Revista Exame

A Argentina segue sem dinheiro e sem rumo

Desde 1991 a Argentina não registrava uma inflação tão alta. Agora o governo de Mauricio Macri corre para tentar controlar os preços

Vendedores no Mercado Central de Buenos Aires:  em um ano, o preço dos produtos subiu mais de 54% no país | Eitan Abramovich/AFP /

Vendedores no Mercado Central de Buenos Aires: em um ano, o preço dos produtos subiu mais de 54% no país | Eitan Abramovich/AFP /

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Da Redação

Publicado em 9 de maio de 2019 às 05h28.

Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h42.

Próximo ao aeroporto internacional de Ezeiza, o Mercado Central de Buenos Aires é uma referência para moradores da periferia da capital argentina. Com 18 pavilhões e uma área construída de mais de 126.000 metros quadrados, ele é um dos maiores centros de distribuição de alimentos da América Latina. Seus preços de atacado costumam atrair comerciantes de toda a capital e também as pessoas que vivem nas redondezas.

Mas, nos últimos tempos, tem sido cada vez mais comum encontrar outro tipo de clientela por lá. São moradores de bairros mais afastados, como Caballito, que fica a cerca de 30 quilômetros de distância. Assim como eles, cada vez mais famílias argentinas de classe média dirigem mais de 1 hora para comprar carnes, frutas e verduras no Mercado Central. Tudo para adquirir produtos mais baratos, como o vacío (fraldinha), que integra o tradicional churrasco nacional e faz parte da lista de produtos com preços tabelados lançada pelo governo do presidente Mauricio Macri.

A população tem sido obrigada a buscar alternativas como essas para lidar com a disparada dos preços na Argentina. Com exceção da Venezuela e do Zimbábue, nenhum outro país do mundo tem hoje uma taxa de inflação tão elevada. De março de 2018 a março de 2019, a alta nos preços foi de 54,7%. É um aumento absurdo até para os padrões da Argentina, que há décadas convive com índices de preços nas alturas. Desde 1991 o país não tinha uma inflação anual tão elevada quanto agora. Apenas de fevereiro para março deste ano, os preços subiram, em média, 4,7%. É mais do que o aumento registrado no Brasil em um ano inteiro — aqui, a alta do índice em 12 meses foi de 4,6% em março.

A divulgação dos dados de inflação, como se diz na Argentina, prendió las alarmas (“disparou os alarmes”): gerou tensão no governo, nos políticos e na população. A resposta do governo de Mauricio Macri veio na forma de uma lista de 64 produtos da cesta básica que terão preços controlados durante seis meses. O governo prefere evitar a palavra “congelamento”. Diz que os produtos terão preços “essenciais”, definidos num acordo com empresários.

Mas o que se vê é uma velha prática, comum na Argentina e no restante da América Latina, que só tende a postergar a elevação dos preços e gerar distorções no mercado. “A lista de produtos é limitada e não terá impacto na redução da inflação”, diz Matías Rajnerman, economista-chefe da consultoria Ecolatina. O governo Macri mantém ainda outro sistema de contenção, chamado Precios Cuidados, herdado da ex-presidente e senadora Cristina Kirchner. O programa é resultado de um acordo com fabricantes e redes de supermercados para manter o preço de quase 600 produtos até 20% abaixo do valor de mercado. Nos supermercados, é comum ver placas indicando os produtos com preços fixados.

Macri assumiu a Presidência no fim de 2015 dizendo que a inflação cairia para um dígito porque o país recuperaria a confiança externa e teria regras claras. Em 2017, foi estabelecido um sistema de metas de inflação, como no Brasil. Mas ele durou pouco. A meta tinha sido fixada entre 12% e 17%, mas a inflação terminou em 25%. No ano seguinte, o sistema de metas foi abandonado. A expectativa do governo era que o índice ficasse na casa dos 30%. Terminou o ano em 47,6%, a mais alta em 27 anos.

