O grande experimento chileno (Jorge Sanchez/EXAME.com)
Da Redação
Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 08h17.
Última atualização em 10 de fevereiro de 2021 às 18h25.
Prometem-se: um par de bois; um arado; uma carroça de madeira; 150 tábuas; 23 quilos de pregos e um terreno de 70 hectares.” Topar com cartazes desse tipo era algo trivial na vida de cidadãos europeus do século 19. O propósito das promessas era seduzir migrantes à “bela República do Chile, um dos melhores climas do mundo e um Estado livre por excelência”. A estratégia para fazer prosperar o jovem país, mesmo à época, não era nova — tampouco original. Concorria com a de outras nações do Novo Mundo, Brasil incluído, e tinha como maior exemplo o rápido desenvolvimento dos Estados Unidos naquelas décadas, uma nação forjada com milhões de habitantes de outros continentes em busca de uma vida melhor.
Imitar o modelo de crescimento americano tem sido, não sem razão, uma prática comum de governos de todo o mundo. Na área de tecnologia, nenhum lugar tem sido tão cobiçado quanto o Vale do Silício, de onde saíram as empresas de tecnologia mais inovadoras do mundo, responsáveis por fundar as bases da economia digital. Em toda parte, países têm investido um bom dinheiro, Brasil outra vez na lista, no esforço de replicar o prodígio californiano. Até agora, porém, praticamente todas as empreitadas para criar celeiros de inovação seguiram o mesmo roteiro. Primeiro ato: fortalecer uma universidade de pesquisa. Segundo: construir um parque tecnológico. Terceiro: oferecer incentivos fiscais — e, por fim, sentar e esperar a mágica acontecer. A cena final lembra os filmes de faroeste, com o cricrilar de grilos e fardos de feno levados pelo vento no desolador cenário do deserto americano. Sinopse da aventura: nada, ou quase nada, acontece.
É aqui que o Chile entra outra vez na história. “Oferecem-se: espaço para escritórios; mentoring; networking com investidores; visto de um ano; 40 000 dólares para investir em projeto de tecnologia a ser desenvolvido localmente.” Eis a estratégia para, no século 21, criar, do zero, um dos maiores polos de inovação do mundo: convencer algumas das mentes mais brilhantes da atualidade a fundar e desenvolver suas empresas de tecnologia — por que não? — no Chile. O experimento, batizado de Start-Up Chile, já é uma das vitrines do governo do presidente Sebastián Piñera e vem na esteira de projetos e reformas para elevar a competitividade do país. “Sabemos que pode parecer uma ideia um pouco louca”, diz Jean Boudeguer, diretor executivo do programa e ex-executivo da LAN. “Mas também achamos que, com ela, podemos mudar o mundo.” Ao “importar” empresas em estágio embrionário, o modelo chileno tem um novo ponto a provar: não são universidades, parques tecnológicos espaçosos ou baixos impostos, afinal, que fazem a inovação acontecer. São empreendedores.
Ambiente
Fica no 12º andar de um alto edifício de fachada espelhada, a poucas quadras do Palácio de La Moneda, sede do governo federal, o escritório central do Start-Up Chile. Alguns poucos biombos de vidro fazem a separação dos ambientes. No maior deles, mesas compridas e sem divisórias, como em uma biblioteca, preenchem quase todo o espaço. É lá que, desde outubro, fundadores e funcionários de 25 startups de vários cantos do mundo costumam trabalhar, lado a lado, todos os dias. E é em ambientes de trabalho abertos como esse que, até o fim do ano, segundo o programa, 100 novas empresas de tecnologia vão aportar no Chile — até 2014, serão 1 000.
Sentado a uma mesa com vista para o movimentado centro comercial de Santiago, o alemão Andreas von Hessling, de 30 anos de idade, trabalha em silêncio. Hessling é fundador da AI Merchant, que desenvolve sistemas de inteligência artificial para fazer arbitragem de mercados online, e foi um dos primeiros “Silicon boys”, como vêm sendo chamados, a chegar à cidade. Antes do Chile, Hessling passou os últimos anos na Califórnia, onde trabalhou como engenheiro do eBay e pesquisador da Universidade Stanford. Ser selecionado para o Start-Up Chile significou a oportunidade de trabalhar em tempo integral no seu primeiro empreendimento. Pelo programa, negócios em estágio inicial recebem auxílio de mentores experientes, em geral presidentes e executivos de grandes companhias. “Tenho ouvido conselhos essenciais sobre como estruturar e formatar o negócio”, diz Hessling. A poucos laptops de distância dali, usando grandes fones de ouvido, o irlandês James Kennedy responde a e-mails em nome da Piehole, empresa de dublagens e gravações de voz fundada por ele há dois anos. Com passagens por companhias de software da Europa e dos Estados Unidos, ele agora pretende expandir os serviços de sua startup para toda a América Latina. “O nível de acesso a contatos que obtemos pelo programa é algo que eu não teria nem no meu próprio país”, diz Kennedy. “Tanto apoio faz você se sentir mais ambicioso.”
