Caminhões com soja na BR-163, no Pará: após tabelamento do frete, caiu o tráfego na região / Luciana Whitaker/Pulsar Imagens
Da Redação
Publicado em 19 de julho de 2018 às 05h58.
Última atualização em 20 de julho de 2018 às 22h56.
O término da greve dos caminhoneiros no fim de maio não encerrou por completo o caos no país. A situação mais alarmante foi resolvida: o abastecimento de combustíveis foi restabelecido, o tráfego foi normalizado e as pessoas puderam voltar à rotina. Mas parte do transporte de cargas, difícil de observar no dia a dia das cidades, permanece travada desde então. A nova paralisação ocorre porque, em resposta aos grevistas, o governo Michel Temer decidiu que o mercado de fretes rodoviários não responde mais às regras de oferta e demanda. Desde 30 de maio, o preço do serviço é determinado por uma tabela da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a reguladora do setor.
O Congresso, numa votação na correria pré-recesso, em 11 de julho, chancelou a decisão ao aprovar a medida provisória que impõe a tabela, em meio a um pacote de projetos com impacto drástico na economia (veja quadro). O tabelamento, que serviu para acalmar os ânimos dos caminhoneiros, irritou o setor produtivo. Produtores de diversos itens que estavam impedidos de usar o frete rodoviário por imposição dos grevistas agora não o fazem por decisão própria. “Sempre que interfere num mercado, o governo causa alguma distorção. Esse episódio tem mostrado isso claramente”, diz o economista Celso Toledo, diretor da consultoria LCA e colunista do aplicativo EXAME Hoje.
O agronegócio está na situação mais alarmante. De acordo com um levantamento da Confederação Nacional da Agricultura com dez associações do setor, 13 milhões de toneladas de soja, em grão ou farelo, deixaram de ser exportadas no primeiro mês após a publicação da tabela. De janeiro a maio, em média, 950 caminhões trafegaram por dia pela BR-163, estrada que liga a região produtora de Mato Grosso aos portos do norte do país. Desde o início de junho, o número caiu para 500 veículos.
Muitos armazéns estão atingindo a capacidade máxima e parte dos grãos está exposta a céu aberto, mais suscetível a pragas. “Estamos estocando o máximo que conseguimos enquanto esperamos uma solução para o impasse do frete”, diz o produtor Gustavo Ribas, que planta soja, milho e feijão em 1.300 hectares no Paraná. Como os caminhões não chegam aos portos, eles não voltam com os fertilizantes para os produtores prepararem o próximo plantio: 70% desses produtos ficaram presos nos portos desde o início da greve e a fila alcançou 35 navios à espera para atracar. No Porto de Paranaguá, por onde entram 40% dos fertilizantes, os armazéns com capacidade para 3 milhões de toneladas estão cheios e há navios pagando uma taxa diária porque não conseguem descarregar — a administração do porto diz que há dez navios na fila, já agendados para ser descarregados.
A situação é ainda pior porque a ANTT se atrapalhou ao sair ditando preços. A agência publicou uma tabela, depois chegou a soltar uma segunda versão em resposta a reclamações das empresas donas de cargas e, por fim, voltou atrás, para a primeira. Nesse vaivém não foi capaz de produzir algo eficiente: a tabela toma como referência o custo de um caminhão de três eixos para determinar o preço do frete, com valores que aumentam na proporção do tamanho do veículo. “Mas os custos de um caminhão de seis eixos não são o dobro do de três. Por exemplo, ele não usa dois motoristas”, diz Ramon Alcaraz, sócio da transportadora Fadel.
“A tabela não considera os ganhos de escala de ter um caminhão maior.” As distorções não param aí. A tabela só leva em conta distância, quantidade de eixos e tipo de carga. Os modelos do mercado, porém, ainda incluem tipo de caminhão, cidades de origem e de destino e produtividade da operação. De acordo com o Instituto de Logística e Supply Chain (Ilos), com a tabela, o transporte numa rota de 100 quilômetros num caminhão de cinco eixos custa 1.050 reais. Considerando as demais variáveis, o custo da operação pode ir de 550 a 1.207 reais.
