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Em edição histórica, Bienal vende 4 milhões de livros em meio à censura

Durante todo o fim de semana, artistas, visitantes, youtubers e ativistas passaram pelo festival reforçando defesa da democracia e da liberdade de expressão

Bienal do Rio: evento terminou neste domingo (08) marcado pela defesa da livre expressão artística e literária (Bienal Internacional do Livro Rio/Divulgação)

Bienal do Rio: evento terminou neste domingo (08) marcado pela defesa da livre expressão artística e literária (Bienal Internacional do Livro Rio/Divulgação)

CC

Clara Cerioni

Publicado em 9 de setembro de 2019 às 11h45.

Última atualização em 9 de setembro de 2019 às 11h49.

São Paulo — No último fim de semana, a Bienal Internacional do Livro Rio ficou no centro de uma "guerra" jurídica e pública, em torno da tentativa do prefeito da cidade carioca, Marcelo Crivella, de censurar a HQ "Vingadores - A Cruzada das Crianças", obra da Marvel que mostra um casal gay se beijando.

Após dez dias de programação, o evento terminou neste domingo (08) marcado pela defesa da livre expressão artística e literária. Segundo um balanço prévio da organização, mais de 4 milhões de livros foram vendidos para as mais de 600 mil pessoas que visitaram o festival. Havia 5,5 milhões de títulos disponíveis.

Na sessão de encerramento, um grupo de escritores como Laurentino Gomes, Thalita Rebouças e Pedro Bandeira, além de editores e membros da organização da feira assinou um manifesto contra as "insistentes tentativas de censura". 

"Se engana quem pensa que o alvo era a Bienal Internacional do Livro. O alvo somos todos nós cidadãos brasileiros, pois não precisamos ter quem determine o que podemos ler, pensar, escrever, falar ou como devemos nos relacionar. O brasileiro não precisa de tutor. Precisa de educação para que cada um possa fazer suas escolhas com consciência e liberdade", diz trecho do manifesto. (Leia abaixo o texto na íntegra)

Após indas e vindas da Justiça, o evento conseguiu uma decisão favorável no Supremo Tribunal Federal (STF) para manter venda dos livros. Tanto o presidente da corte, Dias Toffoli, como o ministro Gilmar Mendes criticaram as ofensivas da prefeitura.

Segundo a prefeitura do Rio, a tentativa de censura não teve cunho homofóbico, mas sim do respeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente, que recomenda que “publicações com cenas impróprias a crianças e adolescentes sejam comercializadas com lacre”.

De acordo com a presidente da Comissão de Direitos da Criança e do Adolescente da OAB, Suzana do Monte Moreira, a determinação do estatuto só se aplica a casos em que há imagens de nudez ou sexo explícito.

No caso do livro da Marvel, por exemplo, há somente uma imagem de um beijo entre dois homens inteiramente vestidos dentro do livro, não na capa. A especialista lembra que o casamento (e a família homoafetiva) é reconhecido no Brasil desde 2011 e que a homofobia é considerada crime similar ao racismo.

A editora Mariana Zahar, da Editora Zahar, defendeu que as interferências do STF em proibir a censura criem uma jurisprudência para que essa situação não volte a acontecer.

“Isso não foi uma ameaça à Bienal, mas à Constituição. Não haverá ameaças à Bienal se nós nos juntarmos e lutarmos pelos nossos direitos”, disse.

A questão dos LGBTs foi apenas um dos temas que a Bienal discutiu durante os dez dias. Também foram abordados assuntos envolvendo felicidade, democracia e autoritarismo, meio ambiente, fé, empoderamento, fake news, escravidão, ciências e diversidade.

Protestos

Durante todo o fim de semana, participantes e figuras públicas se mobilizaram para impedir que os livros fossem recolhidos por funcionários de Crivella.

O youtuber Felipe Neto, por exemplo, comprou 14 mil exemplares de obras com temática LGBT e distribuiu gratuitamente para os visitantes do evento.

