Revista Exame

Os novos benfeitores vão muito além das doações

Em meio à crise, e com a queda nos recursos dedicados à filantropia, negócios de impacto se mostram uma saída para manter investimentos sociais no país

Baggio, da ONG Recode:  cursos de formação voltados para empresas (André Valentim/Exame)

Baggio, da ONG Recode: cursos de formação voltados para empresas (André Valentim/Exame)

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Da Redação

Publicado em 20 de junho de 2019 às 05h30.

Última atualização em 25 de junho de 2019 às 14h36.

carioca Rodrigo Baggio iniciou sua trajetória como empreendedor social em 1995, aos 26 anos, quando decidiu abrir sua primeira sala de aula de informática para jovens de comunidades pobres no Rio de Janeiro. Hoje, a ONG Recode oferece cursos em oito países e já formou mais de 1,7 milhão de alunos. Ao longo dessas duas décadas, todo o avanço do trabalho dependeu exclusivamente de doações. Mas a instabilidade na captação dos recursos em meio à crise fez com que Baggio pela primeira vez decidisse abrir uma nova frente de arrecadação de recursos. Em junho, a Recode, voltada para iniciativas de inclusão digital, lançou um novo braço de atividades, batizado de Recode Pro.

A ideia é oferecer os mesmos cursos profissionalizantes na área de tecnologia a jovens socialmente vulneráveis. Mas, desta vez, os cursos são feitos para suprir mão de obra para empresas específicas. Inicialmente, o programa com duração de cinco meses será financiado por meio de um apoio da consultoria Accenture. Outras empresas que queiram contratar um dos novos profissionais devem reembolsar a ONG pelos custos de formação, estimados em 4.000 reais por aluno, capacitado para atuar em todas as etapas de criação de um site ou aplicativo. “É uma área com alta demanda em termos de emprego”, diz Baggio, presidente da Recode. “Criamos o modelo para atender a uma necessidade do mercado de trabalho.”

A mentalidade de que iniciativas de impacto social podem beber na fonte dos modelos de negócios que visam ao lucro vem ganhando força. Para o terceiro setor, essa é uma maneira de driblar as dificuldades em captar recursos, não só devido à crise econômica mas também pela falta de incentivos e de uma cultura filantrópica mais enraizada no país. O volume de doações no Brasil é pequeno em comparação ao de países desenvolvidos. No ano passado, a filantropia representou 0,2% do produto interno bruto, o equivalente a quase 14 bilhões de reais, segundo o Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), entidade que promove apoio técnico a investidores sociais. Nos Estados Unidos, a proporção é de 1,4%. Para piorar, a crise tornou tudo mais difícil aqui. “Tanto as doações de pessoas físicas quanto as de pessoas jurídicas caíram no último ano”, afirma Paula Fabiani, presidente do Idis.

Em contraponto ao declínio das doações filantrópicas, os investimentos nos negócios de impacto, como são chamados os empreendimentos criados com o intuito de gerar receitas e ao mesmo tempo um efeito positivo na sociedade, crescem no Brasil. “Cada vez mais, grandes investidores estão destinando uma parcela de suas carteiras aos negócios de impacto”, afirma Lívia Hollerbach, fundadora da plataforma Pipe.Social, que conecta investidores e empreendedores desse modelo. “O interessante é que esse fluxo não vem da filantropia, mas dos próprios fundos de investimento, que enxergam o setor como uma boa oportunidade.”

De 2016 a 2018, a base de negócios cadastrados na plataforma cresceu 70% e superou 1.000 projetos. As áreas de meio ambiente, cidadania, educação e saúde são as mais frequentes. A Pipe não realiza levantamento sobre o volume de recursos captados. Mas um estudo da Aspen Network of Development Entrepreneurs, entidade americana voltada para o desenvolvimento do empreendedorismo em países emergentes, aponta que o interesse nessa nova forma de investir com impacto cresceu. O valor investido nesse tipo de negócio no Brasil subiu 56% nos últimos quatro anos e gira em torno de 340 milhões de dólares atualmente.

