"É como a Louis Vuitton querendo fazer melhor que a Dior, e a Dior querendo fazer melhor que a Louis Vuitton", afirma o executivo (Bvlgari/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 14 de janeiro de 2021 às 05h56.
RESUMO
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Quando dois pilotos da Fórmula 1 estão sob a mesma escuderia, pode ocorrer, ainda que raramente, de um ter de ceder o pódio ao outro em nome da equipe. Não será o caso da corrida mais luxuosa do ano, cuja largada foi dada neste mês pelo conglomerado francês LVMH ao concluir a compra da joalheria americana Tiffany & Co. e, dessa forma, criar uma concorrência dentro de casa com a rival Bvlgari.
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A comparação com as pistas é do próprio CEO da maison italiana, Jean-Christophe Babin, que deixou claro que não dará sopa para a marca ícone do alto padrão da América.
A conversa aconteceu em entrevista exclusiva à EXAME, por videoconferência de Roma, sede da empresa, semanas antes da conclusão do negócio — cravado em 15,8 bilhões de dólares após uma ruidosa disputa judicial que descontou em cerca de 400 milhões o preço de aquisição da marca acordado em 2019.
Babin sabe que a briga interna com a Tiffany será silenciosa, bem ao estilo Louis Vuitton versus Dior, de acordo com o perfil do conglomerado mais poderoso do luxo mundial. Enfrentará uma dupla de peso, anunciada na quinta-feira, 7, que consiste no novo CEO, Anthony Ledru, ex-vice-presidente comercial da Louis Vuitton, e Alexandre Arnault, filho do presidente do LVMH, Bernard Arnault, que deixa a marca de malas Rimowa para assumir a cadeira de vice-presidente de produto e comunicações da joalheria.
O futuro parece forrado de brilhantes para as duas casas. O segmento de joalheria tem se mostrado resiliente em mercados-chave, como China e Brasil, país onde a Bvlgari instalou em novembro um segundo ponto, no Shopping Iguatemi, em São Paulo, dentro da estratégia de apostar nos mercados domésticos.
A ideia é se posicionar novamente como uma das molas de vendas do grupo, em um cenário de queda de 30% nos primeiros nove meses do ano passado em relação ao mesmo período de 2019 — o segmento de joias e relógios, que inclui Bvlgari, a joalheria Chaumet e a relojoaria TAG Heuer, vem se mostrando mais resiliente e respondeu por um faturamento de 1,15 bilhão de dólares no mesmo período.
A recuperação, os dados revelam, vem em curva crescente. Segundo Babin, a saída de joias nas lojas da marca, que ainda atua no segmento de hotelaria, itens de higiene pessoal e relógios, já está próxima à da época em que “o céu era azul”.
O que explica a resiliência do mercado de joias se comparado ao de outros segmentos do varejo de moda que sofreram com os efeitos econômicos da covid-19?
Primeiro, porque a doença não alterou a relação que temos com as joias, algo que faz parte da experiência humana. Veja, elas foram e sempre serão o ideal máximo do que entendemos por luxo há mais de 2.000 anos, de autocuidado, autoindulgência.
Obviamente, estão associadas a preços altos, mas também às mudanças na vida, como noivados, casamentos e aniversários. Isso não mudou com a pandemia e é a essência do que as diferenciam das roupas, além do fato de que, claro, esse é o único segmento de luxo que você tem a certeza de que terá as peças para sempre.
Ao mesmo tempo, nos últimos 50 anos, as joias acompanham o processo de empoderamento da mulher, que no passado ficava em casa e, depois, passou a ir à universidade e a entrar no mercado de trabalho. Isso acelerou o desenvolvimento da categoria, porque elas passaram a comprar para si.
O que a pandemia alterou no segmento?
Provocou um arranjo diferente no mercado de luxo. A alta joalheria, a joalheria preciosa e o noivado foram mais resilientes do que qualquer outra categoria do luxo. Mesmo com o apagão de vendas nos aeroportos, que é um grande motor da venda de joias e responsável pelo maior golpe no mercado, porque, você sabe, para o luxo em geral, a desoneração do imposto sobre as vendas [IVA] é extremamente importante.
