Revista Exame

O filme é só o começo

Depois de algumas produções bem-sucedidas, o cinema brasileiro parte para um novo desafio: fazer filmes que ganhem dinheiro fora das salas de exibição

Tikhomiroff (à frente) e seus sócios: entretenimento como negócio (--- [])

Tikhomiroff (à frente) e seus sócios: entretenimento como negócio (--- [])

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 12h33.

Dentro de duas semanas, uma equipe de 90 técnicos e 20 atores começa a filmar, no Recôncavo Baiano, as primeiras tomadas do filme brasileiro Besouro. O título é uma referência ao nome do herói da trama, um capoeirista que lança mão de poderes sobre-humanos para enfrentar um vilão personificado na figura de um típico coronel nordestino. Trata-se de uma produção de 10 milhões de reais, idealizada pela produtora Mixer e que será distribuída pela Buena Vista International, do grupo Disney. O filme terá música-tema de Gilberto Gil e efeitos especiais do chinês Huen Chiu Ku, responsável pelas cenas de ação de O Tigre e o Dragão e Kill Bill. Mas a grande diferença entre esse e tantos outros longas-metragens lançados recentemente no país não está exatamente nessas credenciais, mas sim no modelo de negócios criado em torno do filme. Antes mesmo de as filmagens começarem, os idealizadores de Besouro já planejaram vários "filhotes" com base no argumento principal - um jogo de celular, uma série de animação e uma série de dramaturgia para televisão, além do licenciamento de uso do personagem principal em diversos produtos. Besouro está previsto para estrear apenas no segundo semestre de 2009, mas as primeiras ilustrações que servirão de referência para o desenho animado já começaram a ser feitas pela Mixer. A equipe de computação gráfica da empresa também trabalha no desenvolvimento do jogo. "O cinema brasileiro não tem tradição em planejar filmes dentro de um formato industrial de produção", diz Luiz Gonzaga de Luca, diretor da maior rede brasileira de cinemas, a Severiano Ribeiro, e professor da disciplina de economia do cinema na Fundação Getulio Vargas. "A grande preocupação ainda se resume a levar o público às salas de exibição."

 

Tradicionalmente, costuma-se associar o sucesso - ou o fracasso - de um filme com o volume de venda de ingressos nos cinemas. É por isso que os grandes estúdios de Hollywood divulgam com estardalhaço quando um filme bate recordes de bilheteria, principalmente nas estréias. Há dois meses, a Warner Bros. informou apenas algumas horas depois da estréia que Batman - O Cavaleiro das Trevas havia se tornado o filme que mais arrecadara em uma estréia ao atingir a cifra de 66 milhões de dólares num único dia. No entanto, esses anúncios servem muito mais como chamariz do que como barômetro financeiro. Em média, apenas 20% da receita dos filmes americanos tem origem nas bilheterias. A maior parte dos ganhos é proveniente da venda de DVDs, dos direitos de exibição em emissoras de TV paga e dos direitos de uso de personagens do filme em centenas de produtos, como jogos de computador, roupas, brinquedos e alimentos. O cinema é um dos principais combustíveis para a gigantesca indústria de licenciamentos - no ano passado, sete empresas ligadas ao mercado cinematográfico foram responsáveis por quase 44 bilhões de dólares de um total de 135 bilhões arrecadados pelas 100 maiores empresas de licenciamento do mundo (veja quadro na página seguinte).

No caso do cinema brasileiro, o licenciamento praticamente não existe. Em parte, isso acontece em decorrência da fraca produção nacional. Apesar do renascimento da última década com sucessos como Central do Brasil, Carandiru, Cidade de Deus, 2 Filhos de Francisco e Tropa de Elite, o cinema brasileiro registrou no ano passado uma participação de cerca de 10% no mercado nacional - enquanto os estúdios americanos lançaram 254 filmes e arrecadaram 627 milhões de reais com ingressos no Brasil, as produções nacionais não passaram de 82 filmes e 79 milhões de reais de receita. Outro motivo que dificulta o desenvolvimento de negócios em torno dos filmes é o tipo de produção feita no país. Os licenciamentos funcionam particularmente bem para gêneros de apelo juvenil como super-heróis e animação - ambos raríssimos no cinema nacional. É justamente essa lógica que a produtora Mixer pretende romper com Besouro, filme de aventura focado na figura de um herói e de apelo prioritariamente comercial. "O entretenimento tem de ser visto como uma fonte geradora de negócios", diz João Daniel Tikhomiroff, sócio da produtora e diretor do filme. "Filmes de sucesso não têm de ser necessariamente medíocres." Com 25 programas para TV, 45 documentários e centenas de comerciais no currículo, a Mixer tem como clientes canais de TV como Discovery Channel, Fox e France 3, além dos brasileiros Multishow e GNT.