Em suas redes sociais, ele comemorou a ação. “O dia em que mandamos um recado claro para a censura e os opressores: vocês nunca irão calar o amor! O bem sempre vence e sempre vencerá. Foram 14 mil livros de temática LGBTQ+ distribuídos gratuitamente”, escreveu.

Na sequência, prosseguiu: “Foi lindo, foi amor, foi luta por um mundo melhor! No final, chegaram os carros dos agentes da censura de Crivella e 20 homens armados prontos para recolher todos os livros. Só tinha um problema: todos já tinham sido entregues de graça”.

Os 14 mil livros, comprados na própria Bienal, foram envolvidos em plástico preto acompanhados de um adesivo: “Este livro é impróprio para pessoas atrasadas, retrógradas e preconceituosas”.

Livros como Confissões de Um Garoto Tímido, Nerd e (Ligeiramente) Apaixonado, de Thalita Rebouças, Arrase!, de RuPaul, e O Mau Exemplo de Cameron Post, de Emily M. Danforth estiveram entre os exemplares entregues ao público na praça central da Bienal.

Além do youtuber, houve também protestos dos próprios participantes que caminharam entre os estandes lendo trechos da Constituição que proíbem “censura de qualquer natureza”.

https://twitter.com/felipeneto/status/1170485753215901696

As próprias editoras de livro usaram as redes sociais para se posicionar contra as tentativas da prefeitura do Rio.

Para Marcos da Veiga Pereira, presidente do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) e da comissão do festival, o balanço deste ano é de que "a Bienal Internacional do Livro Rio nunca foi tão nacional".

“Fico feliz em terminar esse festival consagrando o valor que a Bienal tem e com a certeza de que o livro vai prosperar. Acreditamos muito no poder de transformação do livro e, por isso, tivemos convicção do que fazer e de que atitude tomar nesses últimos dias”, afirmou.

Leia o manifesto dos artistas na íntegra

"A Bienal Internacional do Livro Rio é a oportunidade que temos, a cada dois anos, para nos reunir, encontrar nossos públicos, nos inspirar e debater livremente sobre todo e qualquer tema, sem restrições e com empatia. Um evento de conteúdo qualificado e diverso, reconhecido nacional e internacionalmente como o maior festival cultural do Brasil.

Nos últimos dias, a Bienal se tornou um abrigo democrático, ao lado de 600 mil pessoas que prestigiaram o evento, contra as insistentes tentativas de censura. Se engana quem pensa que o alvo era a Bienal Internacional do Livro. O alvo somos todos nós cidadãos brasileiros, pois não precisamos ter quem determine o que podemos ler, pensar, escrever, falar ou como devemos nos relacionar. O brasileiro não precisa de tutor. Precisa de educação para que cada um possa fazer suas escolhas com consciência e liberdade.

Foi com alívio e muito orgulho que recebemos as duas decisões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) neste domingo (8/9) impedindo que a Bienal Internacional do Livro continuasse sofrendo assédio à literatura e aos seus leitores. Do contrário, se criaria uma jurisprudência que colocaria todos os eventos culturais, autores, editoras e livrarias do Brasil à mercê do entendimento do que é próprio ou impróprio a partir da ótica de cada um dos 5.470 prefeitos do país.

Encerramos essa edição histórica da Bienal Internacional do Livro Rio com o coração cheio de orgulho e determinação. A Bienal não acaba hoje. Ela seguirá com cada um de nós todos os dias. O festival foi memorável. Deu voz e ouvidos a todos os públicos. Reuniu e celebrou a cultura junto com autores, artistas, pensadores, lideranças de movimentos sociais, pastor evangélico, monge zen-budista, jornalistas, acadêmicos, ativistas, chef de cozinha e muitos outros.

Viva a Bienal do Livro Rio! Via a cultura! Viva a liberdade e a democracia!!".

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(Com Estadão Conteúdo)

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