Revista Exame

Eleições 2018: Veja as principais diferenças entre os 4 projetos de Brasil

O debate eleitoral entra em campo. Na área da economia, há alguma convergência — e muita discrepância — de visões de mundo

Comércio exterior: uma questão que divide linhas de pensamento diz respeito ao grau de abertura a ser dado à economia brasileira (Tales Azzi/Pulsar Imagens/Exame)

Comércio exterior: uma questão que divide linhas de pensamento diz respeito ao grau de abertura a ser dado à economia brasileira (Tales Azzi/Pulsar Imagens/Exame)

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Da Redação

Publicado em 22 de maio de 2018 às 13h11.

Última atualização em 24 de maio de 2018 às 19h36.

Numa festa de embaixada, Marcel Proust se aproximou de um diplomata e perguntou: “O que faz um diplomata?” Ouviu a resposta: “Representa o país no exterior”. Proust não se deu por satisfeito: “Quero saber a que horas você chega, a que horas você sai, com quantas pessoas fala por dia, sobre o que fala, que retratos de família colocou sobre sua mesa. Os detalhes, os detalhes!” Como todo escritor, o francês Proust sabia que os detalhes são o segredo de uma ficção realista. O mesmo vale para as promessas de campanha em época eleitoral. Ditas de forma genérica, enchem os ouvidos. É preciso saber, no entanto, como os políticos farão para cumpri-las — “os detalhes, os detalhes”. Tal fato é especialmente verdadeiro para a economia — terreno escorregadio onde, qual ringue de patinação, as propostas só ficam de pé se acompanhadas de números verossímeis.

Há notícias boas no debate que se formou nesta época pré-eleitoral. A primeira é que, ao contrário do que ocorreu em 2014, existe efetivamente um debate. Três dos candidatos que estão à frente nas pesquisas — Ciro Gomes (PDT), Geraldo Alckmin (PSDB) e Jair Bolsonaro (PSL) — já nomearam seus representantes na área econômica, e já discutem freneticamente em entrevistas na imprensa. A segunda boa notícia é que eles até se comprometem com algumas causas impopulares. Os três admitem, diferentemente de 2014, que o país vive uma emergência fiscal e defendem — todos — alguma reforma da Previdência. Os candidatos também se igualam na condenação do governo Dilma Rousseff, de cujas ideias querem se afastar. Inclui-se aí o grupo que se formou à esquerda, em torno da candidatura de Guilherme Boulos (PSOL), e que começa a fazer reuniões preliminares, com a curadoria da economista Laura Carvalho. Tudo somado, temos quatro visões diferentes de país, que revisitam questões recorrentes no debate brasileiro. Faltam os detalhes — “os detalhes, os detalhes” — que, espera-se, aparecerão à medida que a discussão esquentar ao longo da campanha.

No livro Brazil in Transition, os cientistas políticos Marcus Melo e Carlos Pereira, ao lado dos economistas Lee Alston e Bernardo Mueller, definem quais são os principais assuntos que pautam nosso debate público. A obra, realizada com o patrocínio da Fundação Rockefeller e ainda não publicada em português, defende que a política se move em torno de determinadas crenças que criam raízes nas sociedades. Tais crenças se organizam de traumas coletivos. No caso do Brasil, país que durante muito tempo sofreu o flagelo da inflação, uma das crenças, consolidada no governo Fernando Henrique, é a da responsabilidade fiscal. A outra crença vem de uma chaga mais profunda: nossa enorme desigualdade social. Para os autores de Brazil in Transition, o que moveu o Brasil nos últimos anos foi a busca do que chamam de “inclusão social fiscalmente responsável”. Tal princípio norteou os governos de Fernando Henrique Cardoso, principalmente no segundo mandato, e de Luiz Inácio Lula da Silva, em especial no primeiro. Nesse período, combinamos políticas econômicas de viés liberal com investimentos na área social — a inclusão social fiscalmente responsável de que falam os autores. É o período que o economista Samuel Pessoa chama de “Malocci”, em referência aos ministros da Fazenda Pedro Malan e Antonio Palocci. Tal projeto, na avaliação do próprio Fernando Henrique em seus Diários da Presidência, assemelha-se à Terceira Via, de Tony Blair e Bill Clinton, em voga nos anos 90. E equivale àquilo que, modernamente, se chama de social-democracia, embora haja diferenças importantes entre PT e PSDB. Palocci parou o programa de privatizações de Malan, e os governos petistas foram mais tímidos nas parcerias público-privadas.

