Revista Exame

Governos fazem onda de cerco a aplicativos e pressionam Airbnb, Uber e iFood

Mudanças, em debate em varias partes do mundo, buscam preservar imóveis para moradores e dar mais direitos a motoristas e entregadores

Airbnb: protestos em várias cidades, como este, em Cornwall, Reino Unido, pediram medidas para conter alta de aluguéis gerada pelo turismo (Gav Goulder/In Pictures/Getty Images)

Airbnb: protestos em várias cidades, como este, em Cornwall, Reino Unido, pediram medidas para conter alta de aluguéis gerada pelo turismo (Gav Goulder/In Pictures/Getty Images)

Rafael Balago
Rafael Balago

Repórter de macroeconomia

Publicado em 23 de novembro de 2023 às 06h00.

Última atualização em 23 de novembro de 2023 às 10h35.

Uma das maiores revoluções na economia neste começo de século foi a gig economy: por meio de plataformas virtuais, pessoas podem encontrar clientes para prestar serviços, alugar sua casa ou vender coisas. Com isso, na década passada, nasceu um modelo curioso: a Uber, uma das maiores empresas de transporte do mundo, não possui veículos próprios — mas intermedeia 27 milhões de viagens diariamente pelo globo. O Airbnb, referência em hospedagens, não tem nenhum quarto próprio — mas tem mais de 7 milhões de anúncios de casas, apartamentos e quartos em sua plataforma. E empresas de delivery tampouco possuem motos ou entregadores contratados.

O modelo foi criado nos Estados Unidos, no fim da década de 2000, e ganhou força a partir de 2010. Com a popularização dos smart­phones, as pessoas se acostumaram a pedir um carro ou a reservar uma viagem com poucos toques na tela. A mudança atraiu muito público e criou mercados, mas gerou revolta em setores estabelecidos, como o de taxistas e de donos de hotéis. Após alguns anos de embates, as empresas cederam a algumas regras, e as coisas se acalmaram, mas uma nova onda de pressão governamental ganhou força neste ano.

Aplicativo de transporte: motoristas querem valor mínimo por quilômetro rodado, mas empresas são contra (Bloomberg/Getty Images)

Em Nova York, o Airbnb­ foi alvo das regulações mais duras já feitas contra a plataforma. “É um banimento de fato”, diz o CEO Brian Chesky, em entrevista à EXAME. As novas regras, que entraram em vigor em setembro, exigem que todas as hospedagens em plataformas como o Airbnb sejam registradas na prefeitura e recebam aprovação. Um apartamento inteiro só pode ser alugado por prazo acima de 30 dias. Se o tempo for menor, o dono precisa morar no local onde fica o quarto alugado e não pode receber mais do que dois turistas por vez. Residências em áreas da cidade onde há controle do preço dos aluguéis não podem receber viajantes, entre outras regras. A cidade criou uma unidade de fiscalização para encontrar e processar moradores e plataformas que descumpram as regras. A multa pode chegar a 5.000 dólares para os donos de imóveis.

Com a medida, o governo busca aumentar a oferta de casas para os moradores da cidade. Como alugar para turistas, cobrando por dia, rende mais dinheiro do que em aluguéis mensais, muitos donos de imóveis optam pela primeira alternativa, o que encarece os contratos de longo prazo. “Moradia acessível, segura e estável é fundamental para uma cidade próspera, então não vamos permitir que maus atores esgotem nosso estoque de moradia e minem nosso setor de hotelaria”, disse Eric Adams, prefeito de Nova York.

Com a mudança, a oferta de opções do ­Airbnb caiu drasticamente. A cidade tinha cerca de 15.000 anúncios antes da mudança, mas teve só cerca de 300 hospedagens aprovadas quando a lei entrou em vigor. Para Chesky, do Airbnb, a mudança pode se voltar contra a cidade. “Nova York, em vez de ser um modelo, será mais um caso de alerta, porque muitas das propriedades vão acabar indo para um modelo clandestino. São as evidências que estamos vendo com base em mais anúncios no Craiglist [site de classificados dos EUA], Facebook e Instagram”, afirma. “Os hotéis estão 8% mais caros do que há um ano. A cidade está menos acessível para os viajantes, e podemos ter menos turistas.”

