Revista Exame

Tudo tem um limite no consumo

O governo põe novas fichas no consumo como motor do crescimento. Mas endividamento e inadimplência em alta indicam que o modelo está se esgotando

Comércio cheio no Rio de Janeiro: o consumidor foi às compras, mas agora seu orçamento está apertado (Marcelo Correa/EXAME.com)

Comércio cheio no Rio de Janeiro: o consumidor foi às compras, mas agora seu orçamento está apertado (Marcelo Correa/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 1 de junho de 2012 às 06h00.

São Paulo - Vá às compras. Esse foi o recado que o governo passou aos brasileiros nos últimos anos. O propósito foi utilizar o mercado interno como o principal motor do crescimento econômico. As comportas do crédito, fechadas por muitos anos, foram finalmente abertas.

Acompanhadas de mais emprego e renda, permitiram que dezenas de milhões de pessoas no país adentrassem o paraíso do consumo. Muitas famílias, agora integrantes de uma nova classe média, adquiriram pela primeira vez itens como máquina de lavar, celular, computador e televisor.

Outras tantas trocaram de móveis, de carro e de casa. Como resultado, a economia cresceu 40% de 2004 a 2011. Tudo isso foi bom para o país e para os brasileiros. Nenhuma bonança, porém, dura para sempre. E, mesmo aquilo que é bom, se levado à saturação, pode causar problemas.

É o que o Brasil vive agora. O aumento do crédito levou as famílias a um nível recorde de endividamento. Perto de 45% de sua renda anual está comprometida com dívidas, segundo o Banco Central. Por mês, o brasileiro gasta quase um quarto do salário com dívidas, enquanto os americanos, tradicionais gastadores, comprometem 16%.

A consequência do orçamento apertado é a dificuldade de manter em dia os compromissos. Os dados do BC indicam que, ho­je, oito de cada 100 empréstimos estão com prestação atrasada acima de 90 dias. É o pata­mar mais elevado desde 2009, pior ano da crise mundial.

São sinais eloquentes de que o es­paço para o crescimento amparado no consumo está se esgotando. “O incentivo ao ­consumo pelo aumento de crédito é um modelo limitado, que não vai garantir o crescimento sustentado do Brasil nos próximos anos”, diz o economista Albert Fishlow, do Centro de Estudos Brasileiros da Universidade Columbia, nos Estados Unidos. “O problema não é o consumo em si, mas o foco, que deve ser mudado para os investimentos.”

O governo, porém, parece não ter entendido os sinais. Diante dos indicadores do enfraquecimento da atividade nos primeiros meses do ano, seus movimentos recentes demonstram uma disposição de explorar ainda mais o modelo de indução ao consumo para tentar reanimar a economia.


É uma atitude de quem não aceita as evidências de que há uma exaustão — e de que talvez seja a hora de uma pausa para arrumação. Até o fechamento desta edição, em 18 de maio, a equipe econômica estudava meios de impulsionar com mais crédito as vendas de carros — como sempre, um setor priorizado pelas autoridades de Brasília.

Entre as medidas aventadas estavam a esticada do número de prestações e a redução do valor pago como entrada. Se confirmada, ela se soma a uma série de estímulos pró-consumo nos últimos meses.

Curiosamente, é o próprio setor automotivo que dá provas de que o modelo esbarrou num limite. Os financiamentos fáceis, sem entrada e em 60 parcelas mensais, fizeram o país chegar a 3,5 milhões de carros vendidos por ano. Ótimo. Mas o crédito barato que nos transformou no quarto maior mercado mundial para as montadoras gerou uma inadimplência de quase 6% em março, nível jamais atingido.

O índice assustou os bancos, que limitaram os prazos e voltaram a exigir o pagamento de entrada. Resultado: a venda de carros de janeiro a abril caiu 5% na comparação com o mesmo período de 2011. “A ampliação do crédito imobiliário e de outras dívidas compete com o financiamento do carro”, diz Sérgio Vale, economista-chefe da consultoria MB Associados, indicando que o brasileiro pode estar superendividado.

O México passou por situação parecida nos anos 2000, quando reformas impulsionaram o crédito imobiliário e a venda de carros entrou em declínio. Naquele momento, muitos mexicanos foram obrigados a escolher entre pagar uma coisa ou outra. Para Sérgio Habib, presidente da importadora chinesa JAC, a disputa pelo dinheiro do consumidor não se limita a imóveis e carros.

“Nós brigamos com o iPhone, a internet e com todo o varejo. Uma prestação de 150 reais por mês com TV a cabo representa 150 reais a menos para o financiamento do automóvel.” O bolso, afinal, é um só. 

Pensar que o brasileiro chegou ao limite de endividamento é um pesadelo para os varejistas. Roberto Barboza, diretor de vendas da fabricante de eletrônicos LG, diz ter calafrios toda vez que sai um novo indicador de crédito — o que não impede a empresa de projetar vendas 20% maiores em 2012 com promoções e lançamentos.


Para os integrantes da equipe da presidente Dilma Rousseff, a hipótese de o modelo atual de crescimento estar se esgotando soa ainda pior. A expectativa de que a economia cresça 4,5% neste ano ficou para trás. Os analistas estimam cres­cimento de 2,5% a 3%. Para garantir pelo menos isso é que o governo saca novos estímulos para o brasileiro gastar.

Gastança ou poupança?

Endividar-se não é necessariamente um problema. O crédito corresponde a 200% do PIB nos Estados Unidos e, na Alemanha, a 100%. No Brasil, a relação está próxima de 50%. O problema está no tipo de compromisso assumido. Aqui, apenas 5% do crédito é para a compra de imóveis — uma dívida com perfil bem mais longo e estável.

Na Alemanha, a fatia é de 40%. “Em outros países, as pessoas compram imóveis, deixam de pagar aluguel e fazem poupança”, diz o economista Armando Castelar, da Fundação Getulio Vargas. “No Brasil, as pessoas fazem dívida para passar férias em Orlando.”

Devido às deficiências da economia brasileira, mesmo num cenário favorável — de renda em alta, juros e desemprego em baixa, como o atual —, a alta no consumo pode ter duas consequências: mais inflação e mais déficit nas contas externas. Não é difícil entender os motivos.

Aumentos nas compras levaram a indústria ao limite da capacidade de produção e, quando há mais pessoas dispostas a comprar o mesmo bem, ele fica mais caro. A opção é o aumento da importação, o que provoca déficit na balança comercial e pode piorar as contas exter­nas — algo que já começou a ocorrer.

A solução, de acordo com os analistas, seria trocar o modelo da gastança pela ênfase no investimento. A taxa de investimentos fechou 2011 abaixo de 20% do PIB. O ideal seria pelo menos 25% para levar a economia a ter um indispensável ganho de produtividade. Viajar ao exterior pode ser divertido — mas passear e ir às compras não pode se confundir com uma estratégia nacional de crescimento.

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