Mais armas, menos crimes? Não é o que diz a literatura acadêmica
De 10 meta-análises, nove concluíram que a literatura empírica é amplamente favorável à conclusão que o número de armas tem efeito positivo sobre homicídios
João Pedro Caleiro
Publicado em 20 de janeiro de 2019 às 08h00.
Última atualização em 20 de janeiro de 2019 às 08h00.
São Paulo - A flexibilização das regras para posse de armas de fogo , determinada em decreto pelo presidente Jair Bolsonaro na última semana, reacendeu um debate espinhoso: a relação entre a circulação de armas de fogo e criminalidade.
Em entrevista para a Globo News, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, disse que "essa questão de estatística, de causa de violência, sempre é um tema bastante controvertido. Claro que especialistas que trabalham com isso devem ser valorizados, até valorizamos isso reportando a estatística colhida por institutos, mas o fato é que isso é controverso."
O tema não é mesmo fácil de estudar: a violência é um fenômeno complexo e de muitas causas, e os países mais violentos costumam ser países subdesenvolvidos, onde os dados são menos consolidados.
Grande parte dos estudos acaba tendo como foco os Estados Unidos, que é um ponto fora da curva em termos de mortes por armas de fogo comparado com países do mesmo nível de desenvolvimento.
No entanto, ao dizer que "se a política de desarmamento fosse tão exitosa, o que teria se esperado era que o Brasil não batesse ano após ano o recorde em número de homicídios", o ministro ignora oprincípio de que "correlação não implica causalidade".
Em resumo: não é porque uma coisa aconteceu antes da outra ou seguem a mesma linha que as duas estão conectadas como causa e efeito (ou falta de efeito).
A literatura acadêmica sobre a relação entre armas e mortes violentas feita com modelagem complexa não é especialmente controvertida, de acordo com uma análise de Thomas Conti, professor auxiliar no Insper e doutorando em Economia.
Ele compilou as dezenas de pesquisas sobre o tema publicadas entre 2013 e outubro de 2017 publicadas por grandes periódicos internacionais com revisão por pares.
34 dos estudos apresentam resultados contrários à “Mais Armas, Menos Crimes” e apenas 7 tem resultados favoráveis à alguma versão da hipótese, sendo a maioria textos de resposta a críticas à trabalhos mais antigos ou textos que já foram criticados posteriormente.
A sua conclusão: "não há nenhuma margem empírica para expressar confiança ou menos ainda certeza na tese “Mais Armas, Menos Crimes” e há "evidências fortíssimas" de que mais armas aumentam o número também de mortes acidentais e suicídios.
Ele também destaca as chamadas meta-análises, que são revisões de vários estudos para chegar a uma conclusão final, publicadas em periódicos com revisão por pares entre 2012 e 2017.
De 10 meta-análises, nove concluíram que a literatura empírica é amplamente favorável à conclusão que o número de armas tem efeito positivo sobre homicídios, violência letal e alguns outros tipos de crime.
Além disso, o estudo internacional com metodologia mais rigorosa e base de de dados mais ampla (Donohue et. al., de junho de 2017) é totalmente contrário à tese.
A maior parte das pesquisas realizadas no Brasil também vão na mesma direção; o próprio Atlas da Violência, usado pelo governo no decreto como base de dados, concluiu que o Estatuto do Desarmamento interrompeu uma "corrida armamentista" e ajudou a desacelerar a alta de homicídios.
Em um manifesto publicado em setembro de 2016 contra a revogação do Estatuto, 57 especialistas no tema destacaram as "evidências empíricas robustas" na literatura acadêmica comprovando a associação:
"Esses estudos, conduzidos em inúmeras instituições de pesquisa domésticas e internacionais, levam à conclusão inequívoca de que uma maior quantidade de armas em circulação está associada a uma maior incidência de homicídios cometidos com armas de fogo. Essas evidências foram encontradas por cientistas e pesquisadores independentes, tanto do Brasil quanto do exterior, treinados em metodologias estatísticas rigorosas aceitas na academia internacional".
A análise dos estudos, é claro, não esgota o tema: a discussão sobre posse de armas também passa pelo debate sobre o que os cidadãos consideram como seus direitos individuais inalienáveis.
Também é possível que o consenso científico venha a se modificar diante de novos dados: é assim, afinal, que funciona a ciência, enquanto a política segue a própria lógica.