Revista Exame

As mudanças climáticas são uma ameaça muito maior que a covid-19

O aquecimento global e o desperdício são ameaças maiores do que a pandemia

Fumaça lançada por uma siderúrgica na China: o dióxido de carbono, assim como o coronavírus, não respeita fronteiras políticas (Qilai Shen/Bloomberg/Getty Images)

Fumaça lançada por uma siderúrgica na China: o dióxido de carbono, assim como o coronavírus, não respeita fronteiras políticas (Qilai Shen/Bloomberg/Getty Images)

DR

Da Redação

Publicado em 17 de dezembro de 2020 às 05h10.

Última atualização em 17 de dezembro de 2020 às 11h06.

A pandemia de covid-19 está devastando o mundo. Está provocando um processo infeccioso muito amplo (atingindo talvez até a maioria de nós), matando alguns, bloqueando nossas relações sociais normais, interrompendo muitas viagens internacionais e destruindo nossas economias e nosso comércio. Como será o mundo daqui a alguns anos, depois que esta crise aguda tiver passado?

Existe uma suposição generalizada de que, em breve, serão desenvolvidas vacinas para nos proteger contra a covid-19. Infelizmente, essa perspectiva ainda é muito incerta. As doenças variam em seu potencial para ser prevenidas por vacinas.

Algumas vacinas — contra a varíola e contra a febre amarela, por exemplo — oferecem proteção por décadas ou por toda a vida; contra a gripe, entretanto, só o fazem por menos de um ano. E ainda não existem vacinas contra a malária e a aids, apesar dos enormes esforços investidos em seu desenvolvimento.

A gripe frequentemente sofre mutações, ou suas várias cepas mudam proporcionalmente, de modo que uma nova vacina precisa ser desenvolvida todos os anos. E, enquanto as vacinas contra a poliomielite e contra a varíola protegem todos, as vacinas contra a gripe e contra a cólera protegem apenas cerca de metade dos indivíduos­ que as recebem. Portanto, é impossível prever a eficácia das esperadas vacinas contra a covid-19.

Mas vamos supor que vacinas eficazes contra a covid-19 estejam disponíveis em breve. Como isso conseguirá mudar o mundo? Cientistas em muitos países — China, Estados Unidos, Rússia, Grã-Bretanha e outros — estão em uma corrida para desenvolvê-las. Isso sugere diferentes cenários, variando da pior à melhor hipótese.

Já existem muitos sinais de um incipiente cenário de pior hipótese. Mesmo que algum país desenvolva uma vacina, teste e ateste sua eficácia, 7,7 bilhões de doses para 7,7 bilhões de pessoas no mundo não poderão ser fabricadas e distribuí­das em todo o planeta num piscar de olhos. Em primeiro lugar, os suprimentos serão escassos. Quem receberá as primeiras doses desejadas?

As propostas de bom senso estipulam que as primeiras doses devem ser reservadas ao pes­soal da saúde, porque todos os outros precisam das equipes médicas para administrar as doses para o resto de nós e para cuidar dos doentes. Entre aqueles de nós que não são médicos, pode-se esperar que pessoas ricas e influentes encontrem maneiras de adquirir as doses antes das pessoas pobres e sem influência.

Porém, essas considerações egoístas se aplicam apenas à distribuição de doses dentro do país que primeiro desenvolver uma vacina eficaz. É provável que haja egoís­mo internacional também: um país que desenvolve uma vacina certamente colocará seus próprios cidadãos em primeiro lugar. Essa priorização já aconteceu no que diz respeito às máscaras: há alguns meses, quando elas eram escassas e alguns carregamentos da China chegavam à Europa, onde ocorreram disputas e lutas de licitações, alguns países buscaram garantir o próprio abastecimento. Pior ainda, o primeiro país a desenvolver uma vacina poderá negar-se a cedê-la a rivais políticos ou econômicos.