Além do Airbnb, Nova York também aperta o cerco contra Uber e Lyft. Lá, motoristas de aplicativo precisam ter carro com placa especial e seguir uma série de regras. No começo de novembro, as duas empresas concordaram em pagar 328 milhões de dólares em um acordo com a Promotoria por não fornecerem licença médica remunerada a motoristas, como determina a lei local, e por cobrarem dos condutores taxas que deveriam ser pagas pelos passageiros. O dinheiro será distribuído entre mais de 100.000 profissionais. “Por anos, Uber e Lyft sistematicamente trapacearam seus motoristas em centenas de milhões de dólares em pagamentos e benefícios, enquanto eles trabalhavam longas horas em condições desafiadoras”, disse Letitia James, procuradora-geral de Nova York.

Do outro lado do oceano, na Europa, mais pressão. O Conselho Europeu aprovou, em junho, o início de tramitação de um projeto de lei no Parlamento Europeu para dar direitos aos trabalhadores da gig economy. Nos 27 países da União Europeia, há cerca de 28 milhões de trabalhadores de aplicativos. O projeto prevê considerar que há vínculo trabalhista caso sejam atendidos pelo menos três de sete critérios, incluindo restrições a negar serviços e regras sobre aparência e conduta. A UE estima que as plataformas tiveram um grande salto na última década: as receitas do setor no bloco subiram de 3 bilhões de euros em 2016 para 14 bilhões em 2020, e devem chegar a 43 bilhões em 2025. “A gig economy trouxe muitos benefícios para nossa vida, mas isso não pode vir à custa dos direitos trabalhistas”, disse Paulina Brandberg, ministra de Vida Laboral e Igualdade de Gênero da Suécia. Em junho, uma nova lei federal na Espanha autorizou as cidades a criar restrições adicionais a aplicativos como Uber, podendo usar como justificativa apenas o objetivo de preservar os táxis, por exemplo. As empresas questionaram a lei em um tribunal da União Europeia, e o caso está sob análise.

No Brasil, a discussão se concentra nos aplicativos de transporte e entrega. O debate sobre a existência de vínculo trabalhista entre profissionais e plataformas continua na Justiça, embora o STF já tenha negado cinco vezes a existência dessa relação, a última delas em novembro. Com a chegada de Lula ao poder, em janeiro, o governo federal passou a defender um modelo que dê mais direitos aos motoristas e entregadores. Em março, a Câmara dos Deputados criou uma subcomissão permanente para debater o trabalho por aplicativo, e o grupo prepara um projeto de lei com novas regras para a atividade. O Ministério do Trabalho defende medidas como os trabalhadores receberem pelo menos um salário mínimo, terem novas formas de contribuir para a Previdência e ganharem alguns auxílios, como alimentação durante a jornada de trabalho. No entanto, há vários impasses entre os representantes dos trabalhadores e as empresas.

“Defendemos o mínimo de 2 reais por quilômetro rodado e 10 reais a hora mínima de trabalho. O trabalhador não pode estar na rua sem um ganho para sustentar o trabalho dele”, diz Leandro Cruz, presidente da Fenasmapp, que reúne sindicatos de motoristas por aplicativo. As empresas, por outro lado, consideram que o valor líquido mínimo ganho por hora seja de 6 ­reais, número proporcional ao salário mínimo mensal nacional. “Com esse mínimo legal, a gente entende que garante uma remuneração mínima adequada ao trabalhador e, ao mesmo tempo, permite que os modelos de negócios tenham competição entre si. A remuneração por quilômetro rodado travaria os modelos de negócios”, diz André Porto, diretor-executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec), que representa empresas como Uber, iFood e 99. A EXAME procurou as três companhias para esta reportagem, mas elas disseram que a entidade falaria em nome delas. A proposta atual da Amobitec prevê valor mínimo de R$ 21,22 por hora trabalhada para os motoristas, e de R$ 12 para entregadores, para que eles possam custear os gastos de manutenção dos veículos. “Somos favoráveis a uma regulação que dê direitos sociais aos trabalhadores, mas que ao mesmo tempo preserve as características desse modelo. São trabalhadores que exercem um trabalho de forma extremamente flexível, se logam a hora que querem e trabalham para diversas plataformas, às vezes ao mesmo tempo”, prosseguiu Porto.  