Existem dois modelos de investimento em negócios de impacto. O mais tradicional, que ganhou notoriedade com o economista indiano Muhammad Yunus, ganhador do Nobel da Paz de 2006, preconiza que todo o lucro deve ser reinvestido no próprio negócio. Há quem defenda uma atuação mais parecida com a dos fundos de venture capital, em que o investidor ganha com a venda de sua participação. O modelo híbrido, em que ONGs lançam mão de braços de negócios, como no caso da Recode, tem entre seus pioneiros Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), ONG que desenvolve ações em comunidades pobres no Brasil e em 17 países.

Uma das primeiras parcerias desse tipo foi firmada com a P&G, empresa americana do setor de bens de consumo, há dez anos — e só cresce. A empresa buscava uma maneira de distribuir seus produtos nas favelas. Athayde propôs a criação de uma distribuidora que operasse na casa dos moradores das comunidades. O projeto deu origem à Favela Log, empresa de distribuição que atua apenas em favelas e emprega, preferencialmente, ex-detentos.

Dessa experiência nasceu em 2013 a Favela Holding, que hoje controla mais de dez negócios sociais, como a produtora de eventos Chapa Preta, dirigida pelo rapper MV Bill, e a agência de viagens Favela Vai Voando, com 300 pontos de venda no Rio de Janeiro e em São Paulo. “Sempre disse que a Cufa era uma organização social com fins lucrativos”, afirma Athayde. “Sempre fomos criticados. Mas o problema não é o lucro, é o que você faz com o lucro.” No caso da Cufa, o dinheiro gerado pela holding é redirecionado a outros empreendimentos nas favelas.

Buffett: nos Estados Unidos há incentivo fiscal à filantropia | Alamy/Fotoarena

Histórias de sucesso de investimento de impacto começam a aparecer e devem fomentar o interesse de grandes investidores em negócios sociais no país. O fundo Vox Capital, pioneiro em negócios de impacto no Brasil,  fundado por Antonio Ermírio de Moraes Neto, um dos acionistas do grupo Votorantim, teve o primeiro lucro com esse tipo de investimento no ano passado, ao vender 30% de participação na TEM, operadora de cartões de saúde pré-pagos. A transação, cujo investimento inicial foi de 3 milhões de reais em 2015, teve retorno de 26%.

O empresário Fernando Simões Filho, filho de Fernando Simões, principal acionista da transportadora JSL, aposta nessa tendência. Há quatro anos, ele criou a aceleradora de negócios sociais Bemtevi. Entre os negócios apoiados estão o Banco Acreditar, de microcrédito, e a Panosocial, que produz tecidos de algodão orgânico e emprega ex-detentos. A organização capta recursos de pessoas físicas para devolvê-los após quatro anos, sem os juros, transformados em impacto social. “Os filantropos estão mais preocupados com a eficiência do dinheiro doado”, diz Simões Filho.

No campo da filantropia, além do contexto econômico instável, há entraves estruturais, como a ausência de incentivos fiscais. São esses incentivos que estimularam o surgimento de doadores expoentes, como o megainvestidor Warren Buffett nos Estados Unidos, que se comprometeu a dedicar metade de sua fortuna de mais de 80 bilhões de dólares à filantropia.

O único empresário no Brasil a aderir ao movimento global de Buffett foi Elie Horn, fundador da incorporadora Cyrela. “O Brasil é um dos poucos países que tratam as doações filantrópicas da mesma forma que as doações a pessoas físicas”, diz José Marcelo Zacchi, secretário-geral do Grupo de Institutos Fundações e Empresas, que reúne os maiores doadores do país.

A aprovação da lei que regulamenta a criação de fundos patrimoniais, em janeiro, pode ser um avanço, de alcance ainda incerto. A lei protege doações milionárias contra má gestão e garante que o propósito se mantenha ao longo do tempo. No entanto, não há previsão de contrapartidas fiscais. A chegada de dinheiro novo dedicado a causas sociais pela lógica do mercado representa, portanto, mais do que uma boa notícia — uma necessidade.

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