Fazenda de produção de energia solar e eólica no deserto: não basta reduzir a dependência de combustíveis fósseis (Adamkaz/Getty Images)

Pensando bem, porém, políticas nacionais egoístas seriam suicidas. Mesmo no curto prazo, nenhum país pode alcançar a segurança duradoura contra a covid-19 para si mesmo, eliminando a doença dentro das próprias fronteiras. No mundo globalizado de hoje, a covid-19 simplesmente voltaria para esse país vindo de outros que não tivessem eliminado o vírus.

Isso já aconteceu na Nova Zelândia e no Vietnã, onde medidas rigorosas interromperam a transmissão local, mas os viajantes que retornavam continuaram a importar novos casos de covid-19. Isso ilustra uma importante conclusão: nenhum país estará seguro contra a covid-19 até que todos estejam. É um problema global que exige solução global.

SEM FRONTEIRAS
Eu considero esse fato uma boa notícia. Enfrentamos outros problemas globais que exigem soluções globais: especialmente as mudanças climáticas, o esgotamento de recursos em todo o mundo e as consequências desestabilizadoras da desigualdade entre os países em nosso mundo globalizado.

Assim como nenhum país pode se manter livre da covid-19 para sempre apenas eliminando o vírus dentro de suas fronteiras, nenhum país pode se proteger contra as mudanças climáticas apenas reduzindo sua dependência de combustíveis fósseis e reduzindo as próprias emissões de gases de efeito estufa. O dió­xido de carbono atmosférico, do mesmo modo que a covid-19, não respeita as fronteiras políticas.

Mas a mudança climática, o esgotamento de recursos e a desigualdade representam ameaças muito mais sérias à nossa sobrevivência e à qualidade­ de vida do que a atual pandemia. Mesmo na pior das hipóteses, se todos os humanos na Terra fossem expostos à covid-19 e 2% de nós morrêssemos como consequência, isso significaria “apenas” 154 milhões de mortes. Com isso, ainda ficariam 7,5 bilhões de pessoas vivas: muito mais do que o suficiente para garantir a sobrevivência humana. A covid-19 é uma ninharia em comparação com os perigos que as mudanças climáticas, o esgotamento de recursos e a desigualdade representam para todos nós.

Aglomeração no centro de São Paulo: nenhum país estará seguro contra a covid-19 até que todos estejam (Alexandre Schneider/Getty Images)

Por que, então, não fomos incentivados a agir contra as mudanças climáticas e outras ameaças globais no momento em que estamos sendo galvanizados pela ameaça comparativamente mais branda da covid-19? A resposta é óbvia: a covid-19 chama nossa atenção, atacando ou matando suas vítimas rápida e inequivocamente (dentro de alguns dias ou semanas).

Em contraste, a mudança climática nos destrói lentamente e muito menos claramente por meio de consequências indiretas, como redução da produção de alimentos, fome, eventos climáticos extremos e propagação de doen­ças tropicais em zonas temperadas. Consequentemente, temos sido lentos em reconhecer as mudanças climáticas como uma ameaça global que requer resposta global.

É por isso que a pandemia de covid-19 me dá esperança, mesmo enquanto lamento a perda de amigos queridos cuja vida ela tirou. Pela primeira vez na história mundial, as pessoas em todo o mundo estão sendo forçadas a reconhecer que todos nós enfrentamos uma ameaça comum e que nenhum país pode superá-la por si mesmo.

Se os povos do mundo se unirem, compulsivamente, para derrotar a covid-19, eles poderão aprender uma grande lição. Poderão se motivar a se unir, à força, para combater as mudanças climáticas, o esgotamento de recursos e a desigualdade. Nesse caso, a covid-19 terá trazido não somente tragédia mas também salvação, colocando finalmente os povos do mundo numa rota sustentável.


*Jared Diamond é professor de geografia na Universidade da Califórnia. Vencedor do Prêmio Pulitzer, é autor de Guns, Germs, and Steel (Project Syndicate, 2020, http://www.project-syndicate.org) Tradução de Anna Maria Dalle Luche

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