A disparada dos preços, segundo economistas, foi alimentada pela crise cambial. Na Argentina, quando o dólar sobe, os comerciantes não hesitam em remarcar os preços quase automaticamente. Há um ano, o dólar era cotado em 24,90 pesos. No início de maio, valia 45,90 pesos. “A inflação argentina é alta, entre outros motivos, por causa dos preços das tarifas dos serviços públicos [que ficaram congeladas durante os governo de Néstor e Cristina Kirchner]. Além disso, a classe média se desprende de sua moeda, temendo o efeito da desvalorização”, diz Marcelo Elizondo, professor de economia e diretor da consultoria DNI, de Buenos Aires.

Ou seja, os argentinos que ainda têm condições de poupar preferem comprar dólares para se proteger da desvalorização. O comportamento foi intensificado pela hiperinflação nos anos 70, 80 e início dos 90, antes do regime de conversibilidade, quando o peso ficou atrelado ao dólar (1991-2001). A conversibilidade acabou em 2001, quando houve o confisco de contas bancárias.

A crise atual é diferente daquela hecatombe. Não houve registro de corrida bancária, tampouco protestos maciços contra o governo. Mas a frágil economia argentina está vivendo o pesadelo da combinação de recessão com inflação, aumento da pobreza e temor dos argentinos de perder o emprego. Com isso, a compra de bens duráveis tem sido adiada. As vendas de automóveis, motos e eletrodomésticos despencaram. Com a taxa básica de juro em cerca de 70% ao ano, comprar a prazo ficou difícil.

Para tentar estimular o consumo, o governo Macri até relançou o programa Ahora 12, iniciativa adotada nos governos Kirchner que permite parcelar as compras no cartão de crédito com juros acessíveis. O benefício vale para produtos como móveis, eletrodomésticos, sapatos, bolsas, material de construção e até passagens de avião. Mas o que se vê é que as lojas continuam vazias apesar das promoções.

Cristina Kirchner: as pesquisas de intenção de voto colocam a ex-presidente à frente de Mauricio Macri | Martin Acosta/Reuters

A série de problemas está minando o apoio da população a Macri. A economia registrou queda de 2,6% em 2018. Para o Fundo Monetário Internacional, o produto interno bruto do país deverá cair outro 1,2% neste ano. Em tempos de incertezas, as consultorias apresentam previsões díspares. A Ecolatina, fundada pelo ex-ministro da Economia Roberto Lavagna, possível candidato presidencial nas eleições de outubro, prevê recuo de 1,4% na economia e inflação de 40% em 2019.

Já a Ferreres e Associados calcula que o PIB terminará, neste ano, crescendo 1%, com inflação de 39%. Mas existem nichos que parecem não sentir a recessão. Em Buenos Aires, é preciso ligar com dois ou três dias de antecedência para fazer reserva em alguns restaurantes badalados, tamanha a procura. E o movimento em cafés e salões de beleza também continua alto.

Quando tomou posse, a intenção de Macri era transformar a Argentina num país normal. Ao contrário de seus antecessores, os ex-presidentes Néstor e Cristina Kirchner, que maquiavam os dados oficiais, ele fortaleceu o instituto de estatísticas e acabou com o controle cambial. A economia até parecia caminhar para a normalidade quando o país enfrentou, em 2018, a pior seca dos últimos 50 anos, derrubando a produção agrícola e as exportações. A soma da seca com a crise cambial levou o governo a pedir socorro ao Fundo Monetário Internacional.

Agora a esperança do governo é que a safra recorde de grãos colhida em 2019 ajude a aliviar a situação e aumente as reservas do Banco Central. Somente a soja poderia render 18 bilhões de dólares neste ano, segundo a Bolsa de Cereais de Rosário. Para os analistas, a entrada de divisas poderia acalmar o estresse econômico às vésperas da eleição presidencial. É uma corrida contra o relógio. Macri tem reiterado que é candidato à reeleição. Mas sua popularidade encolheu à medida que a inflação cresceu, favorecendo a adversária Cristina Kirchner. Uma pesquisa da consultoria política Isonomía apontou que Cristina poderia vencer Macri no segundo turno, embora 60% dos argentinos ainda estejam indecisos.

O fato é que não há uma solução clara no horizonte. Ainda vai demorar para que o velho fantasma da inflação seja afugentado na Argentina. 

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