Tal sentimento é compartilhado pelo americano Vijay Kailas, de 29 anos, que na mesa ao lado se ocupa do design do Numote, um aplicativo de smartphones para interação social com conteúdo de canais de TV. Antes de chegar ao Chile, Kailas, graduado pela Universidade Harvard, trabalhava em um protótipo do software que tem como clientes canais de televisão. Nos Estados Unidos, ele esperava na fila por contatos com grandes redes de comunicação. Depois de 11 dias no Chile, conseguiu uma reunião com um dos maiores canais de TV do país. “Aqui tudo acontece mais rápido”, diz Kailas. Há dois meses em Santiago, os portugueses Tiago Matos e Filipe Gonçalves, engenheiros pela Universidade do Porto, trabalham para aperfeiçoar o Vendder, uma startup de lojas virtuais simplificadas. Poder desenvolver o projeto livremente tem sido uma das maiores vantagens da nova vida no Chile. “Se tivéssemos recebido aporte de investidores, já sofreríamos pressão externa por resultados”, diz Gonçalves. “É importante ter liberdade para testar ideias num estágio inicial.”
Nuances à parte, os exemplos acima contam a mesma história: a de que é mais fácil e cômodo trabalhar numa jovem empresa de tecnologia quando há apoio e empenho de algum governo. Como contrapartida, os empreendedores têm poucas obrigações. Por contrato, eles precisam ficar apenas seis meses no país. Espera-se, obviamente, que muitos escolham permanecer caso seus projetos, de fato, decolem. O maior legado do Start-Up Chile, porém, deve ir além da instalação de novas empresas de tecnologia. “Queremos criar uma cultura de empreendimentos de tecnologia e um ecossistema de inovação que se alimente por si só”, afirma Boudeguer, diretor do programa.
Além do contato no dia a dia, encontros semanais em bares e restaurantes promovem a troca informal de experiências entre os empreendedores e desenvolvedores locais. Ao menos uma vez por mês, os fundadores das empresas devem participar de palestras ou workshops em universidades ou eventos da cena de startups local. “O programa é excitante porque tem como objetivo importar o espírito empreendedor”, afirma Tina Seelig, diretora executiva do centro de empreendimento da Universidade Stanford. Grande parte das startups já contratou desenvolvedores, designers ou administradores chilenos nos projetos. O programador Francisco Ananda, de 24 anos, trabalha na Picssy, empresa de compartilhamento de imagens na rede. De casa, ele começou a desenvolver um projeto próprio de startup, uma rede social para compartilhar fotos de eventos. Seus passos são acompanhados de perto por empreendedores do programa. “Alguns disseram que não vai funcionar. Outros me dão apoio”, diz Ananda. “É nesse tipo de troca que estou interessado.”
Encontrar um apartamento que acomodasse a mulher e os sete filhos foi um dos desafios que o americano Corey Wride teve de encarar logo que chegou a Santiago. Engenheiro de software com experiência em companhias de internet, Wride é o criador da Movie Mouth, startup de sistemas de ensino de línguas por meio de mídias de entretenimento. “Foi tudo muito mais fácil do que eu imaginava”, diz ele. Apenas duas semanas depois de desembarcar na cidade, Wride já estava estabelecido — moradia, conta no banco, visto e número de identificação no país para ele e toda a família. A experiência pouco lembra a que viveu quatro anos antes, quando decidiu tocar seu projeto por conta própria no Brasil. Na época, Wride havia se mudado com a família para uma chácara em Campinas, no interior de São Paulo (naquele tempo, com apenas cinco filhos), de onde começou a conduzir pesquisas. “O tamanho do mercado me impressionou, e quis ficar no Brasil”, diz. Mas nem tudo andou como planejado. Com dificuldades que iam da obtenção de vistos à contratação de pessoal, Wride teve de retornar aos Estados Unidos. A chance de voltar à América do Sul veio após ser selecionado para o Start-Up Chile. “Ter apoio do governo, para um estrangeiro, faz toda a diferença”, diz Wride. E pergunta: “Existe algum projeto assim no Brasil?”