Sundfeld: “Sem paciência com os defeitos da política, os juízes se rebelam. Mas não melhoram a democracia” (Germano Luders/Exame)
Leo Branco
Publicado em 15 de fevereiro de 2018 às 05h00.
Última atualização em 3 de agosto de 2018 às 08h12.
O advogado Carlos Ari Sundfeld é um dos maiores especialistas em teoria jurídica no Brasil. Fundador dos cursos de pós-graduação em direito da Fundação Getulio Vargas de São Paulo e da Sociedade Brasileira de Direito Público — um centro de pesquisas dedicado à modernização das leis —, Sundfeld é um espectador atento aos movimentos do Judiciário no país há pelo menos quatro décadas.
Nos últimos anos, o antagonismo crescente entre juízes e membros do Ministério Público e a classe política, desmoralizada pela fartura de escândalos de corrupção, tem deixado o pesquisador preocupado com o voluntarismo de magistrados. “Os embates são pautados nas distintas lealdades políticas, não em preceitos legais”, diz Sundfeld. “O risco é sério: o Judiciário está se degradando.”
Para ele, estamos retornando a uma turbulência institucional comparável às frequentes revoltas de patentes baixas do Exército brasileiro na década de 20 — movimento chamado de “tenentismo”. Na entrevista a seguir, Sundfeld explica como a eleição de 2018 pode reequilibrar o jogo entre os Poderes.
O senhor acredita que haja uma queda de braço entre os Três Poderes hoje no Brasil. Quais as evidências disso?
A relação entre os Poderes está problemática. Nossos juízes entraram na política e os órgãos de controle avançam na disputa de poder com o Executivo. O país está sem rumo institucional. Quando há oportunidade, alguém faz alguma coisa fora de suas atribuições constitucionais. Um episódio significativo foi o indulto a presos concedido pelo presidente Michel Temer às vésperas do Natal de 2017, depois suspenso pelo Supremo Tribunal Federal.
O indulto é um recurso garantido por lei ao presidente da República. Por quê? Para diminuir a superlotação das cadeias. O Brasil tem hoje 720 000 presos, o dobro da capacidade. Além disso, há cerca de 500 000 mandados de prisão para ser cumpridos. Embora digam que a razão para soltar presos é o espírito natalino, na verdade o indulto é uma ferramenta de gestão penitenciária. Mas, após uma campanha enorme do Ministério Público, o Supremo tirou um instrumento vital para evitar a explosão do sistema prisional.
Qual a origem dessa judicialização?
É a junção de uma Presidência fraca, que está tocando uma agenda diferente da que mostrou na eleição de 2014, com uma desmoralização geral dos partidos e da política. O Judiciário ocupou o vácuo de poder. Para resgatar esse espaço, precisaríamos de um governante capaz de conquistar a credibilidade da opinião pública com um discurso ético, algo complicado para um governo como o de Temer, com tantas denúncias de corrupção.
Já tivemos momentos semelhantes na história política brasileira?
Há um paralelo com as revoltas de soldados e tenentes contra a política brasileira dos anos 20 [movimento chamado de “tenentismo”, do qual saí-ram líderes políticos, como o comunista Luís Carlos Prestes]. A Presidência de José Sarney, nos anos 80, também teve crises institucionais. Mas, naquele momento, a política tinha mais moral. As instituições protagonistas dos atuais embates, como o Ministério Público e o Tribunal de Contas, ainda buscavam espaço. A complacência inicial delas com o Executivo foi se perdendo. Por isso, o momento -atual é mais difícil do que o passado.
Nessa disputa, como o senhor avalia o desempenho do Judiciário?
Há muitas falhas. Em meio à crise fiscal, juízes e procuradores, que defendem com empenho a moralidade pública, foram expostos ao seguir o atalho do auxílio-moradia para aumentar ganhos. É um comportamento cínico, que os desmoraliza. É uma pena. O ministro Gilmar Mendes critica nos outros os defeitos que recusa a ver em si mesmo. Além disso, Mendes é mais um exemplo de juiz voluntarista fazendo política.
Os embates são pautados nas distintas lealdades políticas, não em preceitos legais. O risco é sério: o Judiciário está se degradando. Tome o exemplo da nomeação da deputada Cristiane Brasil [PTB-RJ] para o Ministério do Trabalho. Sem entrar no mérito das acusações, a suspensão da posse dela pelo Supremo foi um “tenentismo judicial” contra um governo de poucos princípios.
A ministra Cármen Lúcia proibiu e o presidente Temer achou normal. Os juízes, sem mais paciência com os defeitos da política brasileira, abandonam a disciplina e se rebelam. Mas não melhoram a democracia: políticos espertos saberão tirar proveito desses impasses.
Há jeito de reequilibrar a relação entre os Poderes ainda neste governo?
Acho difícil. Perdemos os parâmetros na relação dos Poderes, o que atrasa a tomada de medidas importantes para o país. Um exemplo: o BNDES precisava devolver o dinheiro que recebeu do Tesouro nos governos petistas. Era uma decisão óbvia diante do desajuste nas contas públicas. Mas o governo precisou esperar sete meses até o Tribunal de Contas da União autorizar a medida, tomada só em dezembro de 2016. Essa demora não faz sentido.
A eleição de 2018 conseguirá resolver esse desajuste?
Dificilmente na eleição isso será discutido. Mas uma parte da confusão será resolvida com a eleição de um novo presidente. O novo governo poderá invocar a legitimidade obtida nas urnas para enfrentar o Judiciário. Um presidente eleito com mais de 50% ou 60% dos votos no segundo turno já tem base de apoio suficiente para avançar com uma agenda.
Isso independe da filiação partidária de quem levar a Presidência?
Com os pré-candidados de hoje, ainda não dá para ter clareza sobre a agenda do governo em 2019. Além disso, as soluções para as crises institucionais estão só começando. A reforma política é uma tremenda confusão. Nossos partidos pensam pouco no futuro. Mesmo assim, será um novo governo, o que já é um alento.