Porta dos Fundos (Porta dos Fundos/Divulgação)
João Pedro Caleiro
Publicado em 26 de dezembro de 2019 às 10h46.
Última atualização em 26 de dezembro de 2019 às 11h18.
RIO — A Polícia Civil investiga o envolvimento de um grupo organizado no ataque ao prédio da produtora responsável pela criação dos vídeos do grupo Porta dos Fundos.
A principal pista é um vídeo que circulou nas redes sociais, no qual um homem, cercado de outras duas pessoas, todos encapuzados, reivindica a autoria da ação ocorrida no Humaitá, com dois coquetéis-molotov, no sábado por volta das 4h.
No vídeo, integrantes do grupo que se autodenominam "Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira" leem um manifesto enquanto imagens do ataque são exibidos.
Essas imagens coincidem com a gravação feita pela câmara do prédio do Porta, no Humaitá, que mostra a mesma ação captada por um ângulo oposto.
Setores religiosos estão em campanha contra o "Especial de Natal Porta dos Fundos: A primeira tentação de cristo", no ar na Netflix desde 3 de dezembro, incluindo pedidos de censura da produção satírica.
No filme de 46 minutos, Jesus (Gregorio Duvivier) é surpreendido com uma festa de aniversário quando voltava do deserto acompanhado do namorado, Orlando (Fabio Porchat).
O secretário estadual de Polícia Civil, Marcos Vinícius Braga, vai receber hoje, pela manhã, os atores do “Porta dos Fundos”.
Conforme O GLOBO antecipou nesta quarta-feira (25), um vídeo gravado por uma câmera de segurança identifica a placa da caminhonete onde estavam parte dos criminosos.
Seriam três suspeitos e um deles estaria com o rosto descoberto, o que facilitaria a identificação. Um dos homens estava numa moto, e fugiu na contramão da Rua Capitão Salomão, onde fica a empresa. O material será entregue nesta quinta-feira à polícia.
Agentes da 10ª DP (Botafogo), que investigam o caso, também vão buscar outras imagens na região. Ao todo, há seis câmeras que apontam para a entrada do prédio.
Ainda esta semana, testemunhas do ataque serão ouvidas, como o segurança que estava no prédio e conseguiu apagar o fogo. Apenas o quintal e a recepção sofreram danos materiais com o ato.
Na madrugada do crime, o local estava movimentado: havia uma comemoração de fim de ano de garçons e funcionários dos restaurantes da região num bar ao lado da produtora, que foi até às 3h.
Nesta quarta-feira (25), Fabio Porchat afirmou em entrevista ao GLOBO que o atentado teve motivação homofóbica.
"Penso que o ódio pelo Especial de Natal diz muito mais sobre quem o repudia do que sobre nós. A homofobia é nítida nesse caso. Para nós, do Porta dos Fundos, ser gay é uma característica como qualquer outra. A pessoa pode ser alta, baixa, branca, negra, gay, hétero. Para os homofóbicos, ser gay é xingamento. Aí é que mora o preconceito", disse o ator.
Para Porchat, é importante que a polícia identifique e puna os criminosos o mais rapidamente possível:
"Esse tipo de intolerância tem se mostrado cada vez mais comum. Se não identificarmos esses terroristas, isso pode soar como um aval para que mais atentados sejam encorajados a acontecer. O país e o estado precisam mostrar que não aceitamos ataques violentos de qualquer espécie contra quem quer que seja. Contra o presidente, contra o Porta dos Fundos ou contra você", disse.
O comediante Marcius Melhem classificou o atentado como um "ataque ao humor brasileiro". Melhem, que é humorista e não integra o Porta, lembrou que a produtora já havia feito outras sátiras com Jesus em anos anteriores, mas que apenas agora, com Cristo retratado como gay, foi alvo de ataques.
"Aceitam um Jesus bêbado, mas não aceitam um Jesus gay. A reação revela um pouco da parte preconceituosa desse país. Qual é o problema se Jesus fosse gay? O ser humano é diverso, então Deus pode ser qualquer um de nós. Se Deus é nossa imagem e semelhança, poderia ser como qualquer um de nós. Por que Cristo tem que ser idealizado sempre do mesmo jeito, branco de olhos claros?", disse.