Ainda é cedo para saber se a estratégia de Besouro dará certo. Na verdade, algumas características do filme pesam contra os planos de Tikhomiroff e sua equipe. A primeira delas é o fato de se tratar de um filme inédito. Normalmente, os melhores filmes para licenciamento são exatamente as seqüências. Aos olhos das empresas que compram os direitos, é mais seguro apostar em produções cujos personagens já fizeram sucesso no passado. É o caso de Homem-Aranha 3, da Sony Pictures, o filme mais bem-sucedido da história recente em termos de licenciamento, que obteve receita de 500 milhões de dólares na venda de produtos - a bilheteria global foi de 890 milhões de dólares. O segundo desafio é que o personagem Besouro terá de passar pelo imponderável "teste de carisma" imposto pelas empresas. Alguns personagens simplesmente não conseguem convencer que terão apelo entre o público. Esse foi o caso do filme Os Sem-Floresta, da DreamWorks. "Não sei explicar exatamente o porquê, mas um dos personagens do filme, o esquilo Hammy, não causou empatia. Licenciamos menos do que o esperado", diz Jorge Peregrino, vice-presidente para a América Latina da distribuidora Paramount, responsável pelo filme no Brasil.

Os produtores do filme Besouro precisam ainda convencer as empresas a comprar os direitos de licenciamento de um personagem de apelo local. Normalmente, os preferidos do licenciamento são os personagens de filmes de alcance global, o que potencializa os ganhos de escala das empresas. Um exemplo é o filme Shrek Terceiro, que faturou 797 milhões de dólares em bilheteria no mundo. Apenas a rede de fast food McDonald';s distribuiu bonecos falantes de personagens do filme junto com kits de McLanche Feliz em 100 países (foram fabricados bonecos falantes de oito línguas diferentes). Os bonecos começaram a ser distribuídos sete dias antes do lançamento do filme. Nos Estados Unidos, quase todas as produções de animação e super-heróis chegam às telas simultaneamente ao lançamento de jogos eletrônicos envolvendo os personagens. No Brasil, a Tectoy Digital só produz jogos para celulares que, além de abastecer o mercado local, possam ser distribuídos em países da América do Norte e da Europa. Só com essa escala de distribuição o investimento na produção de jogos se paga. "Jogos com personagens locais até são possíveis, mas precisam ter muito apelo entre o público para dar certo", diz André Penha, diretor da Tectoy Digital, empresa que já licenciou personagens de filmes como A Bússola de Ouro e a última seqüência de Indiana Jones.

A indústria cinematográfica dos Estados Unidos passa por uma fase de acirramento da competição entre os grandes estúdios - fenômeno que se reflete no resto do mundo. Com cerca de 15 bilhões de dólares em caixa para investimentos, Hollywood está produzindo filmes demais. Só nos últimos cinco anos, o número de longas-metragens exibidos nos cinemas americanos aumentou quase 30%. Soma-se a isso a queda de quase 5% na freqüência de espectadores neste ano. Diante desse cenário, algumas distribuidoras têm optado por evitar fracassos no cinema e lançar alguns filmes diretamente em DVD - até mesmo quando grandes estrelas estão envolvidas. Esse foi o caso de Mais do Que Você Imagina, com os atores Antonio Banderas e Meg Ryan. Outra conseqüência é o enfraquecimento dos filmes de baixo orçamento. Hoje, estúdios e investidores têm considerado mais seguro investir em blockbusters (campeões de bilheteria com custos que, normalmente, ultrapassam 150 milhões de dólares). Além de conseguir atrair maior atenção dos espectadores diante da superoferta, muitos desses produtos ainda contam com a possibilidade de ganhos com licenciamentos.

Negócios além do cinema

Enquanto nos Estados Unidos o dinheiro despejado pelos fundos de investimento é um problema, no Brasil ocorre o oposto. Só 15% do financiamento de filmes vem de investidores privados - os outros 85% vêm da renúncia fiscal ou do investimento do governo. Por meio de mecanismos como a Lei do Audiovisual, as empresas deduzem do imposto de renda suas contribuições às produtoras. Como não comprometem um centavo sequer do próprio caixa, as empresas nem sempre usam a viabilidade comercial dos projetos como critério de escolha. Uma pesquisa do Sindicato de Empresas Distribuidoras Cinematográficas do Rio de Janeiro confirma que as produtoras agem em descompasso com o desejo dos consumidores. A maioria dos entrevistados disse que seu gênero preferido no cinema nacional é a comédia. Desde o começo do ano, de um total de 51 filmes lançados, apenas três são comédias. Depois da retomada da produção nacional da última década, o cinema brasileiro enfrenta um novo desafio: fazer filmes que se transformem em sucesso dentro e fora das salas de exibição.

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