comete uma série de irregularidades. O repórter mostra frascos de hormônios supostamente aplicados no gado, prática banida pela União Européia. Também exibe vacinas mal acondicionadas, animais sem brincos identificadores, além de trabalhadores vivendo em casas precárias. Em certo ponto do vídeo, o repórter aparece na fronteira do estado de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul, impedido desde 2005 de exportar para a Europa em razão de ter registrado casos de febre aftosa, e afirma que o gado pode passar livremente de um estado embargado para o outro (até então) livre. E arremata: "O rastreamento de gado no Brasil é pura ficção". Não é possível saber se o vídeo foi fraudado ou se os europeus de fato encontraram os problemas. O certo é que problemas existem, assim como existe o protecionismo por motivos econômicos.


 Na fazenda de Araçatuba da Agropecuária Jacarezinho, visitada por EXAME, o rastreamento do rebanho começou no início dos anos 90, não por exigência do governo, mas como procedimento obrigatório do sistema de melhoramento genético. Para chegar a exemplares como o touro Kulal, que tem mais de 15 000 filhos analisados, é necessário formar um verdadeiro dossiê de cada animal. Sabe-se quem é o pai, a mãe, os avós, o que ele comeu, quando e quais vacinas e remédios tomou e quanto pesou em cada fase da vida. Esse sistema de trabalho possibilitou que a Agropecuária Jacarezinho fosse a primeira do país a rastrear 100% do rebanho, em 2005. Lá, tudo é controlado. Desde a semente e o herbicida utilizados na plantação do sorgo, que serve de ração aos animais, até as instalações onde são acondicionados os medicamentos. Os vaqueiros estão sempre munidos de cadernetas em que anotam todas as intervenções realizadas no gado, que pode ser uma pesagem ou um procedimento de inseminação artificial. Painéis afixados nos currais funcionam como lembretes das normas que os funcionários devem seguir no caso de quebra de uma agulha durante uma vacinação, por exemplo. "Não se pode correr o risco de aparecer um pedaço de agulha em um bife produzido por um dos nossos animais", afirma o veterinário Luiz Fernando Boveda, gerente comercial da empresa.</p> 

Outros membros da elite brasileira da carne também ficarão no prejuízo. Tudo indica que os europeus cansaram de esperar que a indústria brasileira e o governo cumprissem o acordo firmado há mais de cinco anos. "Esse embargo é pedra cantada há anos", diz Cesário da Silva, presidente da Sociedade Rural Brasileira. "Em vez de levar o assunto a sério, a indústria e o governo empurraram a questão com a barriga e acabaram dando munição ao inimigo." Um dos erros do sistema de rastreamento brasileiro está em sua origem. Ao se comprometer com a União Européia a rastrear o gado para exportação, o governo criou a figura da certificadora - empresa autorizada pelo Ministério da Agricultura a auxiliar as propriedades a se adaptar às novas regras e, de certa forma, ajudar na vistoria das fazendas. É a certificadora, contratada pelo pecuarista, que faz toda a comunicação com o ministério. Hoje, sabe-se que o credenciamento e a fiscalização das certificadoras foram um fiasco. Até empresas de pet shop foram credenciadas. Diante da crise deflagrada pelo embargo, o governo apertou a fiscalização sobre essas empresas, o suficiente para fechar 20 das 71 da lista.


Nos últimos dias, houve quem defendesse que o governo brasileiro rebatesse o embargo com retaliações à Europa. "É uma loucura desprezar o mercado europeu", afirma Ramalho Silva. "Além de pagar muito mais que os outros mercados, seu padrão de qualidade é referência para outros países." O europeu paga entre 20 000 e 25 000 dólares a tonelada de filé mignon, enquanto a média paga por outros mercados é 10 000 dólares. A União Européia absorveu 21% das exportações de carne brasileira em 2007. Fora isso, a Europa é um grande produtor de carne bovina. Apenas 8% do consumo é abastecido por importações, e só metade é de origem brasileira. "Não é difícil os europeus substituírem o Brasil por outros fornecedores", afirma Alves. Em poucas palavras, no caso da carne bovina, a Europa é mais importante para o Brasil do que o Brasil é para a Europa.