Melhem lembrou outro episódio, dessa vez ocorrido no carnaval carioca ha 30 anos: "Isso me remete à censura ocorrida no carnaval do Rio em 1989, quando a Beija-Flor foi proibida de usar uma alegoria que retratava Jesus como mendigo".
Na ocasião, a alegoria teve que entrar no Sambódromo coberta por um saco preto. O carnavalesco Joãosinho Trinta, então, acrescentou uma faixa com os dizeres: "Mesmo proibido, olhai por nós".
Personalidades como o escritor Paulo Coelho, a cantora Clarice Falcão e o ator João Vicente de Castro, sócio da produtora, também comentaram o episódio em suas redes sociais.
O ataque à sede da produtora do Porta dos Fundos foi repudiado pelo bispo-auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antonio Augusto Dias Duarte.
Para o representante da Igreja Católica, independentemente de posições favoráveis ou desfavoráveis, o que está por cima de tudo é o valor que Jesus dá a cada pessoa.
"É preciso deixar bem claro que Jesus Cristo não veio promover os ataques e a violência entre pessoas, mas sim a paz e a harmonia. Se Jesus é representado como bêbado ou como gay, isso não pode, de jeito nenhum, ocultar a verdadeira identidade de Jesus, um Deus que vem para o mundo com uma única finalidade, resgatar o homem para o bem. Seja um ataque com bombas, seja uma postura homofóbica, seja uma caricatura de Jesus Cristo, o que está por cima de tudo isso é o valor que Jesus dá a cada pessoa, independentemente de suas posições favoráveis ou desfavoráveis a ele", diz o bispo.
Além de evangélicos e católicos, também se manifestaram contra o vídeo de humor, no último mês, representantes de outros movimentos de inspiração cristã, espíritas, humanistas, a OAB estadual no Maranhão, a Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), o Instituto Brasileiro de Direito e Religião e até mesmo a Federação Islâmica Brasileira (Fambras).
A Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em nota, afirmou que o vídeo "agride profundamente a fé cristã".
"Ridicularizar a crença de um grupo, seja ele qual for, além de constituir ilícito previsto na legislação penal, significa desrespeitar todas as pessoas, ferindo a busca por uma sociedade efetivamente democrática, que valoriza todos os seus cidadãos", diz um trecho da nota.
O deputado estadual Marcio Gualberto (PSL/RJ) apresentou uma Moção de Repúdio na Alerj e protocolou no Ministério Público estadual do Rio uma representação contra a produtora Porta dos Fundos, evocando o capítulo do Código Penal que dispõe sobre crimes contra o sentimento religioso.
No pedido de abertura de inquérito, o deputado afirma que "há um despudor e uma falta de respeito às crenças" e aponta que houve infração ao artigo 208 do código, que define como crime o ato de "escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso", prevendo como pena detenção, de um mês a um ano, ou multa.
"Por mais justa que possa ser indignação contra o grupo de militantes esquerdistas autodenominado Porta dos Fundos, ela não pode nos levar ao cometimento de crimes contra eles. Nada justifica isso! Recorrentemente, eles cometem o crime de vilipêndio, pois ofendem de maneira gratuita, gravíssima e escandalosa milhões de cristãos e se escondem atrás de uma suposta "liberdade de expressão". Mas, a prevalecer o entendimento deste grupo, seriam abertos precedentes perigosíssimos, porque posicionamentos "artísticos" desumanos estariam plenamente justificados. Com certeza, não é esta a sociedade que desejamos construir e tão pouco o legado que queremos deixar para as próximas gerações. Tudo tem limites", afirma o deputado.
No último dia 19, a 16ª Vara Cível do Rio de Janeiro negou um pedido de liminar para tirar o vídeo do ar.
Na decisão, a juíza Adriana Sucena Monteiro Jara Moura afirmou que "o Judiciário só pode proibir a publicação, circulação e exibição de manifestações artísticas quando houver a prática de ilícito, incitação à violência, discriminação e violação de direitos humanos nos chamados discursos de ódio" e que o especial não cabe nestas categorias.
“Há que se ressaltar que o juiz não é crítico de arte e, conforme já restou assente em nossa jurisprudência, não cabe ao Judiciário julgar a qualidade do humor, da sátira, posto que matéria estranha às suas atribuições”, avaliou. Ela ressaltou que como o especial está no Netflix, só o assiste quem quer.