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Vai ser difícil engolir a restrição à publicidade de alimentos infantis

Em meio às discussões mundiais sobre a obesidade infantil, a Anvisa estuda a adoção de regras para restringir a publicidade de alimentos no Brasil - e dá início a uma queda de braço com as grandes empresas do setor

Anvisa estuda a adoção de regras para a publicidade de alimentos no Brasil (Pedro Rubens/EXAME.com)

Anvisa estuda a adoção de regras para a publicidade de alimentos no Brasil (Pedro Rubens/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 4 de março de 2011 às 18h48.

Primeiro foi a indústria do cigarro. Depois, as empresas do setor farmacêutico. Agora, são os fabricantes de alimentos que passam pelo escrutínio público. Vistas como vilãs da obesidade infantil, companhias que produzem salgadinhos, refrigerantes ou qualquer outra coisa que possa contribuir para o excesso de peso de crianças têm sido alvo de regulamentações restritivas em diversos mercados da Europa - e, ao que tudo indica, deverão passar por algo semelhante no Brasil.

Uma proposta em tramitação na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), desde 2006, deve finalmente ser aprovada nos próximos meses. A ideia dos reguladores brasileiros é aproveitar o clima gerado pelas discussões sobre o tema que acontecerão em Genebra nas próximas semanas, durante um encontro da Organização Mundial da Saúde (OMS). "As empresas estão numa queda de braço com a Anvisa há anos", diz um membro do Conar, órgão que regulamenta a publicidade no Brasil, sob condição de não ter seu nome revelado. "As novas regras podem mudar totalmente o jeito de fazer propaganda nesse setor."

De fato, o texto elaborado pela agência é de causar calafrios nos profissionais de marketing que trabalham no setor de alimentos. Se ele for aprovado como proposto, os anúncios de qualquer alimento que contenha níveis considerados elevados de sal, gordura ou açúcar terão de apresentar um alerta ao consumidor, nos moldes do que acontece com a propaganda de cigarro. "A nova regra inviabiliza a propaganda de alimentos no Brasil", afirma Edmundo Klotz, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia).

"A indústria teria de gastar parte do tempo - e do dinheiro - do anúncio para falar mal do próprio produto, e isso não faz sentido." A principal crítica das empresas de alimentos industrializados, no entanto, está relacionada aos critérios adotados pela Anvisa para exigir esse tipo de postura diante do consumidor. "O fabricante de um biscoito maisena poderá ser obrigado a incluir em sua propaganda dois alertas quanto ao risco de doenças que o consumo do produto pode causar", diz Klotz. "Mas nenhuma bebida alcoólica é obrigada a fazer o mesmo apenas porque não contém alto teor de açúcar ou gordura em sua fórmula."

A Anvisa, por sua vez, defende seu papel de agente fiscalizador. "Estamos atacando um problema que diz respeito não somente à publicidade mas à saúde pública", diz Maria José Delgado, diretora de fiscalização da agência - segundo dados do Ministério da Saúde, o número de adolescentes do sexo masculino com excesso de peso no Brasil passou de 8,3% para 18% entre 1989 e 2003.


O que vem dividindo os especialistas não é tanto o mérito da questão - a maioria deles concorda que sanduíches e sorvetes em excesso não são exatamente um modelo de alimentação saudável -, mas a quem caberia regular a propaganda desses alimentos. "Somente uma lei federal tem poder para determinar essas regras", afirma José Mauro Machado, advogado especializado em propriedade intelectual do escritório Pinheiro Neto. "Cabe à Anvisa apenas fiscalizar sua aplicação."

Na tentativa de se antecipar a qualquer decisão do governo - e, com isso, evitar retaliações por parte da opinião pública -, 23 empresas ligadas ao setor de alimentos e bebidas no Brasil reuniram-se, em agosto do ano passado, para assinar um termo de autorregulamentação. Entre as filiais de multinacionais signatárias do documento, algumas se mostraram tão rigorosas aqui quanto em seu país de origem. A anglo-holandesa Unilever, por exemplo, tem como política global não veicular propagandas direcionadas a crianças menores de 6 anos - no Brasil, a restrição se estende até os 12 anos.

O mesmo vale para a operação brasileira da suíça Nestlé. A Danone alega que só utiliza personagens da TV em anúncios de alimentos que sejam comprovadamente saudáveis. O McDonald's, alvo habitual das críticas mais severas, passou a anunciar os brindes do McLanche Feliz apenas utilizando a combinação mais saudável de seu cardápio, com nuggets de frango, suco e cenouras no lugar das tradicionais batatas fritas.

Historicamente, os fabricantes de guloseimas sempre se valeram de argumentos lógicos para arquitetar sua defesa. Na luta contra a obesidade, adulta ou infantil, 200 calorias deveriam ser consideradas 200 calorias, não importa se são provenientes de uma latinha de refrigerante ou de um pé de alface. O problema, segundo eles, é que os consumidores têm se exercitado cada vez menos. (O presidente mundial da Coca- Cola, Muhtar Kent, se valeu dessa tese num editorial do Wall Street Journal em outubro do ano passado.)

"O grande problema da publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis dirigida ao público infantil é que as crianças não conseguem entender a propaganda como mensagem comercial nem fazer uma análise crítica daquele conteúdo", diz Isabella Henriques, coordenadorageral do Programa Criança e Consumo, do Instituto Alana, ONG que trabalha para regulamentar a publicidade infantil. "A publicidade de alimentos e bebidas não saudáveis tem impacto direto no aumento dos índices de obesidade infantil, e as próprias empresas do setor confirmam isso ao assinar compromissos públicos de autorregulamentação."


O próximo encontro da OMS deve apimentar ainda mais o debate ao repercutir movimentos de restrição que rapidamente se espalham pelo mundo. O governo dos Estados Unidos, país mais liberal do mundo em termos de publicidade, promete endurecer a linha contra a indústria de alimentos considerados pouco saudáveis. O presidente Barack Obama marcou para julho uma audiência no Congresso para discutir possíveis restrições aos anúncios.

Em fevereiro, Michelle Obama colocou sua popularidade a serviço da causa. A primeira-dama americana reuniu-se com representantes das maiores empresas de alimentos do país com a meta de reduzir pela metade as taxas de obesidade infantil em apenas uma geração - uma em cada três crianças americanas está acima do peso. Menos de um mês depois, a Associação dos Fabricantes de Bebidas dos Estados Unidos, por meio de seus três principais representantes - Pepsico, Coca-Cola e Dr. Pepper Snapple -, divulgou um anúncio comprometendo-se a reduzir 88% da quantidade de calorias vendidas nas escolas públicas. Para isso, as três companhias pretendem substituir os tradicionais refrigerantes por outros itens de seu portfólio, como sucos e água - e, assim, manter a clientela.

Em sua jornada para tentar restringir a propaganda em alguns setores da economia, a Anvisa sofreu recentemente um revés. A pedido do Conar, a Advocacia Geral da União (AGU) divulgou um parecer em junho do ano passado suspendendo as deliberações da agência na regulamentação da publicidade de medicamentos por considerá-las excessivas e ilegais.

Antes disso, diversos laboratórios farmacêuticos já haviam conseguido liminares na Justiça eximindo- os de mostrar os alertas de danos à saúde após cada comercial (atualmente, os laboratórios incluem apenas a recomendação de procurar um médico em caso de persistência dos sintomas). "O parecer da AGU abre um enorme precedente", afirma o executivo de uma grande empresa de alimentos. "Se for necessário, também vamos recorrer à Justiça."

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