Revista Exame

Hering está com um pé no passado, outro no futuro

A centenária Hering voltou a crescer ao investir em tecnologia e retomar o foco em roupas básicas. O caminho da recuperação é longo

Thiago Hering, Guilherme Farinelli e Romael Soso: investimentos da Hering em tecnologia (Leandro Fonseca/Exame)

Thiago Hering, Guilherme Farinelli e Romael Soso: investimentos da Hering em tecnologia (Leandro Fonseca/Exame)

Mariana Desidério

Mariana Desidério

Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h46.

Última atualização em 24 de outubro de 2019 às 11h31.

Prestes a completar 140 anos, a tradicional fabricante catarinense de roupas Hering está com um olho no futuro e o outro no passado. A companhia passou os últimos anos andando de lado. O lucro de 2018, de 240 milhões de reais, foi 25% menor, em termos nominais, do que o de 2013, época em que o bem-sucedido investimento no varejo foi copiado por uma miríade de concorrentes. Mas o tempo foi passando, e a mágica da Hering foi ficando para trás.

Do final de 2012 a meados do ano passado, a empresa perdeu dois terços do valor de mercado num contexto que reunia crise econômica, avanço de concorrentes e crescimento do comércio eletrônico. Levou cinco anos para a Hering entender como responder às mudanças no mercado. A receita, que começou a ser implementada no ano passado, combina investimento em tecnologia com um resgate das origens. O investidor se animou: de junho de 2018 para cá, as ações subiram 150%, aumentando o valor da empresa para 5,4 bilhões de reais.

A mudança em curso aparece de forma palpável na loja da Hering do Shopping Morumbi, em São Paulo. Num formato batizado de Hering Experience, a unidade tem uma prateleira de destaque para o produto que fez a história da marca: a camiseta. Também está cheia de novidades tecnológicas.

Uma tela no provador possibilita ao cliente acessar a coleção pelo site e pedir uma peça ao vendedor sem deixar a cabine. Etiquetas novas permitem que cada peça vendida seja automaticamente descontada do estoque, acelerando a reposição. As compras podem ser fechadas em qualquer parte da loja, via celular. Até agora, duas lojas da marca foram reformadas no novo modelo.

Os investimentos em tecnologia estão em linha com as tendências do setor, que passou a ver na ligação do varejo físico com o online a grande vantagem das redes tradicionais. É uma das fortalezas, por exemplo, do Magazine Luiza, varejista de móveis e eletrodomésticos que valorizou 40 vezes na bolsa nos últimos três anos. Mas as mudanças mais simbólicas para a família Hering são mais sutis, e estão ligadas a um mergulho na história da empresa para entender sua essência.

Para a Hering, tão importante quanto saber que moda abraçar é descobrir quais modismos devem ser ignorados. “Nosso grande desafio é preservar a memória de uma empresa centenária, com produtos conhecidos e uma linguagem familiar, mas dialogar com o espírito do nosso tempo, que requer coragem para experimentar”, diz Thiago Hering, diretor executivo e membro da sexta geração da família.

Com 36 anos de idade, Thiago foi durante dez anos franqueado da Hering na Grande São Paulo antes de assumir, em junho de 2018, um cargo na empresa comandada pelo pai, Fábio, desde 2009. Com a chegada de Thiago, outros executivos deixaram a empresa e novas diretorias foram criadas, entre elas a de transformação digital, assumida por Guilherme Farinelli, ex-Boticário, e a de novos negócios, com Romael Soso.

O investimento em tecnologia foi acelerado. Até agora, há 500 lojas que unem as vendas físicas às online, como a finalização da compra pelo celular. A meta é que todas as 719 unidades usem o modelo até o fim do ano. A tecnologia também aparece nos bastidores. Se um produto entra muitas vezes no provador e tem poucas vendas, a Hering consegue mensurar isso e acionar a equipe de produto para verificar o que está acontecendo. A empresa também tem estreitado relações com startups por meio de um programa batizado de Inova Hering, no qual chama empreendedores para pensar soluções para a companhia.

