A decisão de restringir a emissão de títulos isentos (LCI, LCA, CRI ou CRA) ajusta uma enorme distorção e atua em prol da consolidação fiscal brasileira (Tatiana Gasich/Getty Images)
Colunista
Publicado em 23 de fevereiro de 2024 às 06h00.
Os economistas adoram desafiar a segunda lei da termodinâmica. É raro, mas acontece sempre. Dada a crise de memória, vale o lembrete: num sistema isolado, o calor só pode fluir espontanea-mente de um corpo quente para um corpo frio; o inverso só é possível mediante trabalho. A direção natural do universo é ir da ordem para a desordem. Há várias formas possíveis para aglomeração de areia, mas somente um artista vai construir um lindo castelo.
Como corolário, inferimos que as coisas boas demoram a ficar prontas, enquanto as coisas ruins podem acontecer num piscar de olhos. Nas palavras de Warren Buffett, “são necessários 20 anos para construir uma reputação e apenas cinco minutos para destruí-la”. Apesar de inescapável, a segunda lei da termodinâmica por vezes é esquecida até mesmo entre os grandes.
Alan Greenspan foi um dos maiores banqueiros centrais da história. Depois da crise de 2008, porém, admitiu ter acreditado numa visão equivocada de funcionamento das economias e dos mercados, no que ficou conhecido como “Greenspan’s confession”. Por décadas, o “maestro” pensou que agentes econômicos agindo sem regulação e atuando para maximizar o próprio interesse levariam ao ótimo social. Bom, num ambiente de juros muito baixos, regulação frouxa, ganância excessiva e assimetria de informação, demos na quebra do Lehman.
Supostos liberais, parte da direita radical, defensores do Estado mínimo e anarcocapitalistas também parecem ignorar que a entropia só aumenta. Acabamos de celebrar os 300 anos do nascimento de Adam Smith esquecendo uma de suas principais prescrições: o Estado precisa ser forte, não fraco ou mínimo. Confunde-se o fato de que o Estado não deve ser empresário, interferir demais quando os mercados funcionam bem, selecionar vencedores a priori, induzir forçadamente o crescimento, planificar a economia.
O bom funcionamento do capitalismo requer preservação da propriedade privada, respeito aos contratos e obediência às sinalizações do sistema de preço. É o Estado forte que poderá garantir essas coisas. Também cabe a ele a conservação das liberdades individuais. A ausência completa do Estado nos leva ao entrópico “estado de natureza hobbesiano”, em que nenhum capitalismo poderá prosperar. Se ninguém arbitra e garante que o computador usado para escrever esta coluna é de fato meu e ninguém poderá tomá-lo de mim, estamos em constante vigília e sob grave ameaça. Por isso, Hobbes e seu Leviatã aparecem como uma das sementes do liberalismo.
Portanto, se, de um lado, devemos criticar duramente (de fato, devemos!) iniciativas estatais na direção errada, por exemplo, a quarta tentativa de reviver a indústria naval, numa daquelas ideias que parecem celebrar o princípio da contraindução de Mário Henrique Simonsen (vamos insistir no que deu errado até dar certo!), por outro havemos de enaltecer as boas iniciativas regulatórias em prol de um melhor funcionamento dos mercados.
A recente decisão do CMN de restringir a emissão de títulos isentos precisa ser comemorada, porque ajusta uma enorme distorção alimentada por anos. Em resumo, todo o mercado se inclinou na direção dos incentivados, preterindo os demais segmentos da indústria. Distorcemos a finalidade original, inclinamos a indústria para os incentivados e empurramos a conta para o Tesouro. De repente, tudo cabia em LCI, LCA, CRI ou CRA. Criamos uma nova jaboticaba, que desafiava a lógica de que mais retorno deve estar associado a mais risco. Reunimos num só lugar bons rendimentos, risco controlado e alta liquidez.
Com os juros altos e as ações indo mal nos últimos anos, toda a cadeia foi direcionada para isso. O investidor abandonou os fundos de investimento e a renda variável. Os bancos começaram a remunerar bem o canal de distribuição e emitir isso feito loucos. As empresas criaram departamentos inteiros para parametrizar uma determinada emissão somente para fazê-la caber nas exigências formais de um título incentivado, ainda que ele não tivesse nada (ou pouco) a ver com o propósito original de financiar setores estratégicos, muito empregatícios, com benefícios sociais grandiosos e/ou com dificuldade de acesso ao crédito.
O estoque desses ativos superou 1 trilhão de reais, sendo 460 bilhões de reais apenas em LCAs e outros 460 bilhões de reais em LCIs. Nas estimativas do BC, por exemplo, somente 15% a 20% das LCIs tinham uma destinação vinculada ao setor imobiliário. Virou maluquice, subsidiada pelo Estado, claro, ou seja, pelo contribuinte, por você mesmo. A medida devolve a correta finalidade ao incentivo e atua em prol da consolidação fiscal brasileira. Os benefícios podem não ser sentidos num primeiro momento — de novo, as coisas boas demoram a ser feitas. Mas olhemos seis meses à frente.
A inflação estará rondando bem perto de 3% ao ano, a Selic já estará abaixo de 10% anuais e, ainda mais importante para os ativos de risco, todos os principais Bancos Centrais mundiais terão iniciado o processo de corte na taxa básica de juro, naquilo que tende a ser o principal catalisador para a compra de ativos de risco e direcionamento de fluxo de capitais para mercados emergentes.
Ainda que o Brasil não esteja gerando algo idiossincrático muito positivo para ser um dos maiores vencedores dessa atração de fluxo, mostrará por mais um ano a superação de seus problemas de fragilidade externa, com novo superávit comercial próximo a 90 bilhões de dólares, e provável subsequente superação das estimativas de crescimento do PIB. Num ano em que a geopolítica e os valores clássicos das democracias liberais voltam a ser protagonistas, nosso histórico de neutralidade joga a nosso favor.
Tudo isso num ambiente de menor oferta de títulos isentos. A medida recente verte parte do fluxo anteriormente dedicado a LCIs, LCAs, CRIs, CRAs e LIGs para os fundos de investimento e o mercado de ações, dando maior equilíbrio e isonomia à indústria. Além disso, a maneira profissional, detalhada e assertiva da sua implementação denota a competência — por vezes negligenciada e não comentada — de técnicos e secretários que hoje ocupam o Ministério da Fazenda.
As revoluções são histriônicas e rápidas, tipicamente seguidas por algum período de terror. As evoluções são lentas, silenciosas e, por vezes, percebidas só a posteriori. O bem se faz aos poucos.