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No lar do terroir, o sabor dos queijos pode mudar em breve

A luta para preservar tradições cruza o desafio de um clima em transformação

Mariana Martucci
Mariana Martucci

Editora da Homepage

Publicado em 24 de dezembro de 2024 às 14h35.

Última atualização em 30 de dezembro de 2024 às 20h33.

FRANÇA* — Na região montanhosa de Jura, quase na fronteira com a Suíça, Marie Roy caminha entre vacas Montbéliardes que pastam ao longo de campos que já não são tão verdes como deveriam. Ela é uma das proprietárias da fazenda Gaec du Sauget, conhecida por produzir leite de alta qualidade destinado ao Comté, um dos queijos mais prestigiados e caros da França, protegido pelo selo AOP (Appellation d’Origine Protégée, Denominação de Origem Protegida). Com 27°C em pleno setembro, um calor fora de época que se torna cada vez mais comum, o trabalho de gerações de produtores como ela está sendo colocado à prova.

Produzido há mais de mil anos, o Comté é conhecido por seu sabor complexo, com notas de avelã, manteiga e frutas secas. Ele é o resultado de um processo artesanal que depende de condições específicas. O terroir, conceito central na gastronomia francesa, conecta solo, clima e tradição, criando produtos únicos. No caso do Comté, as vacas Montbéliardes são alimentadas com pastagens locais, e o leite cru deve ser transformado em queijo em até 24 horas após a ordenha.

Cada roda de Comté, que chega a pesar 50 kg, é envelhecida entre 6 e 18 meses em porões de armazenamento que mantêm condições rigorosas de temperatura e umidade, permitindo que o queijo desenvolva seus sabores inconfundíveis. 

Um mestre queijeiro de Comte na adega de maturação em Loray, leste da França. (SEBASTIEN BOZON/AFP/Getty Images)

O impacto das mudanças climáticas na produção de queijos ficou evidente em 2022, quando a França enfrentou o segundo verão mais quente em um século. As pastagens secaram, reduzindo a variedade e a qualidade das plantas que alimentam as vacas. Celeiros de ordenha, projetados para proteger os animais, se transformaram em verdadeiras saunas. Mais da metade das associações de queijos AOP precisaram de autorização para quebrar suas regras centenárias, algo quase impensável até então.

Simon Bouchet, da associação Picodon, explica que essas normas foram criadas em um contexto climático muito diferente. “Todo o sistema foi construído com base no fato de que tínhamos certos cereais e feno disponíveis. Mas, com as mudanças climáticas e as secas, tudo isso foi questionado.”

O impacto não para nas pastagens. O leite produzido nessas condições apresenta mudanças na composição de gordura e proteína, o que afeta diretamente a textura, o sabor e até o rendimento do queijo.

Os produtores sabem que não podem controlar o clima, mas têm buscado formas de mitigar seus efeitos. Em outubro deste ano, durante o Congresso Mundial de Laticínios (World Diary Summit), em Paris, empresas apresentavam colchões térmicos para vacas — feitos de um material semelhante ao de pneus, capazes de diminuir a temperatura de contato com os animais.

Outra inovação vista por lá eram ventiladores gigantes para currais, criando um fluxo constante de ar e aliviando o estresse térmico dos animais. Em algumas fazendas, as são obrigadas a ficarem mais meses dentro dos estábulos, a depender da duração do calor excessivo.

Produção do queijo Comte, um dos 'queridinhos' do momento na França. (SEBASTIEN BOZON/AFP/Getty Images)

Terroir em transformação

O terroir, combinação de solo, clima e tradição que dá personalidade única ao Comté, está mudando. Climas mais quentes estão alterando a composição das pastagens, o que, por sua vez, impacta o sabor do leite. Isso não é um problema apenas para o Comté. Em todo o mundo, queijos artesanais enfrentam desafios semelhantes.

Nos Alpes suíços, o derretimento das geleiras tem afetado a produção de queijos como o Gruyère. No Mediterrâneo, temperaturas extremas estão complicando a produção do Feta. Enquanto isso, grandes marcas conseguem investir em soluções tecnológicas, mas pequenos produtores, que muitas vezes seguem métodos tradicionais transmitidos por gerações, lutam para se adaptar.

A milhares de quilômetros dali, o produtor e agrônomo Vinícius Ferreira Soares atravessa questões semelhantes no cerrado brasileiro. Em sua propriedade na Serra da Canastra, Minas Gerais, ele enfrenta o desafio de manter a qualidade de seu queijo orgânico em um clima cada vez mais hostil. Para ele, o impacto das mudanças climáticas atinge diretamente a microbiota do "pingo" — o fermento natural utilizado no queijo Minas artesanal. “O calor intenso reduz a atividade dos micro-organismos, enfraquecendo o pingo e mudando a essência do nosso queijo”, explica. Além disso, a seca, as temperaturas altas e o uso indiscriminado de agroquímicos em propriedades vizinhas afetam tanto a pastagem quanto a maturação dos queijos.

Para mitigar esses impactos, Vinícius implementou soluções que promovem resiliência climática. Ele utiliza agroflorestas no pasto, criando sombreamento e conforto térmico para o gado, e está investindo em ventiladores nos currais e sistemas de sombrites para proteger bezerras e áreas de recria. Além disso, adapta o manejo integrando animais como porcos e galinhas às áreas de plantio, promovendo adubação natural e controle de pragas. “Nosso objetivo é criar um microclima sustentável, onde os animais, o solo e os humanos convivam em equilíbrio. Estamos tentando provar que é possível produzir de outra forma e adiar o fim do mundo”, reflete.

Apesar dos desafios, o mercado global de queijos continua a crescer. Estima-se que ele alcance 123,4 bilhões de dólares até 2030, segundo a Next Move Strategy Consulting. Mas esse crescimento dependerá da capacidade dos produtores de se adaptarem a um clima em transformação.

Para Marceline Peglion, produtora de queijos de cabra no sul da França, a questão é existencial. “Se o clima se tornar o do Marrocos, o que será do terroir?”, questiona. Marceline ajustou os horários de pastagem de suas cabras e abandonou a ordenha da tarde nos meses mais quentes, tentando preservar tanto os animais quanto a qualidade do leite.

Vacas Montbeliarde, usadas na produção do Comte. ( Jpr03/Getty Images)

Enquanto ventiladores giram e colchões térmicos ajudam as vacas a lidar com o calor, produtores como Marie Roy continuam a fazer o possível para preservar um dos queijos mais icônicos da França. “Não estamos apenas produzindo leite ou queijo. Estamos preservando nossa história, nossa identidade”, diz Marie.

Como Patrick Rance escreveu: “Uma fatia de queijo nunca é apenas algo para comer. É uma fatia da história.” Para o Comté, essa história está sendo reescrita a cada dia. Entre pastagens que mudam e queijos que evoluem, o futuro dessa tradição dependerá de um equilíbrio delicado entre inovação e preservação.

*A jornalista viajou a convite do CNIEL (Centro Nacional Interprofissional da Economia Leiteira da França).

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