Revista Exame

Um passo além do bitcoin

Antes voltados apenas para os endinheirados, os ativos alternativos passam a ser oferecidos a pequenos investidores

Reinaldo Rabelo, CEO da 2TM, e Gustavo Chamati, co-fundador da startup  (Germano Lüders/Exame)

Reinaldo Rabelo, CEO da 2TM, e Gustavo Chamati, co-fundador da startup (Germano Lüders/Exame)

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Natália Flach

Publicado em 30 de janeiro de 2020 às 05h32.

Última atualização em 30 de janeiro de 2020 às 12h22.

As ofertas de renda variável das corretoras têm atraído cada vez mais brasileiros que, durante anos, compraram apenas ativos de renda fixa. O motivo é que investimentos atrelados à inflação e à taxa de juro rendem um percentual diminuto na visão dos investidores acostumados com retornos elevados. Na tentativa de ganhar mais, eles passaram a aplicar em ativos com uma dose extra de risco, como ações e fundos negociados na bolsa, dobrando o número de pessoas físicas na B3 para 1,7 milhão em 2019.

Mas o rol de produtos financeiros não se resume aos chamados ativos tradicionais. Junto com eles ganha espaço uma seção inteira voltada apenas para endinheirados que aplicam seus recursos no private banking dos bancos, nas gestoras de fortunas e corretoras. Nas gôndolas desses supermercados financeiros são oferecidos os chamados investimentos alternativos — como dívidas soberanas, crédito privado, cotas de fundos de participação em pequenas e médias empresas. São produtos adquiridos por indivíduos com pelo menos 1 milhão de reais disponíveis para aplicação. Entre as principais características desses ativos estão os retornos e os riscos acentuados. Isso porque eles se enquadram na categoria de ilíquidos e dificilmente são revendidos antes de seu vencimento, uma vez que não são listados em bolsa nem em mercado de balcão.   

Ao perceber que pequenos investidores também têm se interessado em montar um portfólio mais diversificado, a plataforma de criptoativos Mercado Bitcoin decidiu transformar produtos alternativos em opções viáveis para quem ainda não é milionário. Para tanto, ampliou seu escopo e passou a ofertar precatórios na nova plataforma MB Digital Asset. O mercado é pouco conhecido, mas enorme: estados e municípios devem cerca de 141 bilhões de reais nesses títulos, de acordo com estimativas do Fórum Nacional de Precatórios. É um volume expressivo principalmente se comparado aos fundos imobiliários, que alcançaram 119 bilhões de reais em patrimônio em dezembro do ano passado, conforme os dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima).

O fato de essa iniciativa ser tocada pela Mercado Bitcoin não é por acaso. As moedas digitais, em especial a que dá nome à corretora, foram o primeiro ativo alternativo de muitos investidores que se entusiasmaram com a alta de mais de 1.300% em 2017. Em 2018, a moeda digital recuou 70%, para registrar no ano passado, apesar dos altos e baixos, um avanço de 95%. Foi o suficiente para levar a corretora a bater a marca de 11 bilhões de reais negociados na plataforma criada em 2013. Só que, com a mesma intensidade que os preços sobem, eles podem cair. Portanto, é um investimento para quem aguenta muita volatilidade.

Aos poucos, a Mercado Bitcoin viu a oportunidade de oferecer uma emoção mais controlada. E os interessados não são poucos. Há 5,6 milhões de pessoas cadastradas no programa do Tesouro Direto. Com a nova iniciativa, a Mercado Bitcoin coloca-se ao mesmo tempo como corretora de investimentos, tal qual a XP, e como depositária, como a B3. “Estamos organizando o mercado de ativos alternativos e não regulados pela Comissão de Valores Mobiliários”, diz Gustavo Chamati, presidente da Mercado Bitcoin, que hoje reúne 1,8 milhão de clientes — mais do que a própria bolsa.

