1º transhomem a ser operado batiza projeto sobre nome social
João Nery ousou ao firmar uma trajetória de busca e construção da própria identidade, sendo o primeiro homem transexual brasileiro a ser operado
Da Redação
Publicado em 13 de novembro de 2015 às 14h55.
Brasília - “Desde que me entendo por gente, aos 3 ou 4 anos, eu já queria ser tratado no masculino. Eu sabia que isso não podia ser explicitado verbalmente. Então eu corrigia mentalmente, e toda vez que me tratavam por 'ela' eu passava para 'ele'. Mas eu tinha que me submeter àquele mundo feminino que era imposto para mim, do uniforme da escola aos brinquedos.”
O relato de João Nery, 65 anos, é apenas um entre os vários episódios vividos por ele – que nasceu em um corpo feminino , mas sempre se identificou como homem .
Em uma época em que não se falava em transexualidade , João Nery ousou ao firmar uma trajetória de busca e construção da própria identidade. Ele é o primeiro homem transexual brasileiro a ter sido operado.
Ainda na infância, ele conta que, para poder se manifestar como menino, fez um carrinho de rolimã e brincou com ele no quintal de casa até destruir o concreto.
“Era um recurso infantil. Mas na pracinha me chamavam de Maria Homem e era muito ruim. Minha mãe me proibiu de ir para a praça, mas acabei achando bom, pois me sentia mais protegido dentro de casa.”
Na adolescência começaram a aparecer as características físicas femininas. “Começou a brotar um corpo pior ainda. Seios, 'monstruação' - como eu chamo a menstruação, porque aquilo era um monstro para mim. Fui crescendo aos trancos e barrancos, sem um rótulo”, lembra.
A dificuldade em lidar com a situação era tanta que, aos 16 anos, tentou namorar um rapaz, mas a experiência não durou muito.
Depois veio a década de 1970 e a moda unissex. João se sentiu livre para cortar o cabelo curto e usar calça jeans.
Ainda com identidade feminina, ele se formou em psicologia, começou a fazer mestrado e deu aulas em três faculdades no Rio de Janeiro.
“Eu era uma figura ambígua. Com 22 anos, eu já vivia duas vidas socialmente antagônicas. Eu era mulher para os amigos, parentes e colegas de trabalho. E era visto como uma figura masculina para os desconhecidos. Fui morar com a minha namorada e, no prédio, era visto como o marido dela. Era uma loucura. Eu nunca sabia se iam me chamar de senhor ou de senhora”, conta.
Cirurgias
João já havia feito duas cirurgias de redução de mama, uma em 1966 e outra em 1968 – o médico, por medo de perder o diploma, tinha concordado apenas com a redução, e não com a retirada. Em 1976, fez a retirada do útero e dos ovários.
“Em 77, finalmente, fiz a mamoplastia masculinizadora e uma neouretra, para poder urinar em pé”, relata.
À época, esse tipo de cirurgia era considerada crime no Brasil. Depois de muito procurar, João descobriu que havia uma equipe de médicos no Rio de Janeiro que estava começando a estudar a transexualidade e a fazer operações em caráter experimental.
João não pensou duas vezes e se submeteu à cirurgia de forma clandestina.
“Quem operasse poderia ser condenado. Foi o que aconteceu com o meu médico. Ele operou uma mulher trans em 1971 e foi acusado de mutilação do humano, condenado a dois anos. Só não foi preso porque era réu primário”, lembra João.
Vida amorosa
Hoje no quarto casamento, João conta que suas relações sempre foram como as de um casal “normal”, homem e mulher.
“A minha primeira mulher me comprou uma cueca de presente. Nunca havia usado cueca até meus 22 anos. Ela me deu a primeira camisa Pierre Cardin preta e ficava distraindo o vendedor para ele não entrar na cabine comigo”, diverte-se João.
O casal criou um apelido neutro, para que ela pudesse chamá-lo em público sem despertar a curiosidade dos outros.
“Eu tinha aparência de homem, mas não tinha barba porque eu não tomava hormônios. Eu amarrava as mamas, enfaixava. Era um calor danado e aquelas faixas viviam caindo, por causa da respiração”, conta.
No terceiro casamento, mais um capítulo emocionante da história de João foi escrito: a paternidade.