Quando se trata de joias e relógios, ele significa um desconto de milhares de dólares, que, obviamente, não é o mesmo dos 5 dólares de desconto num pacote de cigarros. Sofremos no início pelo fim da receita nos aeroportos. Mas, mesmo sem isso, já estamos mais próximos das vendas do ano passado, quando as luzes estavam verdes nas fronteiras.
Acredito que seja porque os clientes de alto padrão agora estão mais exigentes sobre valores de autenticidade, criatividade, artesanato e, agora, as atitudes tomadas pelas empresas no combate à doença. Talvez sejamos a marca que mais apoiou a saúde pública nos piores dias, com investimentos em pesquisa [a Bvlgari fez uma doação milionária à Universidade de Oxford para ajudar no desenvolvimento da vacina], e os clientes perceberam isso.
Há um segundo lockdown em curso na Europa. Em que medida é diferente do início da pandemia?
Diria que é um momento mais favorável se comparado aos primeiros meses do ano. Na França, por exemplo, o governo permitiu que as lojas ficassem abertas para as compras de Natal, e isso foi muito positivo.
Na Itália, não são todas as regiões que estão em lockdown. Isso é muito diferente de um país para o outro e as pessoas estão mais conscientes sobre os cuidados com a saúde. Um ponto importante é que, depois de tantos meses, as pessoas estão se vingando nas compras [gastando mais, no movimento que o mercado batizou de “revenge buying”], porque nunca houve tanto dinheiro acumulado.
Ainda que haja um aumento na perda de empregos, muitos não perderam seus postos de trabalho. Estou positivo sobre essa recuperação, que começa logo após as vendas de Natal, e, em 2021, acredito que veremos o crescimento mais acentuado dos mercados domésticos.
Por que acredita nisso?
Tiro por mim, que viajo toda semana para a Itália [Babin mora com a família na Suíça, onde passa os fins de semana] e vejo que há cada vez menos voos sendo operados. A grande questão sobre este ano será o comportamento da frequência aérea e seu efeito sobre o varejo nos aeroportos. Há um problema para o luxo que é a restrição de conexões.
Não poderia, hoje, fazer uma conexão em São Paulo para ir a outro país, por exemplo, porque seria impossível. Esse é um fator importante, porque, apesar de o apetite por consumir não ter arrefecido, devemos manejar esse fluxo e a oferta de produtos para cada país.
Nesse sentido, a oferta também deve acompanhar a mudança de hábitos no trabalho, porque as pessoas já passam mais tempo em videoconferências e mais tempo com a família. Isso definitivamente não mudará.
Haverá mais concorrência, não é? Inclusive dentro do grupo LVMH, da qual a Bvlgari faz parte, com a provável aquisição da Tiffany & Co. Qual é sua estratégia para se diferenciar?
Veja, se o grupo adquirir a Tiffany & Co., é porque há boas razões para fazê-lo. Ela é a maior joalheria americana e tê-la nos ombros combinando o portfólio de Bvlgari e Chaumet [outra joalheria do conglomerado] dá uma larga vantagem ao LVMH em relação a quaisquer outros competidores no mundo, e também confirma a visão do grupo sobre a força do setor.
As marcas são complementares. Enquanto uma é um ícone americano, nós temos uma expressão maior na Europa Ocidental e na Ásia. A Tiffany é muito relacionada ao noivado, a Bvlgari é mais sobre os pavês de diamantes, ouro rosa e joias preciosas.
Também somos identificados pela alta joalheria, ainda que a Tiffany tenha uma manufatura importante. No mesmo grupo ou em um diferente, as estratégias não mudam tanto. Será como concorrer em uma disputa de Fórmula 1.
Como assim?
Sim, Fórmula 1, quando dois pilotos estão numa mesma equipe e competem entre si. Será simples assim [risos]. É como a Louis Vuitton querendo fazer melhor que a Dior, e a Dior querendo fazer melhor que a Louis Vuitton. A Bvlgari vai querer fazer melhor do que ela, da mesma forma como a Cartier quer fazer melhor do que a Van Cleef & Arpels [ambas do grupo concorrente Richemont].
