Revista Exame

Só Mantega está tranquilo

Para o ministro da Fazenda, Guido Mantega, o vazamento de dados sigilosos da Receita Federal é algo corriqueiro

Guido Mantega, a quem a Receita Federal está subordinada: "Vazamentos sempre ocorreram. Se você olhar para o passado, aconteceram vários" (Lailson Santos/EXAME.com)

Guido Mantega, a quem a Receita Federal está subordinada: "Vazamentos sempre ocorreram. Se você olhar para o passado, aconteceram vários" (Lailson Santos/EXAME.com)

DR

Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Temida pela voracidade fiscal e respeitada pela qualidade do corpo técnico até 2008, quando era comandada por Jorge Rachid, um servidor apartidário, a Secretaria da Receita Federal era reconhecida como uma ilha de excelência na máquina pública. Ao lado de Banco Central, Embrapa e mais um punhado de centros de prestígio do aparelho estatal, a Receita chegou a ser apontada como uma das mais modernas do mundo, pela eficiência com que os contribuintes prestam anualmente suas contas. Desde então, após uma tão breve quanto desastrada gestão da ex-secretária Lina Vieira — sindicalista demitida há um ano por sucessivas quedas na arrecadação pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, a quem a Receita é subordinada —, o órgão vive a pior crise desde sua fundação, em
1968. Hoje dirigido por Otacílio Cartaxo, um servidor de carreira na casa, o Fisco se vê abalado por escândalos de violação do sigilo fiscal não de um, mas de milhares de brasileiros. Apenas em setembro de 2009, numa única penada, foram devassados os dados de 2 950 contribuintes numa delegacia da Receita em Mauá, na Grande São Paulo, entre os quais os do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge. Perto dali, em Santo André, o contador petista Antônio Carlos Atella Ferreira violou o sigilo de Verônica Serra, filha do candidato tucano à Presidência, José Serra. Em Formiga, no sul de Minas Gerais, o analista da Receita Gilberto Amarante, mais um filiado ao PT, também acessou indevidamente dados de Eduardo Jorge. Os indícios são de que a motivação dessas violações seria a suposta montagem de um dossiê para favorecer a campanha da candidata à Presidência da República Dilma Rousseff. "O aspecto mais grave dos episódios é o uso de um órgão de Estado para a prática de terrorismo político", diz o consultor Everardo Maciel, secretário da Receita de 1995 a 2002.

"Armação eleitoral"

Assim como as Forças Armadas, o Itamaraty ou o BC, a Receita não pertence a um governo ou a um partido, mas ao Estado. Esteve aqui em governos anteriores e estará por aqui nos próximos. A constatação do uso dessa máquina para fins políticos já seria suficientemente escandalosa. Mas as explicações dadas por seus responsáveis após a eclosão das notícias sobre as quebras sucessivas de sigilo só pioraram as coisas. A primeira reação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi acusar os adversários políticos de "armação eleitoral". Porém, de armação mesmo o que apareceu foi uma procuração falsa, usada para argumentar que a própria Verônica Serra havia pedido que escarafunchassem seu cadastro na Receita. Para estupefação de mais de 24 milhões de contribuintes que confiam seus dados ao Fisco, o ministro Mantega, por sua vez, declarou que casos desse tipo são muito mais corriqueiros do que se imagina. "Não existe relação com a campanha", disse Mantega. "Vazamentos sempre ocorreram. Se você olhar para o passado, aconteceram vários." Atenção: a constatação de que a Receita brasileira se transformou numa espécie de queijo suíço, tal a quantidade de furos, não é da imprensa ou de representantes da oposição. A explicação para o recente escândalo da quebra de sigilo vem do próprio governo, responsável por zelar pela credibilidade das instituições do Estado.


Vêm também do governo as teses que poderiam explicar a mecânica por trás do caso. Uma funcionária da Receita, cuja senha foi utilizada nas violações, alegou que seu computador teria "ligado sozinho". Excetuando-se Hall 9000, a máquina que ganha vida em 2001 — Uma Odisseia no Espaço, não há registro de casos semelhantes. Ao que se sabe, a ciência ainda não foi capaz de inventar computadores com vontade própria. Com espantosa naturalidade, o corregedor da Receita, Antonio Carlos Costa D’Ávila Carvalho, a quem cabe apurar e punir malfeitorias no órgão, disse haver indícios "de um suposto balcão de venda de informação". Nisso, pelo menos, ele tem razão: no centro de São Paulo, até há um mês, era possível comprar por 20 reais CDs piratas com dados sigilosos de contribuintes.

Para que a integridade da Receita seja restaurada, em primeiro lugar é preciso identificar e punir exemplarmente os culpados por tais crimes. Por enquanto, não há razões para otimismo quanto a isso. Quatro anos após o chamado escândalo dos aloprados, em que três militantes petistas foram flagrados tentando comprar outro dossiê fajuto contra Serra — mas que incluía também informações fiscais sigilosas —, as investigações não avançaram e ninguém foi denunciado pelos crimes. Já no que diz respeito a irregularidades comuns, segundo uma reportagem recente do jornal O Globo, nos últimos três anos a Corregedoria da Receita demitiu 81 servidores, e mantém hoje 340 processos contra outros funcionários. Tudo indica que, além da violação de sigilo fiscal, os delitos incluam fraudes como o recebimento de propinas em processos de evasão fiscal e na importação e exportação de bens.

A Receita afirma estar reavaliando seus protocolos de segurança para o acesso a dados sigilosos. Felizmente, até agora seu sistema não foi violado por hackers, um sinal de que, em termos técnicos, a instituição continua em dia. De nada adianta, porém, a tecnologia em si — a questão principal está em quem a manipula e por quais interesses é movido. Quanto a isso, o governo ainda está devendo explicações para os contribuintes. Espera-se que tome as medidas necessárias para restaurar a tranquilidade deles — e sua própria credibilidade.

Publicado originalmente na revista EXAME de 22/09/2010

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