“Minha mulher engravidou em uma relação que ela teve sem eu saber, sem o meu consentimento, portanto eu fui literalmente traído. Mas o meu lado feminino falou mais alto e, em 24 horas, resolvi assumir a paternidade da criança. Foi uma experiência muito enriquecedora para mim”.
Documentos
De todas as dificuldades, João considera a falta de documentação a maior delas. Ele cita diversos episódios de constrangimento pela inexistência de RG e CPF que comprovem o novo nome.
“Depois da cirurgia, eu não pude entrar na Justiça para trocar o meu nome. Nenhum juiz me daria a troca de nome e de gênero. Tirei a minha documentação no peito e na raça. Eu tinha que trabalhar, sobreviver. Fui num cartório, com uma mulher transexual e seu marido como minhas testemunhas, e tirei um novo nome masculino. Cometi um crime pois fiquei com dois CPF's, um de mulher e outro de homem. Perdi meu currículo todo. Virei um analfabeto como homem”, lembra João.
“Não podia mais trabalhar como psicólogo, dar aula em universidade nem continuar o meu mestrado. Fui ser pedreiro, pintor de parede, exerci milhares de profissões que não precisavam de currículo. Até hoje estou desempregado e sem aposentadoria. Nunca o Estado me ressarciu desses danos todos”, conta.
Nome social
Depois de toda essa jornada em busca da identidade masculina, João Nery hoje batiza um projeto de lei de autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF).
Baseada na legislação argentina, a proposta (Projeto de Lei 5002/2013) determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão e facilita os trâmites para mudança de nome e gênero.
Pelo projeto, que tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, transexuais poderiam alterar a documentação no cartório – sem precisar de cirurgia, tratamento hormonal ou laudo psiquiátrico. Atualmente, eles precisam recorrer à Justiça para efetuar a mudança de nome e gênero.
Para João, com a atual composição do legislativo e a resistência da bancada evangélica, o projeto dificilmente será aprovado.
“Ser o que não é, fingir o tempo todo, é enlouquecedor. Os nossos corpos são políticos porque a gente milita o tempo todo. Cada travesti que vai na esquina comprar um pão, já está militando. Só de ela caminhar até a padaria, ela já está mostrando as fissuras que existem nesse binarismo homem-mulher”, destaca.
Brasília - “Desde que me entendo por gente, aos 3 ou 4 anos, eu já queria ser tratado no masculino. Eu sabia que isso não podia ser explicitado verbalmente. Então eu corrigia mentalmente, e toda vez que me tratavam por 'ela' eu passava para 'ele'. Mas eu tinha que me submeter àquele mundo feminino que era imposto para mim, do uniforme da escola aos brinquedos.”
O relato de João Nery, 65 anos, é apenas um entre os vários episódios vividos por ele – que nasceu em um corpo feminino , mas sempre se identificou como homem .
Em uma época em que não se falava em transexualidade , João Nery ousou ao firmar uma trajetória de busca e construção da própria identidade. Ele é o primeiro homem transexual brasileiro a ter sido operado.
Ainda na infância, ele conta que, para poder se manifestar como menino, fez um carrinho de rolimã e brincou com ele no quintal de casa até destruir o concreto.
“Era um recurso infantil. Mas na pracinha me chamavam de Maria Homem e era muito ruim. Minha mãe me proibiu de ir para a praça, mas acabei achando bom, pois me sentia mais protegido dentro de casa.”
Na adolescência começaram a aparecer as características físicas femininas. “Começou a brotar um corpo pior ainda. Seios, 'monstruação' - como eu chamo a menstruação, porque aquilo era um monstro para mim. Fui crescendo aos trancos e barrancos, sem um rótulo”, lembra.
A dificuldade em lidar com a situação era tanta que, aos 16 anos, tentou namorar um rapaz, mas a experiência não durou muito.
Depois veio a década de 1970 e a moda unissex. João se sentiu livre para cortar o cabelo curto e usar calça jeans.
Ainda com identidade feminina, ele se formou em psicologia, começou a fazer mestrado e deu aulas em três faculdades no Rio de Janeiro.
“Eu era uma figura ambígua. Com 22 anos, eu já vivia duas vidas socialmente antagônicas. Eu era mulher para os amigos, parentes e colegas de trabalho. E era visto como uma figura masculina para os desconhecidos. Fui morar com a minha namorada e, no prédio, era visto como o marido dela. Era uma loucura. Eu nunca sabia se iam me chamar de senhor ou de senhora”, conta.
