Karoliny Silveira, do Magazine Luiza: o trabalho intermitente foi fundamental para a vendedora voltar aos estudos (Leandro Fonseca/Exame)
André Jankavski
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h48.
Última atualização em 12 de novembro de 2019 às 17h56.
Durante nove meses, a paulistana Karoliny Silveira, de 22 anos, fez parte de uma triste e comum rotina brasileira: batia em todas as portas, mas não conseguia emprego. Depois de trabalhar dois anos como vendedora em uma loja de roupas, foi demitida em novembro de 2018. Daí em diante, passou a entregar currículos pessoalmente e pela internet, sem sucesso. Até que, em julho deste ano, sua cunhada avisou que a varejista Magazine Luiza estava com vagas abertas. Porém, eram de trabalho intermitente. Ou seja, caso fosse contratada, Karoliny teria de aceitar um contrato que não estipulava horários nem dias fixos de jornada.
Sem nada à mão, ela decidiu enviar o currículo e foi aceita. Atravessou a cidade de São Paulo, de Guaianazes, na zona leste, até a Vila Guilherme, na zona norte, e começou a trabalhar no estoque da loja quatro dias por semana, além de domingos alternados. Passados dois meses, virou operadora de caixa e sua jornada foi reduzida a dois dias em cada sete — ao mesmo tempo, foi convidada a atuar como vendedora aos domingos.
Dessa forma ela voltou a ter condições de pagar os cursos de inglês e de comissária de bordo, um custo de 700 reais por mês. “Não teria condições de pagar meus estudos sem trabalhar. E essa vaga serviu para mostrar à empresa que eu sou uma boa profissional”, diz Karoliny. Três meses após o início da experiência, o Magazine Luiza a efetivou como vendedora na jornada completa.
Karoliny passou relativamente pouco tempo como parte da estatística de desempregados. Mas ainda há 12,6 milhões de pessoas no país à procura de um trabalho. O índice de desemprego, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, está em 11,8% da população ativa. Com a economia fraca, as contratações não têm como deslanchar. Mas os primeiros sinais positivos apareceram: em setembro, houve um saldo de 157.000 empregos criados no país — no ano, o acumulado é de 762.000. A vendedora só conseguiu a vaga de intermitente por causa da reforma trabalhista, que vai completar dois anos em vigor em novembro. De lá para cá, 19% do saldo de postos criados — o correspondente a 146.000 empregos — pode ser atribuído à nova modalidade de contratação, juntamente com o contrato de trabalho parcial, que também foi reformulado (veja quadro abaixo).
Algumas empresas e alguns setores estão adotando as novas modalidades de maneira mais acelerada. O setor de serviços é o campeão, com 54% do total de vagas, seguido pelo comércio, com 26%. Há dois anos, o Magazine Luiza iniciou esse movimento e hoje tem 4 200 funcionários intermitentes. Outros 1.800 foram efetivados na jornada tradicional “A empresa decidiu apostar na nova reforma e está colhendo frutos”, diz Luiz Liporoni, gerente jurídico do Magazine Luiza. “O trabalho intermitente é praticamente um celeiro de oportunidades. Quando pensamos em contratar para a jornada clássica, vamos direto aos que atuam nessa modalidade.”
Outras empresas estão indo pelo mesmo caminho. A fabricante de fios e cabos elétricos Sil fez 150 contratações neste ano, 80 delas de intermitentes. Até agora 21 foram efetivados. “Antes não chegávamos a contratar nem dez temporários por ano”, diz Marcos Bisi, diretor de recursos humanos e jurídico da Sil, que emprega 400 pessoas em todo o país.
Não por acaso, representações trabalhistas, como a Força Sindical e a Central Única dos Trabalhadores, e políticos de oposição usam a taxa de desemprego para dizer que a reforma não deu certo. Na visão de especialistas, ainda há tempo para que os resultados apareçam mais fortemente — e por causa da legislação. Os economistas Bruno Ottoni e Tiago Cabral, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas, fizeram um estudo do impacto de reformas trabalhistas na Alemanha e na Austrália.
Enquanto no país europeu a redução direta da taxa de desemprego atribuída à reforma foi de 3,4 pontos percentuais desde 2003, na Austrália houve queda de 1,2 ponto desde o início da nova legislação em 1994. A reforma trabalhista daqui pode ser responsável por uma diminuição semelhante até 2030.
Para isso, é necessário que as mudanças sejam realmente implementadas. “A literatura econômica mostra que há efeitos positivos após as reformas, mas para que isso aconteça é preciso segurança jurídica”, diz Ottoni. Alguns passos estão sendo dados, mesmo que ainda devagar. Em agosto, o Magazine Luiza conseguiu uma grande vitória: o Tribunal Superior do Trabalho derrubou uma decisão contrária ao trabalho intermitente, que havia sido visto como ilegal pelo Tribunal Regional do Trabalho da Terceira Região de Minas Gerais.