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O aprimoramento das regras sanitárias é uma tendência no mundo todo e para vários tipos de produto. Trata-se de mais uma conseqüência da globalização. "Num mundo em que se comercializa tudo, procurase garantir qualidade com a padronização de regras", afirma José Amauri Dimarzio, ex-secretário executivo do Ministério da Agricultura. Espera-se que o episódio de embargo sirva para que a indústria e o governo se conscientizem da importância do assunto e reconstruam a credibilidade do setor. "Se juntar credibilidade às vantagens que possui na produção, a carne brasileira será imbatível", diz Alves.

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O O Brasil do mal - entenda-se, aí, parte dos pecuaristas, dos frigoríficos e várias áreas do governo - foi responsável por fraudar e facilitar fraudes do sistema de rastreamento que o país se comprometeu a seguir. O controle exigido pela União Européia consiste na identificação de cada animal com um número que funciona como um RG. Atrelado a esse RG deve ser criado um prontuário com informações da vida do animal, como as fazendas por onde passou e as vacinas que tomou. O objetivo do sistema - cujo armazenamento de informações e fiscalização devem ser feitos pelo Ministério da Agricultura - é permitir que, caso se constate um problema num bife vendido na Europa, seja possível localizar a fazenda de onde saiu o animal e impedir o alastramento de doenças. Uma série de falhas na implantação do programa e a falta de seriedade com que foi encarado resultaram no vexame pelo qual o país está passando há um mês perante o mundo, com episódios como o vai-e-vem de listas de fazendas e o bate-cabeça protagonizado pelo governo.INGLÊS IAN DAVID HILL deu graças a Deus pelo embargo da União Européia à carne brasileira, em vigor desde 1o de fevereiro. Não, Hill não está defendendo seus patrícios nem é adepto do protecionismo do Velho Mundo - que tenta barrar as importações para proteger produtores incapazes de competir com o preço da carne produzida no Brasil. Seu raciocínio é outro: "Quem sabe, agora, pecuaristas, donos de frigoríficos e o governo brasileiro comecem a arrumar a casa para conseguirmos vender para o mundo inteiro", diz. Aos 55 anos, 31 deles vivendo no Brasil, Hill preside a Agropecuária Jacarezinho, dos irmãos Alexandre e Pedro Grendene, conhecidos empresários do setor de calçados. Administra duas enormes propriedades, que somam 72 000 hectares de terra e abrigam 36 000 cabeças de gado nelore. As fazendas, uma em Araçatuba, no interior de São Paulo, e outra em Cotegipe, na Bahia, são reconhecidas como modelares na criação de gado no país. Mesmo assim, há quase três anos a Agropecuária Jacarezinho não consegue exportar para a Europa a carne in natura (ou seja, que não é industrializada) produzida na fazenda de Araçatuba. O motivo? Desde 2005, a União Européia suspendeu a importação desse tipo de carne de fazendas paulistas, porque São Paulo faz divisa com Mato Grosso do Sul e Paraná, estados que registraram focos de febre aftosa naquele ano. Agora, foi a vez de a fazenda baiana também parar de vender para a Europa, já que o país inteiro foi embargado depois que auditores europeus constataram falhas no sistema de rastreamento do gado brasileiro. "A situação da Agropecuária Jacarezinho é apenas mais um triste exemplo do Brasil do bem que sai prejudicado pelo Brasil do mal", afirma o consultor César de Castro Alves, da MB Agro, especializada em agropecuária.

ESSE TIPO DE ERRO ERATUDO o que os produtores europeus esperavam para fortalecer seu lobby protecionista contra o Brasil. Nos últimos tempos, a indústria brasileira de carne agigantou-se. Em 12 anos, a fatia de mercado do país na totalidade das exportações mundiais passou de 4% para 31%. O Brasil bateu todos os concorrentes e, há dois anos, assumiu a liderança mundial do setor à frente da Austrália. Hoje, o custo de produção da carne brasileira corresponde a 30% do custo médio na Europa. No jogo da concorrência, apela- se para tudo, até para o YouTube, site na internet onde está disponível um vídeo produzido por uma publicação da Associação dos Fazendeiros Irlandeses. No vídeo, os irlandeses mostram cenas do que seria uma fazenda brasileira que comete uma série de irregularidades. O repórter mostra frascos de hormônios supostamente aplicados no gado, prática banida pela União Européia. Também exibe vacinas mal acondicionadas, animais sem brincos identificadores, além de trabalhadores vivendo em casas precárias. Em certo ponto do vídeo, o repórter aparece na fronteira do estado de Mato Grosso com Mato Grosso do Sul, impedido desde 2005 de exportar para a Europa em razão de ter registrado casos de febre aftosa, e afirma que o gado pode passar livremente de um estado embargado para o outro (até então) livre. E arremata: "O rastreamento de gado no Brasil é pura ficção". Não é possível saber se o vídeo foi fraudado ou se os europeus de fato encontraram os problemas. O certo é que problemas existem, assim como existe o protecionismo por motivos econômicos.