Os dados sobre os artigos com mais saída nas lojas têm sido usados para melhorar a reposição de estoque dos franqueados, reduzindo o volume de peças encalhadas. A mudança na gestão envolve todas as marcas da companhia, que, além de Hering, tem a Dzarm e as infantis PUC e Hering Kids. A nova loja da PUC, inaugurada no mês passado, também no Shopping Morumbi, não tem paredes e as araras de roupas ficam expostas no corredor. Para atrair as crianças ao espaço, foram instalados brinquedos, entre os quais uma bateria.

A Hering foi fundada em Blumenau, Santa Catarina, em 1880, pelos imigrantes alemães Hermann e Bruno Hering. As primeiras camisetas feitas pelos irmãos Hering foram tecidas em teares movidos a manivela. Uma dessas máquinas está exposta no museu da companhia, visitado por EXAME, e ainda funciona.

A Hering era uma referência industrial e, na virada do século 21, promoveu uma renovação dolorida. A companhia, que chegou a ter 13 marcas, reduziu o número a quatro no início dos anos 2000 com a crescente concorrência de importados. O varejo salvou o negócio ao inaugurar centenas de franquias Brasil afora e com a abertura de capital na bolsa em 2007. Foi quando a Hering passou a ser copiada, incensada e, aos poucos, parou de mirar o futuro.

“Tivemos uma atitude equivocada de querer ser parecidos com as grandes magazines, e encontramos um oceano vermelho. Perdemos nossa essência”, afirma Fábio Hering, o presidente.

Amancio Ortega, da Zara: referência em fast fashion copiada em todo o mundo | Europa Press/Getty Images

Ele se refere aos últimos anos, período em que a empresa tentou surfar a onda do fast fashion — modelo de produção em que os lançamentos chegam a ser semanais —, quando sua essência sempre esteve nas roupas básicas e mais duráveis. Era o início dos anos 2010, e varejistas nacionais buscavam formas de se destacar frente à concorrência de redes internacionais, como a Zara, controlada pelo bilionário espanhol Amancio Ortega e referência em velocidade.

“A Hering saiu do seu DNA. Retomar isso e voltar a ter um relacionamento intenso com o consumidor não é tarefa simples e pode levar anos”, afirma Ana Paula Tozzi, presidente da AGR Consultores. O fast fashion fez vítimas em todo o mundo, e um dos exemplos mais citados nos corredores da Hering é outra varejista especializada em roupas básicas, a americana GAP. A marca tinha foco em peças básicas até os executivos acharem que era hora de acelerar os lançamentos. A companhia perdeu espaço e valor de mercado — hoje vale 6,5 bilhões de dólares, um terço do que valia em 1999. “Os clientes não estavam cansados do básico. Os executivos é que estavam”, diz Thiago Hering.

“Foi uma grande lição para nós.” A seu favor, a Hering tem a mudança no comportamento dos consumidores, que agora passaram a valorizar roupas mais duráveis e produzidas localmente, como a companhia catarinense sempre fez. “A nova geração está preocupada em comprar menos e melhor”, diz Luiz Arruda, diretor da consultoria de tendências WGSN.

Nova loja da marca PUC: até bateria para entreter a criançada | Divulgação

A recuperação nos resultados vem acontecendo desde 2017, mas ainda é tímida. O lucro subiu para 260 milhões de reais em 2017, mas diminuiu novamente no ano passado. “Diversos projetos promissores estavam andando devagar e foram acelerados. Vemos muito potencial na empresa”, afirma Hilton Victor, analista de ações da Verde Asset, gestora que tem cerca de 5% da Hering.

Uma das preocupações da Hering é reaproximar-se do público jovem, que não tem a memória da marca em seus melhores dias. Em abril, a empresa contratou a cantora Iza como garota-propaganda. Ela aparece usando roupas confortáveis e cantando uma música de Tim Maia gravada no final dos anos 80. É a Hering apostando que o que é bom nunca sai de moda. Mas nada contra pegar carona nas novidades. 

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