Os candidatos Alberto Fernández e Mauricio Macri: a difícil escolha entre seguir com as políticas atuais e voltar para o kirchnerismo (Ronaldo Schemidt/AFP)
Da Redação
Publicado em 24 de outubro de 2019 às 05h30.
Última atualização em 27 de outubro de 2019 às 22h44.
Em qualquer país democrático, as eleições costumam ser um momento de renovação e esperança para os eleitores. Na Argentina de 2019, no entanto, o sentimento é de resignação. O presidente Mauricio Macri, que não conseguiu se reeleger, falhou em transformar a Argentina num país normal, e a economia se deteriorou durante seu mandato.
Agora, os argentinos veem-se diante da volta do kirchnerismo, representado pelo recém-eleito Alberto Fernández e sua vice, a ex-presidente Cristina Kirchner. Eles eram os favoritos a vencer a disputa já no primeiro turno, algo que se confirmou.
Endividada e em recessão, a Argentina mais se assemelha hoje a um “Titanic”, como descreveu recentemente Luis Rosales, um dos candidatos à Vice-Presidência. É um navio difícil de manobrar, que está em meio a uma tempestade e navega rumo à colisão com um iceberg. É nesse ambiente que o próximo presidente vai governar. Ele terá de lidar com uma recessão que já dura dois anos, uma inflação que passa dos 52% ao ano, uma pobreza crescente e a falta de confiança do setor privado.
“O próximo presidente vai precisar de um plano coordenado, bem administrado e com consenso para podermos sair dessa condição tão preocupante”, diz o empresário Manuel Ribeiro, presidente das lojas Ribeiro, uma das redes de varejo mais antigas e importantes da Argentina, com 85 unidades. “Estamos vivendo a pior crise de nossa empresa, que tem quase 110 anos de história.”
Reverter o quadro não é uma tarefa simples. O próximo ocupante da Casa Rosada enfrentará um dilema entre aumentar gastos para evitar uma piora nas condições de vida da população empobrecida e continuar a fazer ajustes para manter as finanças públicas sob controle. Uma dúvida é o que o próximo presidente fará para equilibrar as duas demandas e, ao mesmo tempo, pagar o empréstimo de 57 bilhões de dólares que a Argentina recebeu do Fundo Monetário Internacional (FMI) em 2018.
Os pagamentos começarão a vencer em 2021 e 2022, no meio do próximo mandato. Isso significa que o novo governante não terá tempo para respirar e já precisará assumir o posto com um plano econômico amplo e bem orquestrado. Para o economista Orlando Ferreres, da consultoria econômica Ferreres y Asociados, de Buenos Aires, a expectativa é que uma das primeiras medidas do próximo presidente seja na direção de um novo acordo com o FMI e com credores privados. “O próximo presidente deverá dizer logo como pagará essa dívida”, diz Ferreres.
O assunto dominou a reta final da campanha eleitoral antes do primeiro turno. Alberto Fernández, o candidato escolhido por Cristina Kirchner, sugeriu que, nos moldes atuais, seria difícil pagar a dívida contraída com o fundo. A Argentina esperava que o FMI liberasse 5,4 bilhões de dólares em setembro. Mas o fundo agora aguarda o plano do presidente eleito para definir os próximos passos.
A situação é tão dramática que já se discute a possibilidade de a Argentina seguir o exemplo do Uruguai, que, em 2003, renegociou os prazos de suas dívidas tanto com organismos internacionais quanto com investidores e bancos privados, que tinham títulos públicos do país.
Os juros continuariam a ser pagos nas datas previstas, mas o restante do pagamento poderia ter um prazo maior. A ideia, que foi batizada de salida a la uruguaya (saída à uruguaia), surgiu em meio ao crescente debate sobre a dívida argentina. Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia e candidato que está em terceiro lugar nas pesquisas de intenção de voto, conta que chegou a ligar para Macri pedindo que ele renegociasse o compromisso com o FMI antes da posse presidencial. “Não é ele que tem acesso ao fundo? Não é ele que é amigo de Donald Trump?”, ironizou o ex-ministro, que tem pouca chance de vencer a eleição, segundo as pesquisas.
A relação com os Estados Unidos é uma peça-chave na recuperação da economia argentina. O governo americano é o principal financiador do FMI, e a Argentina precisará de todo o apoio de Trump para renegociar a dívida com o organismo internacional. Portanto, mesmo o esquerdista Alberto Fernández não terá margem para divergir das políticas da Casa Branca.
Sergio Massa, um dos principais aliados de Fernández e Cristina, cotado para ser o próximo presidente da Câmara dos Deputados, diz que o presidente eleito precisará manter uma relação estreita com os Estados Unidos, aconteça o que acontecer. Ao desembarcar de um voo de Buenos Aires em Washington, no início de outubro, onde fez palestras e teve reuniões com o governo de Donald Trump, Massa sugeriu que não seria possível governar “de costas para os Estados Unidos”.