Segundo a tabela, os donos da carga precisam pagar pela volta do caminhão quando ele estiver vazio. No caso do leite, o retorno quase sempre é vazio, porque a lei impede que o transporte seja dividido com outra mercadoria para evitar contaminação. Ao unificar o preço, a tabela ainda ignora as características dos mercados, como a entressafra agrícola, quando o preço do frete cai até 40%. “O tabelamento por si só é um absurdo. Feito do jeito como está, piora ainda mais a situação”, diz Maurício Lima, sócio do Ilos.
Frota própria
Como consequência do tabelamento, o custo do frete rodoviário disparou. Para algumas empresas, o aumento chega a 250%. O serviço estava barato porque havia muitos caminhões no mercado — houve aumento de 27% nas vendas desses veículos de 2010 a 2017. É algo que seria corrigido com o tempo e com a retomada da economia. Mas, num atalho para resolver a situa-ção dos caminhoneiros, o governo impôs um preço alto ao setor produtivo.
No caso da indústria paulista, a estimativa é que a medida cause um gasto adicional com frete de 3,3 bilhões de reais até dezembro, piorando uma situação que já era preocupante. “Há um terço de ociosidade nas empresas do setor, a economia não cresce como se imaginava e agora vem esse custo que não estava previsto”, diz José Ricardo Roriz Coelho, presidente em exercício da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).
Na agropecuária, uma estimativa considerada conservadora, de aumento médio de 40% do frete rodoviário, o impacto teria sido de 9 bilhões de reais um mês depois de sair a tabela. De acordo com o Ilos, se todos os fretes no país forem calibrados para o novo patamar, o custo adicional com o transporte rodoviário será de 80 bilhões de reais ao ano, para quase meio trilhão no total.
Por outro lado, a medida pode não ter o efeito benéfico com que sonham os caminhoneiros. A americana Cargill, do setor de alimentos, cogita montar uma frota própria para trafegar entre suas fábricas e os portos. “Dessa forma, reduziríamos o ‘risco caminhoneiro’”, diz Paulo Sousa, diretor de grãos e processamento da Cargill na América Latina.
Já a Mallory, empresa de eletrodomésticos do grupo espanhol Taurus, decidiu levar seus produtos fabricados na cidade de Maranguape, na região metropolitana de Fortaleza, até os clientes das regiões Sul e Sudeste via cabotagem (a navegação próxima da costa ou em pequenas distâncias). A tabela fez triplicar o preço do frete rodoviário pago pela Mallory, considerando a entrega na região metropolitana de São Paulo. Com a cabotagem, foi possível reduzir o aumento à metade. “O transporte rodoviário se tornou inviável e decidimos abandoná–lo, mesmo levando um terço do tempo da cabotagem”, diz Alan Costa, diretor de operações da Mallory.
Ainda há impasses a respeito da tabela. Segundo o texto aprovado no Congresso, uma nova versão deve ser publicada em 120 dias, após discussões com empresas donas de cargas e transportadores — consultada, a Associação Brasileira dos Caminhoneiros não respondeu à reportagem. A esperança do setor produtivo está no Supremo Tribunal Federal (STF), onde três ações questionam a medida, com o argumento de que a Constituição só permite a interferência do governo nos mercados para regular, e não para fixar preços.
O ministro Luiz Fux suspendeu as ações e promoverá uma audiência no fim de agosto para discutir o tema antes de dar seu parecer. Depois disso, os processos passarão pelo plenário do STF. Segundo EXAME apurou, a estratégia dos advogados que entraram com as ações será pressionar o Supremo expondo os impactos que a medida traz para a economia. Outra tentativa será fazer a tabela se tornar referencial, e não impositiva, para os preços dos fretes.
