Na Finlândia, o medo da guerra criou um cenário próspero para startups de defesa
A indústria de defesa do país nórdico triplicou o número de empresas em duas décadas e atraiu investimentos bilionários em resposta à crescente tensão com a Rússia
Repórter
Publicado em 20 de novembro de 2024 às 07h06.
Última atualização em 25 de novembro de 2024 às 10h20.
HELSINQUE -A invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, acelerou uma transformação significativa na Finlândia, que, até então, vivia em um estado de neutralidade em termos militares. A adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 2023, unindo-se à aliança após décadas de fora, resultou em ameaças da Rússia e agora exige alistamento obrigatório dos homens e um retorno anual aos quartéis para atualização de habilidades e estratégias de combate.
Por consequência do clima de tensões, o ambiente empreendedor também se voltou ao militarismo. Ao longo das últimas duas décadas, o país assistiu a um crescimento vertiginoso na criação negócios voltados à defesa,saltando de 8 em 2000 para 23 em 2023. Esse aumento inesperado em um setor antes restrito e com uma média de 2 a 4 empresas por década durante o século XX mostra a resposta da indústria à urgência de modernização e adaptação.
Um dos casos mais emblemáticos desse fenômeno é o da ICEYE, uma startup que foi criada em 2014 com um foco inicial no monitoramento climático por satélite.
A empresa se especializou nos dispositivos que funcionam com um radar de abertura sintética (SAR, Synthetic Aperture Radar), tecnologia utilizada para observar a Terra transpassando nuvens, poluição e outras condições climáticas usando frequências de luz e rádio. No entanto, à medida queas tensões geopolíticas na região aumentaram, a ICEYE rapidamente pivotou seu modelo de negócio.
"Em 2018, lançamos nosso primeiro dispositivo. E neste ano, a empresa já havia colocado em órbita mais de 38 satélites SAR, mantendo a maior constelação de satélites do mundo com essa tecnologia", contaRafal Modrezwsk, CEO e cofundador da ICEYE. Modrezwsk explica como a dimensão da constelação permite, além de fotos noturnas, uma atualização em alta definição de qualquer parte da Terra com intervalos de 1 hora.
Com tantos satélites em órbita, logo a tecnologia se mostrou útil para Ucrânia suportar a guerra. Em agosto de 2022, a startup firmou um contrato com a Serhiy Prytula Charity Foundation,proporcionando ao governo ucraniano acesso a imagens de radar de alta resolução para monitoramento de áreas críticas da região em guerra. "Esse acesso à tecnologia de ponta permitiu que as forças ucranianas obtivessem informações vitais, antecipando ataques e traçando estratégias de artilharia", diz Modrezwsk.
O papel da ICEYE não é um caso isolado. Outras startups de defesa da Finlândia também têm ganhado destaque. A Sensofusion, por exemplo, desenvolveu o Airfence, um sistema de defesa projetado para detectar e neutralizar drones, um tipo de ameaça cada vez mais relevante em cenários de guerra modernos.
A empresa, que tem uma abordagem de produção massiva e preços fixos, destaca-se pela padronização de seus produtos, o que os torna mais acessíveis a uma variedade de clientes, incluindo forças militares de diferentes países da OTAN.
Além de inovações tecnológicas, a Finlândia tem atraído investimentos substanciais para o setor de defesa. De acordo com Youssef Zad, economista-chefe da Finnish Startup Community, o volume de licenças concedidas para exportação de produtos de defesa quintuplicou nos últimos anos.
O valor estimado dessas exportações atingiu 2,6 bilhões de euros em 2023, e a previsão é que esse número chegue a 10 bilhões de euros até 2030. "A razão desse crescimento está em grande parte no apoio estratégico da União Europeia, que visa aumentar a participação de países da OTAN nas aquisições de defesa, diminuindo a dependência de fornecedores dos Estados Unidos", conta Zad.
Outro fator relevante para o crescimento da indústria de defesa é a forte rede de apoio ao ecossistema de startups na Finlândia, como aponta Peter Sarlin, CEO da startup de inteligência artificial Silo e membro ativo desse cenário. Segundo ele, há uma integração profunda entre as startups, investidores de venture capital, e formuladores de políticas públicas. Até 2021, existiam cerca de 2 mil startups ativas no país, com receitas que cresceram de aproximadamente 300 milhões de euros em 2007 para mais de 9 bilhões de euros em 2021. Esse crescimento também reflete na criação de empregos: de 3,5 mil trabalhadores em 2007, o setor passou a empregar mais de 32 mil pessoas em 2021, com forte participação de trabalhadores estrangeiros e doutores em áreas técnicas.
A Business Finland, órgão responsável por fomentar a inovação no país, é outro pilar desse desenvolvimento. Em 2023, a entidade recebeu pedidos de financiamento no valor de 1 bilhão de euros e aprovou 726 milhões de euros para 4.435 projetos. Desses, 599 milhões foram destinados a empresas, sendo 94 milhões para startups, 143 milhões para pequenas e médias empresas, e 184 milhões para grandes companhias. Outros 127 milhões foram alocados para pesquisas. O foco em inovação é evidente, com 416 milhões de euros investidos exclusivamente em projetos inovadores, como aqueles ligados a tecnologias de defesa. Sinal de que empreender virou questão de sobrevivência.
(O repórter viajou a convite da Business Finland)