O debate eleitoral, em larga medida, se organizará em torno da agenda que os autores de Brazil in Transition identificaram. Existe no Brasil um mainstream social-democrata — e, nestas eleições, três visões críticas a tal tendência. No pleito deste ano, a visão social-democrata será defendida pela equipe econômica que se reuniu em torno de Geraldo Alckmin, chefiada por Pérsio Arida, e provavelmente pelos economistas de Marina Silva, Eduardo Giannetti e André Lara Resende, de tendência semelhante à de Pérsio. Outro indício de que Marina seguirá essa tendência é que ela nomeou o professor Ricardo Paes de Barros, do Insper, seu principal formulador na área social. PB, como é conhecido entre os pares, foi figura-chave da implantação de políticas públicas de combate à pobreza e à desigualdade nos governos “Malocci”, que combinaram economia liberal com proatividade na área social.

As três vertentes críticas estão à direita e à esquerda. À direita há o bloco liberal, inspirado nos think tanks (“centros de estudo”) que proliferam no país desde os anos 80. A única vez que os adeptos dessa tendência embarcaram numa candidatura com chance foi em 1989, quando o economista Paulo Guedes criou o programa de Guilherme Afif Domingos (o qual, ironicamente, mais tarde seria ministro no governo nada liberal de Dilma Rousseff. Coisas do Brasil). A pedra de toque era privatizar sem medo e sem vacas sagradas, para zerar dívida, baixar juros e gerar crescimento.

Hoje, Guedes coordena a equipe econômica de Jair Bolsonaro, continua com as mesmas ideias e critica pesadamente o ciclo de PT e PSDB, partidos nos quais vê mais semelhanças do que diferenças. “A hesitação nas privatizações e a falta de coordenação entre política fiscal e monetária nos levaram a essa dinâmica perversa da dívida”, diz Guedes. “Os social-democratas pegaram o Brasil com 60 bilhões de dólares em ativos e 60 bilhões de dívida, e o entregaram com 220 bilhões de dólares em ativos e quase 1 trilhão em dívidas. Só em juros somos obrigados a reconstruir uma Europa do pós-guerra todos os anos.” Apesar das críticas de Guedes, há mais convergências do que divergências entre as propostas liberal e social-democrata (leia quadro abaixo). A proposta liberal também é abraçada, em diferentes intensidades, pelos pré-candidatos João Amoêdo (Novo) e Paulo Rabello de Castro (PSC). Eles se alimentam igualmente das ideias dos think tanks, de modo até mais convicto que Bolsonaro — que, contrariando seu chefe de campanha, é contra a privatização de bancos estatais. O campo liberal, no Brasil de hoje, é também conservador na área dos costumes — e, no caso de Bolsonaro, tal conservadorismo é mais pronunciado.

A outra crítica vem da vertente nacionalista. Liberais e social-democratas concordam que o crescimento consistente começa com um ambiente de negócios previsível, que estimule o investimento privado — o que os diferencia é a histórica ênfase dos liberais no corte de impostos. Em vertente diversa, os nacionalistas acreditam que, para além do setor privado, o Estado tem um papel efetivo na criação de políticas setoriais. Tal corrente existe no Brasil desde o governo Getúlio Vargas, quando o empresário Roberto Simonsen defendia subsídios à indústria. No debate brasileiro, essa ideia experimenta um eterno retorno. Migrou para a esquerda nos anos 50, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb), cujos textos embasavam as discussões dentro do Partido Comunista. Esteve na base de governos da ditadura militar, como o de Ernesto Geisel. Por fim, Dilma Rousseff promoveu um desastre econômico — uma recessão de 7 pontos que devolveu mais de 6 milhões de brasileiros à pobreza absoluta — dizendo-se seguidora da linha “nacional-desenvolvimentista”.

Terceira idade: uma boa notícia é o fato de que todas as correntes cogitam alguma reforma da Previdência | Rubens Chaves/Pulsar Imagens

O grupo que quer renovar a tendência segue o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira — que se iniciou na vida pública nos anos 50, inspirado pelas ideias do Iseb. Eles são críticos ao descontrole das contas da era Dilma. Um dos pilares do projeto do economista Nélson Marconi, coordenador do programa de Ciro Gomes, é um forte ajuste fiscal. Marconi, que trabalhou com Bresser-Pereira na reforma administrativa do governo FHC, acha que consegue cortar gastos do setor público. Outro alicerce do ajuste seria um aumento de impostos — estuda-se, por exemplo, a ressurreição da CPMF, o “imposto do cheque”, por incidir sobre qualquer transação financeira. Para Marconi, o ajuste fiscal não seria um fim, mas um meio de criar uma taxa de câmbio competitiva e, com isso, turbinar a indústria. Trata-se de um modelo diferente da substituição de importações do passado — mas também de êxito duvidoso, como se viu em outras tentativas de criar condições artificiais de competitividade. O crescimento, nessa lógica, viria do aumento das exportações. Só depois haveria abertura econômica. Enquanto liberais e social-democratas defendem privatizações, os nacionalistas querem continuar contando com estatais e bancos públicos. Liberais e social-democratas repudiam subsídios a setores escolhidos. A equipe de Ciro, em contrapartida, até já definiu que áreas teriam prioridade em seu governo: óleo e gás, saúde, agronegócio e defesa. No governo Dilma, que os economistas de Ciro criticam, o excesso de intervenção foi um dos fatores que levaram à recessão. Com eles, dizem, será diferente, mas falta explicar — “os detalhes, os detalhes” — como fazer o favorecimento seletivo de setores sem afetar a previsibilidade da economia.

