Revista Exame

O esperado adeus de Cristina Kirchner na Argentina

Cristina Kirchner deixará a Casa Rosada neste ano, mas ainda é incerto quando seu desastrado legado será desmontado


	Cristina Kirchner: ela não será candidata mas vai continuar defendendo o projeto kirchnerista
 (Michele Tantussi/Bloomberg)

Cristina Kirchner: ela não será candidata mas vai continuar defendendo o projeto kirchnerista (Michele Tantussi/Bloomberg)

DR

Da Redação

Publicado em 21 de agosto de 2015 às 11h36.

São Paulo — A Argentina é o único país que em 1900 era considerado de Primeiro Mundo e em 2000 estava no grupo dos em desenvolvimento. Quem anda pelas ruas de Buenos Aires hoje tem uma clara visão desses dois momentos. A arquitetura imponente dos prédios antigos é dos tempos de abundância. Já a situação econômica das pessoas que passam pelas ruas é fruto de um populismo típico de Terceiro Mundo.

Nos últimos 12 anos, o país tem vivido sob o mando dos Kirchner. Primeiro foi a vez do já falecido Néstor, que governou de 2003 a 2007. Desde então, por Cris­tina, sua mulher. Ao longo desse perío­do, ocorreu uma orgia da heterodoxia. A imprensa foi perseguida, os dados econômicos foram mascarados, a inflação explodiu e a economia afundou.

De acordo com dados de consultorias, considerados mais confiáveis do que os oficiais, o PIB teve retração em dois dos últimos três anos e a previsão é que volte a encolher em 2015. A inflação estimada para o fim do ano é de cerca de 30%. “Para entender a situação argentina, é só pensar nos desequilíbrios ma­croeconômicos do Brasil e multiplicar por 3”, explica Alberto Ramos, diretor para a América Latina do banco americano Goldman Sachs.

Cristina passa o bastão ao sucessor em dezembro e, até há poucos dias, tudo levava a crer que mesmo o candidato governista, Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires, estaria disposto a se distanciar das desastrosas políticas dos últimos anos. Essa impressão foi colocada em dúvida em meados de junho, quando Cristina anunciou Carlos Zannini como vice de Scioli.

Zannini, apelidado de “El Chino” por admirar a teoria maoista, não foi escolhido por seu potencial de agregar votos à chapa oficial. Metade dos eleitores de Buenos Aires nem sequer sabe quem ele é. Seu principal atributo é ser um fiel escudeiro dos Kirchner desde os anos 80.
Nos últimos meses, a Argentina conseguiu dar uma respirada.

A diferença entre o dólar oficial e o paralelo diminuiu, o que melhorou a popularidade do governo. Os papéis da dívida tiveram elevação de preço e a bolsa argentina ensaiou uma recuperação. Tudo porque os investidores achavam que os ativos argentinos estavam baratos e que seria inevitável uma mudança de rota na economia. Com o lançamento de El Chino como candidato a vice-presidente, até os mais otimistas levaram um baque.

Eleição voto a voto

Scioli, que perdeu o braço direito num acidente de lancha na juventude, lidera as pesquisas, com 33% das intenções de votos, quase empatado com o político de centro-direita Mauricio Macri, ex-presidente do time de futebol Boca Juniors que hoje é prefeito de Buenos Aires. Macri é, sem dúvida, o que mais tem a simpatia do mercado.

Ao assumir a prefeitura da maior cidade argentina em 2007, sua primeira medida foi demitir 2 400 funcionários comissionados, o que provocou a ira dos sindicatos. Na campanha presidencial deste ano, já prometeu delegar mais poder ao Banco Central. Macri tem a seu favor o fato de ter recebido o apoio de outras frentes da oposição — algo inédito nos últimos anos.

Embora seja do Proposta Republicana, partido criado em 2010, Macri conta com o reforço da União Cívica Radical, tradicionalmente o principal rival dos peronistas agrupados no Partido Justicialista, o mesmo de Cristina. “Parece claro que a eleição será muito disputada”, diz Delvina Cavanagh, analista-chefe da agência de risco Standard & Poor’s na Argentina.