A decisão foi entendida como um aceno à segurança jurídica também prometida na época das discussões da reforma. O atual secretário de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, foi um dos principais responsáveis pela aprovação do projeto — ele era deputado federal pelo PSDB. Em 2017, Marinho vendia a reforma como uma maneira de reduzir a judicialização.
De fato, o Brasil era um destaque negativo nesse quesito. Por causa da facilidade de acesso à Justiça do Trabalho, num cenário em que o funcionário que processasse a empresa não precisaria arcar com as custas do processo, mesmo em caso de derrota, o volume só crescia. Há três anos, o total de ações trabalhistas chegou a 3,9 milhões. Com a responsabilização maior dos aventureiros, o número caiu para 1,7 milhão no ano passado. O valor pedido nos processos também diminuiu.
Na empresa de tecnologia Stefanini, houve uma redução de 50% na quantidade de ações trabalhistas. “Em algumas empresas do grupo, a queda do valor solicitado chegou a ser de 80%. E creio que, se não existisse a lei, o desemprego estaria maior”, diz Marco Stefanini, fundador e acionista da empresa.
Apesar da redução do número de processos, diversas empresas afirmaram que não aceleram as contratações de trabalhadores intermitentes ou parciais por ter dúvida do que a Justiça definirá que é legal. Ainda há 14 Ações Diretas de Inconstitucionalidade questionando pontos da nova legislação no Supremo Tribunal Federal.
Entre os temas apontados estão exatamente o trabalho intermitente, a limitação de valor de indenização para ações de danos morais e a homologação de acordos entre funcionários e patrões sem a anuência dos sindicatos. Para o presidente do TST, a análise da legislação como um todo levará mais três anos. “Há muitas questões que precisam vir para a análise do Tribunal e que, aí, sim, gerarão mais segurança jurídica”, diz o ministro Pereira.
Outro ponto que não engrenou do jeito que o mercado esperava foi o trabalho remoto, conhecido como home office. A modalidade demora para ter adesão até mesmo em contratações de terceirizados. Desde 2017, a Vikstar, empresa de gestão de clientes e terceirização de processos de negócios com 9 000 empregados, colocou no portfólio a possibilidade do home office para as empresas que contratam seus serviços. A vantagem dessa modalidade — em que o trabalho em casa estaria no contrato dos atendentes — está em gastos até 13% menores, já que não seria necessário o pagamento de vale-transporte e o funcionário poderia usar computador e internet próprios. Mas até agora nenhum contrato assim foi fechado.
Segundo Mário Câmara, presidente da Vikstar, a companhia está perto de fechar contratos com duas empresas no Nordeste: uma de saneamento e uma distribuidora de energia. No total, 300 pessoas devem ser contratadas. “Estamos na fase de convencimento das empresas, pois existe uma resistência grande ao home office”, diz Câmara. Os temores são ligados principalmente à segurança dos dados quando o atendente opera de fora.
O governo movimenta-se para que a reforma pegue de vez. O secretário Marinho criou um Grupo de Altos Estudos do Trabalho com quatro equipes para modernizar as leis. Até o fim de novembro, o grupo deverá apresentar um relatório com novos pontos a ser melhorados. Entre eles estão o fim da unicidade sindical, que abriria o mercado para que haja mais de um sindicato por região, e a modernização da legislação para adequá-la a novos tipos de trabalho, como motoristas de aplicativos. Seria uma “minirreforma trabalhista”. “Precisamos avançar no entendimento do que freia o potencial de crescimento do emprego no país”, diz Marinho.
A carteira verde e amarela, prometida pelo presidente Jair Bolsonaro na campanha, segue na pauta do ministro da Economia, Paulo Guedes. A ideia é reduzir a quantidade de direitos trabalhistas para facilitar a recolocação no mercado especialmente dos mais jovens. “Temos uma legislação atrasada. É necessário tratar de assuntos da nova economia, facilitar o trabalho digital”, diz Juliano Barra, professor de direito trabalhista da escola de negócios Ibmec. O Brasil precisa ficar de olho nas movimentações que se dão no mundo: uma análise da consultoria IDados aponta que 58% dos empregos no país podem ser substituídos por máquinas nos próximos 20 anos. Num ambiente assim, as reformas são, na realidade, uma necessidade contínua.
Para o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, ainda há ajustes a fazer nas leis, e novas mudanças serão necessárias com a automação | André Jankavski
As urnas foram duras com parlamentares protagonistas na agenda de reformas levada à frente pelo governo do ex-presidente Michel Temer. Um dos que não conseguiram a reeleição foi o atual secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho. Depois de ser o relator e um dos principais defensores da reforma trabalhista, em 2017, o ex-deputado federal pelo PSDB viu sua votação minguar. Ele, no entanto, foi logo convidado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, para ser o homem forte da reforma da Previdência, que está em fase final de aprovação. Agora Marinho volta o foco outra vez para a legislação trabalhista com a criação do Grupo de Altos Estudos do Trabalho. E não aceita as críticas de que a reforma não ajudou a gerar empregos. “A criação das modalidades de contratação será um facilitador para a geração de empregos, mas sempre no compasso da economia”, diz Marinho na entrevista a seguir.