À esquerda de Ciro Gomes, um quarto projeto vem sendo gestado. Em torno do candidato Guilherme Boulos, do PSOL, um grupo de estudiosos, com curadoria da economista Laura Carvalho, professora na Universidade de São Paulo, trabalha na construção de uma “quarta via”, obviamente anticapitalista. Já são clássicas as observações do sociólogo inglês Anthony Giddens sobre os dilemas da esquerda tradicional, aquela que, no passado, acenava com a revolução socialista. Órfãos dessa opção desde a queda do Muro de Berlim e do fim da União Soviética, os adeptos da esquerda passaram a centrar fogo na denúncia das injustiças sociais e na defesa da agenda chamada de “identitária”, contra as discriminações por gênero, classe social e etnia. A tal agenda faltava, no entanto, uma visão de futuro. Recentemente, políticos como o americano Bernie Sanders e o inglês Jeremy Corbyn vêm tentando construir essa visão. É neles que a esquerda brasileira tradicional se inspira, de acordo com Laura Carvalho.

Privatizar ou não?: dependendo de quem vencer, empresas como a Eletrobras continuarão estatais | Andre Dib/Pulsar Imagens

Das discussões do PSOL emerge uma ênfase em impostos progressivos, de forma a taxar mais os ricos e transferir renda aos mais pobres. A principal proposta de reforma tributária no Brasil nessa linha — até pouco tempo a única — era a do Centro de Cidadania Fiscal, chefiado pelo economista Bernard Appy, ex-integrante do governo Lula. Os estudos do time de Appy,  que estão na base tanto da proposta tributária de Ciro quanto na de Alckmin, concluem que é possível tornar o sistema mais justo, mas com pouco espaço para o aumento de arrecadação, dado que a carga fiscal brasileira já é altíssima. O time de Laura Carvalho, porém, vem fazendo contas para aumentar a arrecadação. Os estudos ainda não foram concluídos, mas o objetivo é conseguir algo da ordem de 2% do PIB. Como nos casos de Corbyn e Sanders, a aposta é crescer com base no mercado interno, com um aumento na distribuição de renda. A questão a ser esclarecida — “os detalhes, os detalhes”—, sem a qual o projeto não para em pé, é o tal aumento de arrecadação, que não consta em nenhuma projeção séria de reforma tributária. O PT, sob o impacto da prisão de Lula, ainda não definiu se seu programa, coordenado pelo ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad, penderá para o nacionalismo ou para a esquerda tradicional. Dificilmente seguirá a linha social-democrata do primeiro governo Lula.

A vertente social-democrata — que, nesta eleição, vem sendo defendida, até agora, por Geraldo Alckmin e Marina Silva — não se tornou majoritária no Brasil por acaso. Com todos os problemas, que não foram poucos, as instituições econômicas e os indicadores sociais melhoraram no período “Malocci”, algo importante num país marcado pelos desequilíbrios fiscais e pela iniquidade social. Numa democracia, é saudável haver propostas alternativas, mas seus autores precisam mostrar o que farão para não repetir os erros do passado. Os nacionalistas terão de dizer como fecharão as contas ao somar políticas sociais e investimento estatal pesado, e qual o tamanho do ajuste fiscal que vão fazer. Terá de ser algo de monta, pois no governo Dilma a conta não fechou, gerando inflação e pobreza. O mesmo pode ser dito do projeto da esquerda, com um agravante: é possível aumentar a carga tributária num país em que o imposto já é tão alto, sem espantar os que abrem negócios e geram empregos? Os liberais precisam apresentar claramente suas propostas para a área social. Num país de pobreza e desigualdade exacerbadas, tal vertente é obrigatoriamente prioritária em qualquer governo.

Inconsistências à parte — “os detalhes, os detalhes”—, o debate é sempre bem-vindo. É saudável que ele tenha se instalado antes mesmo da campanha eleitoral na televisão. É possível que os temas espinhosos — a economia está cheia deles — fiquem de lado quando a briga pegar fogo, no segundo semestre. Caberá aos eleitores cobrar propostas concretas de seus candidatos, e aos candidatos mostrar os fatos e dados que embasam suas escolhas. A dimensão dos problemas brasileiros requer que esquerdas e direitas conversem sobre eles — de maneira séria, democrática e educada. Que a discussão continue. 

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