Usina de Belo Monte, no Pará: sob investigação interna da Eletrobras. (Divulgação/Exame)
Da Redação
Publicado em 13 de agosto de 2015 às 09h55.
São Paulo — Era uma vez uma grande empresa estatal brasileira. Tinha corpo técnico de qualidade inquestionável e pagava gordos dividendos. Era um sucesso na bolsa e um dos vetores de crescimento do país. Estava à frente de projetos cada dia mais grandiosos e enchia o governo de orgulho. O orgulho era tamanho que o governo decidiu estragar o que vinha dando certo.
Passou a usar a empresa para tentar segurar a inflação. De uma hora para a outra, a empresa deu uma banana para os acionistas minoritários e para a lógica corporativa. A diretoria e o conselho de administração, loteados entre partidos políticos, passaram a executar os mandos da Presidência da República sem se importar se aquilo fazia ou não sentido. Para completar, com a empresa já em situação lastimável, delatores da Operação Lava-Jato afirmaram que pagaram propina para conseguir contratos com a estatal.
A empresa em questão tem nariz de Petrobras, orelha de Petrobras, olhos de Petrobras — mas é a Eletrobras. O destino da Petrobras todo mundo sabe — envolvida no maior escândalo de corrupção da história, a empresa teve ex-executivos presos, virou alvo de processos de acionistas e reconheceu um prejuízo histórico de 22 bilhões de reais em 2014. Nos bastidores, começou há poucos meses uma corrida para que a situação da Eletrobras não chegue a um ponto tão crítico.
A luz vermelha acendeu em dezembro, quando o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa disse em depoimento à CPI que o que acontecia na petroleira também acontecia “nos portos, nas ferrovias, nas hidrelétricas”. Nessa corrida, a companhia se dividiu em dois grupos: o que cuida de arrumar as finanças e a operação, encabeçado pelo ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, e o que trava uma batalha para tapar os buracos abertos pela corrupção, que tem à frente as diretorias de finanças e auditoria.
Na frente financeira, o plano de reação segue a lógica de companhias enrascadas: reduzir a dívida, renegociar contratos, levantar capital e se livrar de ativos que dragam dinheiro. “Estamos abrindo várias frentes de melhoria de gestão e eficiência não só na holding como também nas empresas coligadas”, disse Braga a EXAME.
O maior problema da Eletrobras foi criado por seu principal acionista: a União (mas pode me chamar de Dilma). No fim de 2012, a companhia aceitou renovar antecipadamente suas concessões de energia com o governo federal abaixo do custo de operação, enquanto outras, como a Cesp, de São Paulo, e a Cemig, de Minas Gerais, se recusaram.
Foi a senha para o que era lucro virar um prejuízo astronômico. Em 2011, a empresa lucrou 3,7 bilhões de reais. De lá para cá, teve 16 bilhões de prejuízo. Voltar ao azul vai exigir uma disciplina incomum para qualquer estatal. Ainda em 2014, a Eletrobras contratou o banco Santander e a consultoria Roland Berger para encontrar o caminho para sair da confusão.
O primeiro passo é se desfazer de sete distribuidoras de energia compradas nos últimos 15 anos por ordem do governo. A maioria delas perde dinheiro e presta um serviço ruim. O governo já incluiu no plano de desestatização a Celg, distribuidora de Goiás. Segundo EXAME apurou, as próximas devem ser a Ceal, de Alagoas, e a Cepisa, do Piauí.
Há interessados: a Equatorial Energia, que já comprou duas operações encrencadas no Maranhão e no Pará, e a Energisa, que opera no Centro-Oeste e em Tocantins. A outra frente para levantar recursos é brigar por indenizações da União referentes a renovações antecipadas. Os laudos apresentados à Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) desde outubro pedem 21 bilhões de reais. A Aneel ainda não deu parecer.
Sem distribuição, a Eletrobras vai se concentrar nas áreas de geração e transmissão, que respondem por 73% da receita — e, até 2011, por todo o lucro. Assim como sua irmã Petrobras, a Eletrobras tem de conciliar a solução de seu drama no curto prazo com planos grandiosos para o futuro.
Chega a ser risível, dada sua situação atual, mas o plano traçado pelo conselho de administração é colocar a empresa entre as dez maiores de energia do mundo até 2030. É um sonho muito, mas muito distante. Hoje, ela nem sequer aparece entre as 30 maiores. Para isso, a companhia precisaria investir mais de 20 bilhões de reais por ano.
O jeito para viabilizar alguns projetos é apelar para os chineses, sempre eles. EXAME apurou que a Three Gorges, dona da maior hidrelétrica do mundo, quer entrar no consórcio para construir a hidrelétrica São Luiz de Tapajós, que custará 31 bilhões de reais (sem incluir o sobrepreço, claro) e com leilão previsto para 2016. O governo começou a repensar a política para energia nuclear, hoje restrita ao Estado, para permitir a participação da China National Nuclear na usina Angra 4.