 Na fazenda de Araçatuba da Agropecuária Jacarezinho, visitada por EXAME, o rastreamento do rebanho começou no início dos anos 90, não por exigência do governo, mas como procedimento obrigatório do sistema de melhoramento genético. Para chegar a exemplares como o touro Kulal, que tem mais de 15 000 filhos analisados, é necessário formar um verdadeiro dossiê de cada animal. Sabe-se quem é o pai, a mãe, os avós, o que ele comeu, quando e quais vacinas e remédios tomou e quanto pesou em cada fase da vida. Esse sistema de trabalho possibilitou que a Agropecuária Jacarezinho fosse a primeira do país a rastrear 100% do rebanho, em 2005. Lá, tudo é controlado. Desde a semente e o herbicida utilizados na plantação do sorgo, que serve de ração aos animais, até as instalações onde são acondicionados os medicamentos. Os vaqueiros estão sempre munidos de cadernetas em que anotam todas as intervenções realizadas no gado, que pode ser uma pesagem ou um procedimento de inseminação artificial. Painéis afixados nos currais funcionam como lembretes das normas que os funcionários devem seguir no caso de quebra de uma agulha durante uma vacinação, por exemplo. "Não se pode correr o risco de aparecer um pedaço de agulha em um bife produzido por um dos nossos animais", afirma o veterinário Luiz Fernando Boveda, gerente comercial da empresa.</p> 

Outros membros da elite brasileira da carne também ficarão no prejuízo. Tudo indica que os europeus cansaram de esperar que a indústria brasileira e o governo cumprissem o acordo firmado há mais de cinco anos. "Esse embargo é pedra cantada há anos", diz Cesário da Silva, presidente da Sociedade Rural Brasileira. "Em vez de levar o assunto a sério, a indústria e o governo empurraram a questão com a barriga e acabaram dando munição ao inimigo." Um dos erros do sistema de rastreamento brasileiro está em sua origem. Ao se comprometer com a União Européia a rastrear o gado para exportação, o governo criou a figura da certificadora - empresa autorizada pelo Ministério da Agricultura a auxiliar as propriedades a se adaptar às novas regras e, de certa forma, ajudar na vistoria das fazendas. É a certificadora, contratada pelo pecuarista, que faz toda a comunicação com o ministério. Hoje, sabe-se que o credenciamento e a fiscalização das certificadoras foram um fiasco. Até empresas de pet shop foram credenciadas. Diante da crise deflagrada pelo embargo, o governo apertou a fiscalização sobre essas empresas, o suficiente para fechar 20 das 71 da lista.


Nos últimos dias, houve quem defendesse que o governo brasileiro rebatesse o embargo com retaliações à Europa. "É uma loucura desprezar o mercado europeu", afirma Ramalho Silva. "Além de pagar muito mais que os outros mercados, seu padrão de qualidade é referência para outros países." O europeu paga entre 20 000 e 25 000 dólares a tonelada de filé mignon, enquanto a média paga por outros mercados é 10 000 dólares. A União Européia absorveu 21% das exportações de carne brasileira em 2007. Fora isso, a Europa é um grande produtor de carne bovina. Apenas 8% do consumo é abastecido por importações, e só metade é de origem brasileira. "Não é difícil os europeus substituírem o Brasil por outros fornecedores", afirma Alves. Em poucas palavras, no caso da carne bovina, a Europa é mais importante para o Brasil do que o Brasil é para a Europa.

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O aprimoramento das regras sanitárias é uma tendência no mundo todo e para vários tipos de produto. Trata-se de mais uma conseqüência da globalização. "Num mundo em que se comercializa tudo, procurase garantir qualidade com a padronização de regras", afirma José Amauri Dimarzio, ex-secretário executivo do Ministério da Agricultura. Espera-se que o episódio de embargo sirva para que a indústria e o governo se conscientizem da importância do assunto e reconstruam a credibilidade do setor. "Se juntar credibilidade às vantagens que possui na produção, a carne brasileira será imbatível", diz Alves.

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