Vamos reforçar nosso DNA romano, enquanto a Tiffany deve entregar sua identidade. No fim do dia, será estimulante, porque simplesmente, mais do que nunca, a Bvlgari vai competir com a Tiffany. E essa é a outra grande força do LVMH, faz parte da filosofia do grupo ter muitos competidores em marcas de moda, e isso a torna excepcional.
A mudança será de sinergias, porque a Tiffany vai se beneficiar do investimento em mídia do grupo e da negociação de novos pontos em centros de compras. Além do que, nós, juntos, seremos o maior competidor que já houve na negociação de ouro e pedras preciosas.
Ainda sobre concorrência, em um cenário de vacinação em massa no horizonte, acredita que haverá uma briga pela atenção dos clientes nos aeroportos?
Primeiro, é preciso entender que o movimento nos aeroportos, pelo menos até a segunda metade do ano, será bem baixo. Até lá, não haverá proteção maciça suficiente para prevenir o risco de contrair a covid. Levará tempo até todos serem vacinados, então estamos em um momento de transição, melhor do que o cenário de 2020, mas ainda longe do potencial total do fluxo.
Olhe a Austrália, que não vai voltar atrás no trancamento das fronteiras até junho de 2021, e a China, que ainda não fez nenhum anúncio sobre a abertura do trânsito de turistas, permitidos apenas se fizerem uma quarentena muito rígida ou que partam de Macau.
Boa parte das linhas aéreas vai manter a programação de voos atual pelo menos até o final de março, quando devemos ver um fluxo um pouco maior de voos. Quando você vai a qualquer aeroporto do mundo, a maioria dos motores e dos trens de pouso das aeronaves está coberta, sugerindo que o setor está se planejando para uma grande e longa, longa crise.
As coisas não voltam ao normal imediatamente. Mesmo aberto, o fluxo não será igual em um primeiro momento.
O senhor está dizendo que o mercado de luxo não poderá contar com as vendas em aeroportos em 2021, é isso?
Serão a cereja do bolo, mas no longo prazo. No curto, temos de investir mais do que nunca nos países. O Brasil é um exemplo. Abrimos uma pop-up no Shopping Iguatemi, o que nos permitiu estar em um segundo mall no país.
Isso representa a estratégia de prestar mais atenção no mercado doméstico, e não esperar que os brasileiros viajem para Miami ou para a Europa.
Essa foi a mesma estratégia adotada após a crise de 2008, quando o luxo começou a olhar para a China, enquanto Europa e Estados Unidos sofriam. Quais são as diferenças de abordagem, especialmente quando se sabe que o consumo do europeu não cresceu na última década?
A Europa é de longe a parte mais rica do mundo, e, apesar disso, não cresceu como a China nos últimos dez anos, assim como os Estados Unidos, que estão na segunda posição do consumo de luxo.
A questão é que eles não cresceram tanto porque, talvez, a maioria das marcas apostou em posições fortes na dinâmica chinesa, e menos nos mercados tradicionais ocidentais. É importante frisar que tanto americanos quanto europeus continuaram a gastar com luxo, mas buscaram mais experiências relacionadas a férias, esportes… por isso também temos a divisão de hotelaria da marca.
Esses dois mercados provocaram um boom nesse tipo de consumo de experiência logo após a crise americana. Então, acredito que a mudança, agora, será balancear novamente os focos, fazendo um meio a meio de investimentos, integrar o Oriente e o Ocidente no planejamento.
Nós nunca saberemos exatamente como o mercado vai se comportar, mas sabemos que os chineses não mudaram seu perfil de consumo durante a pandemia. Assim como no Brasil, onde somos percebidos como uma marca próxima dos clientes e, nesse sentido, a loja do Iguatemi está alinhada à estratégia.
Certo. Mas em uma cidade como Paris, por exemplo, estima-se que mais de 40% das vendas de luxo sejam da carteira dos turistas, especialmente os chineses. Se eles estão consumindo em casa, o mercado europeu não estaria em baixa?