É uma postura que, nesse ponto, está em linha com a do setor privado. O empresário Eduardo Eurnekian, um dos homens mais ricos da Argentina e que lidera a Corporação América, uma concessionária com cerca de 50 aeroportos no mundo, considera que a Argentina deve estar mais próxima dos Estados Unidos e do Brasil do que da China. “A Argentina tem de estar aliada com países com sociedades dinâmicas em termos econômicos, tecnológicos e, principalmente, direitos individuais”, diz Eurnekian.
Recuperar a confiança do empresariado é outro desafio. O setor privado teme a volta das políticas populistas dos anos Kirchner, mas está desencantado com o atual presidente, que assumiu o cargo no fim de 2015. O ano de 2017 foi o único em que houve expansão econômica no governo Macri.
Todos os demais foram de retração. Um empresário argentino que preferiu falar sob condição de anonimato afirma que a atual política econômica virou “um assassinato de empresas”. De acordo com dados da União Industrial Argentina (UIA), 5 mil fábricas fecharam as portas nos últimos quatro anos. “Estamos decepcionados. Macri ignorou o setor industrial. Estamos dizendo há três anos que esse modelo econômico é desastroso. E isso ficou comprovado agora”, diz José Urtubey, vice-presidente da UIA.
As queixas do setor empresarial incluem as taxas de juro altíssimas, adotadas para tentar conter a inflação, e os ajustes das tarifas dos serviços públicos. Os cortes de luz diminuíram, mas os aumentos das tarifas encareceram a produção. Se for eleito, Fernández pretende rever os valores dos serviços públicos para retomar o consumo, algo que também gera desconfiança. Nos governos de Néstor e Cristina Kirchner (2003-2015), a conta de luz podia custar o equivalente ao preço de um refrigerante.
A estratégia era estimular o consumo, deixando mais dinheiro no bolso dos argentinos, embora os subsídios fossem pagos com o dinheiro público do Estado. Não funcionou. Mas os aumentos das tarifas de Macri, feitos num momento delicado e acima do esperado, contribuíram para elevar a inflação. Sem uma alternativa clara para solucionar os problemas, o que se vê é que ainda vai levar tempo para a Argentina virar um país estável.
A democracia mais estável da América Latina foi tomada por protestos. Por trás dos bons indicadores, há uma população insatisfeita | Gabriela Ruic
Vagões de metrô incendiados. Edifícios inteiros em chamas. Mais de uma dezena de mortos e centenas de pessoas presas em uma onda de manifestações. Se as cenas descritas fossem vistas num país à beira de um colapso econômico, como a Venezuela e a Argentina, o espanto talvez fosse menor. Mas a revolta que tomou as ruas de Santiago em meados de outubro deixou uma grande questão no ar: o que levou a população do Chile a se manifestar com tamanha fúria?
Em uma região tão problemática como é a América Latina, o Chile coleciona indicadores invejáveis. É o país com a maior renda per capita. Tem o maior índice de desenvolvimento humano, a melhor posição no Pisa (o principal teste educacional do mundo) e a maior expectativa de vida. A taxa de crescimento da economia é uma das mais altas. Em uma entrevista ao jornal inglês Financial Times publicada um dia antes dos protestos, o presidente Sebastián Piñera descreveu o Chile, até então com razão, como “um oásis de estabilidade”.
A imagem idílica se perdeu daí por diante. A exemplo do ocorrido no Brasil em junho de 2013, a manifestação no Chile começou com um protesto contra um pequeno aumento de 30 pesos (17 centavos de real) na tarifa do metrô. Mas ela logo revelou uma insatisfação mais profunda na sociedade chilena. Por trás da fachada de sucesso do país- existem rachaduras sociais que serviram de combustível para a revolta.
Um em cada três chilenos maiores de 18 anos está inadimplente, segundo um levantamento da Universidade San Sebastián. Em 2017, os 10% mais ricos tiveram uma renda 39 vezes maior do que a dos 10% mais pobres. Na cosmopolita Santiago, os preços das moradias saltaram 150% na última década, enquanto os salários subiram 25%. Nesse contexto, qualquer aumento de preço torna mais difícil para as famílias chilenas manter as contas no azul.
Embora o Chile tenha feito um bom trabalho macroeconômico, sua população percebe que a discrepância em relação aos mais ricos continua alta. Maria Luísa Méndez, pesquisadora do Centro de Estudos de Conflitos e Coesão Social do Chile, lembra que a maioria da população não conta com uma proteção social do governo. “Isso é evidente entre os menos privilegiados, mas mesmo nas classes mais altas há o temor de uma queda no padrão de vida e de um Estado ausente”, diz ela.
A intensidade e a transversalidade dos protestos mostram que há demanda por transformações profundas. “Isso nos leva a crer que os protestos vão continuar e que o governo de Piñera terá muita dificuldade para encontrar uma agenda comum com os manifestantes”, diz Thomaz Fávaro, diretor de análises sobre a América do Sul da consultoria global Control Risks. A instabilidade social e política sempre foi uma marca da América Latina em toda a sua história. Em 2019 não é diferente. Até no Chile.