Entregador de comida em São Paulo: remuneração do tempo de espera é uma questão para a categoria (Leandro Fonseca/Exame)

Outro ponto de disputa, mais sensível especialmente a entregadores, é definir se os trabalhadores devem receber pelo tempo que estão logados nos aplicativos ou apenas pelo período em que fazem entregas ou levam passageiros. “Esse tempo de espera precisa ser incluído nas horas de serviço, mas é preciso fazer de um modo que não haja injustiça, como um trabalhador que fica ali só no aguardo, sem prestar nenhum serviço”, diz a deputada federal Flávia Morais (PDT-GO), presidente da subcomissão dos apps. Uma terceira queixa dos trabalhadores é a falta de transparência, desde a taxa cobrada pelas empresas, que pode variar a cada corrida, até a falta de possibilidade de recorrer em caso de expulsão das plataformas.

Para Porto, da Amobitec, a regulação deve incluir algo sobre as regras de remoção das plataformas, mas modular a cobrança de taxas seria “podar a inovação das plataformas”, que usam algoritmos complexos para definir quanto cobrar por corrida. Já sobre uma quarta demanda, a de que os trabalhadores sejam incluídos de alguma forma na Previdência, há consenso, mas a questão é como fazer isso na prática. O sindicato defende o pagamento de um percentual de contribuição em cima apenas dos ganhos líquidos de motoristas e entregadores, e não do faturamento total, pois motoristas gastam para manter o veículo. No fim de novembro, haveria uma nova reunião entre a subcomissão e o ministério, para debater o projeto. A expectativa é que o tema fique para 2024.

A retomada dos debates sobre a regulação dos apps é fruto também das incertezas econômicas. Nos últimos anos, a inflação subiu no Brasil, nos Estados Unidos e em muitos países, o que elevou os custos para motoristas e entregadores, sem que eles tivessem espaço para aumentar o preço dos serviços que oferecem, já que isso fica sob controle das plataformas. Assim, surgiram protestos e maior mobilização para pressionar as empresas. Do lado das empresas, o cenário também mudou neste começo de década. A alta dos juros nos Estados Unidos e em vários outros países reduziu o volume de dinheiro disponível para investimentos de risco, que ajudaram Uber, ­Airbnb e outras empresas inovadoras a dar descontos agressivos para criar mercado. A estratégia dificulta a entrada de novos competidores, mas deu certo para os primeiros entrantes. Airbnb e Uber se tornaram praticamente sinônimos dos serviços que oferecem, e somam faturamentos bilionários. No terceiro trimestre de 2023, o Airbnb faturou 3,4 bilhões de dólares e teve Ebtida (indicador de lucro descontado de gastos com a operação, impostos e outras despesas) de 1,8 bilhão. Já a Uber teve receita de 9,3 bilhões de dólares no mesmo período, com 1,1 bilhão de Ebitda. 

O avanço da regulação tem o desafio de conciliar a melhora das condições de trabalho dos profissionais e proteger o mercado de distorções, como os efeitos no preço dos aluguéis, sem deixar de reconhecer que o modelo da gig economy parece ter vindo para ficar. No Brasil, cerca de 1,5 milhão de pessoas trabalham via aplicativo, segundo dados do IBGE, e outros muitos milhões de clientes se acostumaram a gastar boa parte de sua renda mensal em comida e transporte pedidos por apps. Abandonar o modelo geraria um rombo na economia atual, além de trazer uma sensação de retorno ao século passado. Mas o aperto veio para ficar — e as plataformas terão uma jornada dura nesse período de adolescência do modelo de negócios. O que importa é que, em um mercado livre, o consumidor saia beneficiado; e o trabalhador, protegido.

O jornalista viajou a convite do Airbnb.

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