Qual é sua avaliação da reforma trabalhista dois anos depois?
A reforma teve como objetivo o aumento da segurança jurídica na esfera trabalhista e o aprimoramento das formas de contratação. Coibiu-se o abuso na Justiça do Trabalho e foi reduzido o número de processos. Como resultado, temos o atendimento mais célere daqueles que realmente precisam da Justiça. Isso é garantia de direitos.
Mas por que a reforma não criou tantos empregos quanto era esperado inicialmente?
Ao contrário do que aconteceu durante a recessão, não tivemos aumento do desemprego após o início da modernização trabalhista. Com relação aos empregos formais, de janeiro de 2018 a agosto de 2019 houve 1 milhão de admissões a mais do que o número de desligamentos. Podemos discutir a velocidade de recuperação, mas ela não é relacionada à reforma, e sim às condições fiscais, que só se deterioravam no Brasil. O país luta para sair da pior recessão de nossa história econômica. A criação das novas modalidades de contratação será, cada vez mais, um facilitador para a geração de empregos, mas sempre no compasso da recuperação da economia.
Empresários afirmam que não contrataram mais intermitentes por falta de segurança jurídica. Como resolver isso?
As novas modalidades criadas pela última reforma trabalhista foram uma inovação para o mercado, estendendo aos trabalhadores intermitentes todos os direitos trabalhistas dos demais empregados. O trabalhador antes não podia ser contratado como intermitente. Não havia um instrumento legal, o que empurrava milhares de trabalhadores para a informalidade. Eles estavam à margem da CLT. O Brasil ainda tem 40% da população economicamente ativa fora do radar da formalização.
Mas ainda há o receio de que possa haver reversões das decisões na Justiça, não?
O que os dados mostram é que o volume de contratações está aumentando progressivamente nessas modalidades. No caso dos intermitentes, a média mensal de contratação neste ano é 51% maior do que a de 2018. Isso demonstra que as modalidades vêm ganhando a confiança do mercado. Com a utilização das novas opções de contratação, sugestões de formas de aprimoramento chegarão até o governo, que terá de discuti-las com o Congresso.
O senhor está preparando uma nova reforma trabalhista. Quais serão as prioridades?
Temos 12,6 milhões de desocupados, 4,9 milhões de desalentados, a taxa de desemprego entre os jovens supera os 25% e a produtividade do trabalho no Brasil está estagnada há 30 anos. Precisamos avançar no entendimento das causas que freiam o potencial de crescimento do emprego no país. O objetivo do grupo é fazer o diagnóstico da situação atual e do futuro do trabalho. São discutidos os pontos de segurança jurídica, relações entre trabalho e Previdência, eficiência e eficácia das políticas públicas, as altas taxas de informalidade e de rotatividade do mercado de trabalho brasileiro e a liberdade sindical. Esta última é ponto pacífico em todos os países que se fazem representados na Organização Internacional do Trabalho, mas por muitos anos foi algo visto como um tabu no Brasil.
Em quais países o senhor se inspira como modelo para a nova legislação do trabalho?
Todos os países possuem peculiaridades em seu mercado de trabalho. Mas devemos tomar cuidado para não permitir que o Brasil tenha uma força de trabalho tão desconectada do padrão mundial de inserção nas cadeias produtivas globais. Entendo que mudanças na área trabalhista nos países mais modernos se deram de forma perene e sem tabu. Alguns países, como a Alemanha, não fizeram apenas uma reforma trabalhista, mas várias ao longo dos anos. Já Espanha e Portugal fizeram reformas nos moldes da brasileira. Nossa avaliação é que a evolução no mercado de trabalho tem se acelerado e não podemos ter um arcabouço legislativo defasado.
A legislação trabalhista precisa ser atualizada com a automação do trabalho? Há espaço para essas mudanças no Congresso?
A dinâmica social é sempre mais veloz do que a evolução das normas. E isso é saudável, porque, caso assim não fosse, teríamos uma grande insegurança jurídica. Não apenas com mudanças na legislação mas também com políticas ativas que garantam a cada trabalhador a capacidade de manter o aprendizado ao longo de sua vida laboral, acesso ao microcrédito, à bancarização e à cultura de empreender. Temos um Parlamento reformista, propício a mudanças. Nossa posição será sempre de mostrar a verdade e convencer os parlamentares com os fatos, para que possamos avançar.
Estudos mostram que as máquinas podem acabar com metade dos empregos. Qual é o papel do governo para evitar uma massificação de desempregados?
Nossa legislação e políticas públicas precisam proteger e fomentar o progresso trazido pelas mudanças. O que a história nos mostra é que as inovações tecnológicas têm o efeito de mudar o foco das oportunidades de trabalho, sem necessariamente extinguir a oferta de empregos. Isso se deu em todos os grandes saltos da história da humanidade.