Toda essa história mostra como a lógica econômica pode sofrer sob um imperativo político. O governo Temer aprovou a medida porque estava fragilizado perante os grevistas e da população. Já o Congresso deixou que ela passasse, de olho nas eleições. Isso mesmo com o corpo técnico do governo contrário: o Conselho Administrativo de Direito Econômico diz que a tabela é anticoncorrencial; e o Ministério da Fazenda, que pode elevar os preços. Segundo a Fiesp, a maioria das indústrias pretende repassar o custo do frete mais alto.
As associações dos produtores agrícolas projetam um encarecimento de 10% no arroz, 45% no frango e 50% no leite. A cesta básica de junho deve ter ficado 12% mais cara. “O tabelamento gera ineficiência na economia, com perda de bem-estar para a população”, diz Thiago Guilherme Péra, do grupo de pesquisa em logística da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz. O governo tomou o pior dos rumos. E, por enquanto, não há sinal de que tenha achado um bom caminho.
UMA FARRA AO CUSTO DE 100 BILHÕES DE REAIS
Um tresloucado pacote de medidas aprovado pelo Congresso antes das férias de julho reflete um governo fragilizado, deve elevar o custo fiscal e pode complicar a vida do próximo presidente da República
O Congresso Nacional viveu momentos de desvario antes do recesso de julho: decidiu aprovar 12 projetos com um impacto para os cofres públicos que pode chegar a 107 bilhões de reais até 2020. O pacote contém itens que vão desde o aumento salarial de agentes comunitários de saúde e a manutenção de benefícios fiscais para a indústria de refrigerantes até a criação de 300 municípios no país, este último item ainda sem o custo mensurado.
O maior valor, no entanto, de 39 bilhões de reais por ano, diz respeito a uma compensação aos estados pela desoneração do imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços nas exportações realizadas pelas empresas brasileiras. “Primeiro, os parlamentares deixaram o ajuste fiscal para trás, sem dar respaldo a medidas como a reforma da Previdência ou a venda de distribuidoras deficitárias da Eletrobras. Para piorar, agora começaram a impor mais despesas ao governo”, diz Fábio Klein, economista especializado em contas públicas da consultoria Tendências.
A explicação está no cenário político. O governo está enfraquecido e, portanto, com reduzida capacidade de estabelecer uma agenda legislativa. Já os parlamentares, inclusive da base aliada, seguiram uma estratégia de sobrevivência, aprovando projetos para angariar votos. Além disso, segundo os especialistas, a aprovação ou não dessas propostas pode ser usada como moeda de troca pelos congressistas para negociações com o próximo presidente da República. Os deputados e senadores chegariam ao próximo mandato com mais poder de barganha.
A consultoria política Eurasia, no entanto, não acredita na aprovação final da maior parte do pacote. Entre as explicações está o tempo curto até as eleições, com apenas duas sessões deliberativas do Congresso em agosto, e a tramitação demorada dos projetos — caso o presidente Michel Temer vete alguma proposta, ela terá de ser reavaliada pelo Legislativo. Além disso, a consultoria diz que o Tribunal de Contas da União está mais vigilante quanto às medidas com impacto fiscal, exigindo compensações.
De maneira geral, essas medidas complicariam a vida do próximo presidente eleito. Conforme o orçamento aprovado, a meta fiscal para o ano que vem é de um déficit de 139 bilhões de reais. As projeções dos economistas são de que o patamar poderá ser alcançado, mas com emoção. “O crescimento mais fraco da economia poderá levar à frustração na receita tributária, elevando o desafio de alcançar essa meta”, diz Sergio Vale, economista–chefe da consultoria MB Associados.
Além disso, para conseguir respeitar a regra que limita o aumento dos gastos conforme a inflação do ano anterior, o governo precisa passar em algum momento no Congresso uma reforma da Previdência. “A alternativa seria o desequilíbrio das contas, a perda da confiança na economia e uma nova crise”, diz Vale. A farra fiscal pode até agradar ao eleitorado — mas pode trazer uma grande ressaca.