A negociaciação de precatórios não se enquadra na esfera de competência do xerife de mercado. Procurada, a CVM diz que se dispõe a esclarecer dúvidas e a receber denúncias e reclamações dos investidores. Atualmente, há 25 milhões de reais em precatórios sendo negociados pela Mercado Bitcoin, e o valor de cada fração (token) é de 100 reais. “É uma relação de ganha-ganha tanto para os pequenos investidores, que não teriam acesso a esses investimentos de outra forma que não pela tokenização, quanto para o detentor da dívida. Isso porque fundos e bancos costumam comprar a dívida com deságio de 55%, e na plataforma estamos falando de um desconto de 20% a 30%”, diz Chamati. Por entender que o pequeno investidor pode ter de sair da aplicação antes do pagamento de estados e municípios, a empresa de criptoativos lançou um mercado secundário de negociação, um ambiente em que os tokens podem ser revendidos entre os participantes. “Estamos discutindo a possibilidade de contratar um formador de mercado para comprar e vender os precatórios e, assim, dar ainda mais liquidez à plataforma”, diz Reinaldo Rabelo, responsável pela unidade de ativos digitais da empresa.

O interesse por ativos alternativos não é exclusividade do Brasil. A expectativa é que essa classe cresça em todo o mundo e alcance 14 trilhões de dólares neste ano e 21 trilhões em 2025. Esse montante, caso se confirme, representará quase o dobro do volume de 2017, de acordo com um estudo da consultoria PwC. A maior fatia desses recursos deve ser destinada a fundos de private equity, que compram participação em companhias e tiveram retorno médio de 17,3% em 2017 (dado mais recente). Apesar de a rentabilidade saltar aos olhos, o investidor — independentemente se é de pequeno ou grande porte, ou se tem mais ou menos conhecimento do mercado — não deve se desfazer de todos os produtos tradicionais e alocar em alternativos. Essa classe de ativos deve ser uma parcela pequena da carteira, pois é bem arriscada. “Ativos ilíquidos devem representar cerca de 5% a 7% do portfólio”, afirma Reinaldo Lacerda, sócio fundador da gestora de patrimônio Hieron.

Muller, da Monkey Exchange: a meta é negociar 15 bilhões de reais em 2020 | Germano Lüders

Aos poucos surgem empresas com novas estratégias para atacar esse mercado em maturação. A startup Nexoos faz a ponte entre pequenos investidores e pequenas e médias empresas que precisam de crédito sem garantias. No ano passado, o volume transacionado pela Nexoos foi de 257 milhões de reais e a expectativa é atingir 1 bilhão em 2020. A rentabilidade média dos aplicadores é de 18%, enquanto para as companhias que contraem os créditos o juro médio é de 30,5% ao ano. “É vantajoso para as duas pontas, já que muitos empreendedores não têm linha de financiamento nos bancos e acabam apelando para o cheque especial, que cobra 8% ao mês”, afirma Daniel Gomes, cofundador da Nexoos.

O segmento de pequenas e médias empresas também está no radar da Mercado Bitcoin, que pretende lançar uma modalidade de antecipação de recebíveis devidos pelas grandes empresas. Trata-se de pagamento antecipado de indústrias como as de material de construção Gerdau e Saint Gobain a seus fornecedores pela entrega dos insumos. O dinheiro, muitas vezes, é usado como capital de giro ou como investimento no processo produtivo. Para levar esses papéis a investidores de varejo, cujo risco é o calote das indústrias, a Mercado Bitcoin fez uma parceria com a startup Monkey Exchange, de intermediação financeira, que já originou 1 bilhão de reais desses ativos em sua plataforma. A expectativa é chegar a 15 bilhões de reais transacionados neste ano. “A meta para 2020 é levar a operação para os Estados Unidos com a abertura de um escritório de representação em Nova York”, afirma Gustavo Muller, presidente da Monkey Exchange.

O limite para os investimentos alternativos é a criatividade. Está na lista da Mercado Bitcoin outro ativo pouco conhecido: a cota cancelada de consórcio imobiliário. Hoje, se o consorciado não consegue mais pagar as prestações, precisa vender esse papel com deságio a uma empresa especializada em créditos em atraso, como a Jive. Ela quita tanto os valores pendentes quanto os demais até o fim da operação. Com isso, o risco é o banco ou a empresa do consórcio não quitar o compromisso. O mesmo raciocínio é aplicado ao investidor pessoa física, com a diferença de que se trata de um conjunto de consórcios a ser oferecidos como token. Há no Brasil 2,4 milhões de cotas de consórcio imobiliário, das quais 63% estão canceladas, de acordo com dados do Banco Central.

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A ideia é que, com todas essas opções, os pequenos investidores possam, enfim, ter uma carteira tão diversificada quanto a dos grandes investidores. Já para as financeiras como a Mercado Bitcoin esse pode ser o chamariz para um crescimento mais consistente. Nesse contexto, o foco em bitcoins vai ficar só no nome mesmo.

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