Mas a tarefa mais complicada a que o governo e a Eletrobras se dedicam é colocar o mínimo de ordem na falta de controle que impera na empresa, algo que já vinha sendo apontado por auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU) nos últimos três anos. Faltava o básico em termos de gestão e controle, como checar o destino dado ao dinheiro aplicado em patrocínios e convênios.
O TCU identificou uma série de irregularidades no patrocínio ao clube carioca Vasco da Gama, entre 2009 e 2013, à Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo e à Confederação Brasileira de Basketball. As patrocinadas estavam usando o dinheiro para pagar dívidas trabalhistas anteriores ao contrato, o que é proibido.
Se ficar comprovado que usaram o dinheiro de forma irregular, podem ter de devolvê-lo. O TCU também identificou falhas no controle de Sociedades de Propósito Específico (SPEs), que são empresas criadas a cada projeto com diferentes sócios. São 157 SPEs, que incluem algumas das maiores obras do país, como a usina de Belo Monte.
São tantos problemas vindo à tona que uma reunião do conselho fiscal em 27 de março virou terapia de grupo entre o diretor financeiro, Armando Casado, e os conselheiros. Eles desabafaram sobre a dificuldade de implementar todos os processos extras de checagem de contas e informações exigidos pela auditoria KPMG para a aprovação do balanço às vésperas da divulgação, no dia 30 de março.
Os próprios conselheiros destacaram que foi a primeira vez que a Eletrobras efetivamente fez seu papel de holding que pelo menos tenta controlar suas subsidiárias. A 15 dias do balanço, a auditoria enviou a 42 empresas do grupo um questionário técnico com 48 perguntas, incluindo desde dados financeiros até a forma de seleção de parceiros em leilão.
Com as respostas, a KPMG exigiu que a auditoria interna da Eletrobras se debruçasse sobre cinco SPEs, que no total estão orçadas em 81 bilhões de reais: as usinas Belo Monte, Jirau, Santo Antônio, Teles Pires e Angra 3. Santo Antônio e Teles Pires foram aprovadas, mas o grupo de auditores internos decidiu instaurar três comissões de fiscalização sobre as SPEs de Belo Monte, Jirau e Angra 3, todas sociedades com empreiteiras envolvidas na Lava-Jato. O balanço foi divulgado sem a conclusão do trabalho.
Em abril, quando a Eletrobras começaria a fechar as contas do primeiro trimestre, foi atacada em novo depoimento da Lava-Jato. Dalton Avancini, ex-presidente da construtora Camargo Corrêa, declarou em delação premiada ter pago propina à diretoria da subsidiária Eletronuclear para ganhar a obra de Angra 3.
Com as comissões de fiscalização ainda em andamento e o novo indício de suposta corrupção, a Eletrobras adiou a publicação do formulário 20-F no mercado americano, documento-padrão que serve de referência para os investidores. A publicação, que deveria ser feita em abril, ainda não foi divulgada.
A KPMG havia alertado que, caso as comissões encontrassem qualquer suspeita, a Eletrobras teria de contratar empresas independentes de fiscalização. EXAME apurou que a Eletrobras procurou, em maio, o escritório brasileiro Trench, Rossi e Watanabe (o mesmo que trabalha nas investigações da Petrobras) e o escritório americano Clifford Chance.
Os contratos, no entanto, só podem ser fechados via licitação, que ainda não aconteceu. No Brasil, o resultado do primeiro trimestre foi divulgado com ressalva da KPMG. A agência Moody’s rebaixou a nota da Eletrobras. “É importante ressaltar que as acusações se referiram estritamente à Eletronuclear, e a empresa tem tomado providências”, diz Braga. Para acalmar os ânimos e acelerar a reestruturação, ele está mudando o comando de subsidiárias de geração — a Eletrosul foi a primeira e a Chesf deverá vir em seguida.
Em meio a tanta mudança, a Eletrobras terá de encarar a insatisfação dos acionistas. Com base na decisão da Comissão de Valores Mobiliários, em maio, de multar a União por voto com conflito de interesses na renovação das concessões, alguns minoritários resolveram processar a empresa.
Eles já estavam indignados por não receber dividendos no ano passado. Agora querem ser remunerados — se não for com resultados, pelo menos com indenizações judiciais. O valor de mercado da Eletrobras caiu quase 70% em cinco anos. As ações da Petrobras caíram 53% no mesmo período. A disputa pelo posto de estatal mais maltratada do país é duríssima. Mas, até agora, o mercado dá seu voto à Eletrobras.