Cirurgias
João já havia feito duas cirurgias de redução de mama, uma em 1966 e outra em 1968 – o médico, por medo de perder o diploma, tinha concordado apenas com a redução, e não com a retirada. Em 1976, fez a retirada do útero e dos ovários.
“Em 77, finalmente, fiz a mamoplastia masculinizadora e uma neouretra, para poder urinar em pé”, relata.
À época, esse tipo de cirurgia era considerada crime no Brasil. Depois de muito procurar, João descobriu que havia uma equipe de médicos no Rio de Janeiro que estava começando a estudar a transexualidade e a fazer operações em caráter experimental.
João não pensou duas vezes e se submeteu à cirurgia de forma clandestina.
“Quem operasse poderia ser condenado. Foi o que aconteceu com o meu médico. Ele operou uma mulher trans em 1971 e foi acusado de mutilação do humano, condenado a dois anos. Só não foi preso porque era réu primário”, lembra João.
Vida amorosa
Hoje no quarto casamento, João conta que suas relações sempre foram como as de um casal “normal”, homem e mulher.
“A minha primeira mulher me comprou uma cueca de presente. Nunca havia usado cueca até meus 22 anos. Ela me deu a primeira camisa Pierre Cardin preta e ficava distraindo o vendedor para ele não entrar na cabine comigo”, diverte-se João.
O casal criou um apelido neutro, para que ela pudesse chamá-lo em público sem despertar a curiosidade dos outros.
“Eu tinha aparência de homem, mas não tinha barba porque eu não tomava hormônios. Eu amarrava as mamas, enfaixava. Era um calor danado e aquelas faixas viviam caindo, por causa da respiração”, conta.
No terceiro casamento, mais um capítulo emocionante da história de João foi escrito: a paternidade.
“Minha mulher engravidou em uma relação que ela teve sem eu saber, sem o meu consentimento, portanto eu fui literalmente traído. Mas o meu lado feminino falou mais alto e, em 24 horas, resolvi assumir a paternidade da criança. Foi uma experiência muito enriquecedora para mim”.
Documentos
De todas as dificuldades, João considera a falta de documentação a maior delas. Ele cita diversos episódios de constrangimento pela inexistência de RG e CPF que comprovem o novo nome.
“Depois da cirurgia, eu não pude entrar na Justiça para trocar o meu nome. Nenhum juiz me daria a troca de nome e de gênero. Tirei a minha documentação no peito e na raça. Eu tinha que trabalhar, sobreviver. Fui num cartório, com uma mulher transexual e seu marido como minhas testemunhas, e tirei um novo nome masculino. Cometi um crime pois fiquei com dois CPF's, um de mulher e outro de homem. Perdi meu currículo todo. Virei um analfabeto como homem”, lembra João.
“Não podia mais trabalhar como psicólogo, dar aula em universidade nem continuar o meu mestrado. Fui ser pedreiro, pintor de parede, exerci milhares de profissões que não precisavam de currículo. Até hoje estou desempregado e sem aposentadoria. Nunca o Estado me ressarciu desses danos todos”, conta.
Nome social
Depois de toda essa jornada em busca da identidade masculina, João Nery hoje batiza um projeto de lei de autoria dos deputados federais Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Érika Kokay (PT-DF).
Baseada na legislação argentina, a proposta (Projeto de Lei 5002/2013) determina que o reconhecimento da identidade de gênero é um direito do cidadão e facilita os trâmites para mudança de nome e gênero.
Pelo projeto, que tramita na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, transexuais poderiam alterar a documentação no cartório – sem precisar de cirurgia, tratamento hormonal ou laudo psiquiátrico. Atualmente, eles precisam recorrer à Justiça para efetuar a mudança de nome e gênero.
Para João, com a atual composição do legislativo e a resistência da bancada evangélica, o projeto dificilmente será aprovado.
“Ser o que não é, fingir o tempo todo, é enlouquecedor. Os nossos corpos são políticos porque a gente milita o tempo todo. Cada travesti que vai na esquina comprar um pão, já está militando. Só de ela caminhar até a padaria, ela já está mostrando as fissuras que existem nesse binarismo homem-mulher”, destaca.