Sei que levará tempo para que as capitais europeias recuperem o mesmo nível do pré-covid. Esperamos pelo menos dois anos para que isso aconteça, mesmo com o esforço de nos aproximar dos clientes locais. Mas, no cenário global, estar em todos os lugares faz muita diferença.
Com a queda das lojas focadas no consumo dos turistas, nossas 16 plataformas de vendas em e-commerce permitiram que pudéssemos entregar na Rússia, em Xangai, no Oriente Médio ou em São Paulo, lugares de onde sabemos partir a clientela de turistas.
Sobre o e-commerce, para muitos especialistas é a salvação do varejo middle e premium. Para o luxo, é também uma espécie de salvação?
Não diria que é salvação, mas um impulsionador de receita. Antes, se alguém quisesse comprar uma peça no domingo à noite, teria de esperar o dia seguinte, e no meio do caminho poderia desistir.
No celular você pode comprar na hora, e expressar seu desejo convertendo-o em realidade. Além disso, trouxe segurança à compra de joias. No caso de nossos clientes, o online é uma jornada, que começa ali, continua na loja física e talvez termine com um delivery em casa, ou no escritório, se a pessoa não tem tempo.
Nunca digo nunca, mas não acredito que o modelo de compra virtual vá substituir, pelo menos nos próximos dez anos, os modelos tradicionais. Eles vão aumentar de receita, três dígitos nos próximos dois anos, mas não suplantar. Ganhará marketshare quem souber levar usabilidade à experiência.
Sempre houve uma resistência evidente das marcas de alto padrão em aderir ao e-commerce, que só diminuiu agora, com a pandemia.
Sim, mas é que até pouco tempo atrás quando falávamos em mercado online pensávamos em Amazon, em praticidade, na eficiência do modelo que, no fim das contas, era mais um catálogo do que uma experiência. Olhando para nosso e-commerce, acho que temos uma boa posição em relação aos competidores.
Ainda que não desejemos ter o melhor site do mercado, está ficando prazeroso entrar nesse novo ambiente. É verdade que esse tipo de experiência não traz o aconchego da experiência real, mas oferecemos ferramentas que facilitam a vida do cliente, imagens em 3D que mostram detalhes difíceis de ver a olho nu, ou mais práticas, como a consultoria em tempo real com integração dos estoques, porque, você sabe, às vezes alguém está em São Paulo e não quer ou não pode ir a Roma comprar o que tem lá.
Mas, mesmo assim, ainda são raríssimos os casos de clientes que mantêm compras na Bvlgari exclusivamente pelo site.
É curioso porque, mesmo com uma estratégia online, a recuperação por categoria ainda é mais lenta no segmento de joias e relógios se comparada à de moda. Por que isso acontece?
Sim, porque tanto um quanto o outro são compras ocasionais. O segundo ponto é que a moda é guiada por estações e as pessoas compram impulsionadas pelos lançamentos da indústria, divulgados nas semanas de moda. Em joalheria não há nada perto disso.
Nosso setor tem [as feiras suíças] a Baselworld e a Watches&Wonders, mas que são restritas e seguem um modelo mais corporativo. Voltando ao que falamos, há a questão do preço, que custa muitos milhares de euros a mais. O impacto é diferente por tudo isso. E, claro, se você perde o lançamento da bolsa do verão, talvez não a encontre na estação seguinte, o que não acontece com relógios, anéis e colares.
A maioria de nossa oferta se mantém nas lojas por muitos anos. Embora essa sazonalidade faça com que as pessoas procurem e comprem roupas de luxo mais facilmente, também é verdade que uma pessoa pode até não ter uma roupa de luxo, mas certamente tem alguma peça de joalheria, qualquer que seja, o que possibilita que, no longo prazo, esse segmento seja interessante para o setor do luxo.
Isso também explica o interesse do grupo LVMH pela Tiffany.
O senhor parece otimista para este ano, mas os números ainda são negativos. Qual a razão para isso?
Porque, embora alguns canais de venda tenham sofrido nesta pandemia, nossas lojas próprias e o core business da Bvlgari já performam próximos à época em que o céu era azul. Além do mais, estou confiante de que as pessoas estarão com uma mente mais livre do peso de 2020 e que, também por isso, 2021 será melhor de qualquer jeito.