Correndo por fora, em terceiro lugar nas pesquisas, vem Sergio Massa, um ex-ministro de Cristina que se afastou do kirchnerismo. Jovem e carismático, Massa criou a Frente Renovadora nas eleições parlamentares de 2013. Como prefeito da cidade de Tigre, na província de Buenos Aires, aproveitou-se do enfraquecimento de Cristina para tornar-se líder de uma nova ala peronista.

Publicamente, apontou como argumentos para seu distanciamento a reestatização dos fundos de pensão e a maquiagem dos números feita pelo Indec, o equivalente argentino ao IBGE. Num primeiro momento, a manobra política deu certo. Em 2013, mesmo com meses de existência, a Frente Renovadora ganhou 16 dos 35 assentos de deputados da Província de Buenos Aires.

A empol­gação que gerou dois anos atrás, porém, perdeu força. O desempenho de Massa nas pesquisas tem desapontado quem apostava em sua candidatura. No último levantamento do instituto de pesquisa Management & Fit, em maio, ele apareceu com menos de 14% das intenções. Caso fique mesmo fora de um eventual segundo turno, ainda é uma incógnita quem ele vai apoiar — e, acima de tudo, se conseguirá transferir seus votos ao candidato indicado.

O efeito Orloff ao contrário

Na década de 80, era comum ouvir dos economistas que o Brasil estava sob o “efeito Orloff”, por copiar as políticas econômicas da Argentina. Na época, a propaganda da vodca ­dizia “Eu sou você amanhã”. Dada a gravidade da situação econômica ­argentina, será difícil o país evitar, cedo ou tarde, um processo de ajuste, em linha com o que está tentando ­fazer a presidente Dilma Rousseff ­no começo de seu segundo mandato.

Há quatro anos, a Argentina não sabe o que é superávit fiscal, e a previsão é que os déficits se repitam neste e no próximo ano. Não bastassem a economia recessiva, a inflação alta e a situação fiscal delicada, o político que assumir a Presidência no começo de dezembro também terá de des­cascar o tremendo problema da dí­vida externa argentina.

Em 2001, o país declarou moratória de cerca de 100 bilhões de dólares. Disposta a pagar uma fração do dinheiro que devia, a Argentina ofereceu em duas ocasiões, em 2005 e 2010, um acordo de reestruturação de dívida nada vantajoso aos credores. Para cada dólar devido, os investidores reaveriam de 25 a 30 centavos.

Vendo-se sem alternativa, cerca de 93% dos credores acabaram aceitando. Quem não concordou foi brigar na Justiça. No ano passado, a Suprema Corte americana validou uma decisão anterior do juiz Thomas Griesa, de Nova York. Pela decisão de Griesa, a Argentina terá de pagar bilhões de dólares para os detentores da dívida. O valor final — incluindo mora e multas — será definido em uma decisão futura. Enquanto essa situação se alonga, o país continua praticamente fora do mercado de emissão de dívidas.

As eleições presidenciais estão marcadas para o dia 25 de outubro. Caso se confirmem as previsões de que nenhum candidato terá votos suficientes para liquidar a fatura no primeiro turno, os eleitores argentinos vão voltar às urnas no dia 24 de novembro. Seja quem for o vencedor — Scioli, Macri ou Massa —, o certo é que os vários erros dos governos Kirchner nos últimos 12 anos vão cobrar uma fatura alta da nova gestão que assume em dezembro — e manter a Argentina no grupo dos países em desenvolvimento por muitos e muitos anos.

Acompanhe tudo sobre:América LatinaArgentinaBuenos AiresCristina KirchnerEdição 109202EleiçõesMetrópoles globaisPolíticos

Mais de Revista Exame

Borgonha 2024: a safra mais desafiadora e inesquecível da década

Maior mercado do Brasil, São Paulo mostra resiliência com alta renda e vislumbra retomada do centro

Entre luxo e baixa renda, classe média perde espaço no mercado imobiliário

A super onda do imóvel popular: como o MCMV vem impulsionando as construtoras de baixa renda