Kleber de Souza, cafeicultor em São Sebastião do Paraíso (MG): a bonificação por um café “regenerativo” deve virar tendência de mercado (Leandro Fonseca/Exame)
Repórter de Agro
Publicado em 25 de maio de 2023 às 06h00.
Do cuidado com o solo surgem os melhores cafés. Mas o contrário também é verdadeiro. De acordo com estudo da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU), um terço do solo em nível global está moderada ou altamente degradado. A produção do café brasileiro corre o risco de ser impactada diretamente, como consequência do empobrecimento da terra e do aumento das temperaturas globais — e com grande risco de prejudicar a safra comercial. “O aumento das temperaturas pode afetar adversamente a produção tradicional de culturas comerciais, como o café no Brasil e na África Ocidental, e a azeitona no Magreb”, aponta o documento. Isso significa que as mudanças climáticas podem mudar a geografia do café, a dinâmica das exportações e as relações comerciais. Grandes conglomerados mundiais já observam quedas sucessivas no nível da qualidade dos grãos produzidos nas lavouras. Não por acaso, produtores, indústria e traders discutem sobre os caminhos da cafeicultura e as providências a tomar imediatamente. Um consenso: reinventar o jeito de produzir café.
ESPECIAL SUPER AGRO
Para o Brasil, o assunto não poderia ser mais significativo. O país é o maior produtor do grão e exporta por volta de 40 milhões de sacas — de longe o maior resultado global. O Valor Bruto da Produção (VBP) dos cafés do Brasil, que corresponde ao faturamento total das lavouras cafeeiras — considerando as espécies café arábica, robusta e conilon —, chegou a 55,9 bilhões de reais em 2022, valor 25% maior do que o total gerado em 2021. Embora tenha também a maior produção de linhas especiais, nosso café não é reconhecido mundo afora como referência de qualidade. O resultado dói no bolso: a Colômbia, por exemplo, vende suas sacas a 285 dólares, enquanto a brasileira é vendida a 217 dólares. Tornar as lavouras resilientes às mudanças climáticas e, de quebra, aumentar o valor agregado do café é uma janela de oportunidade para o Brasil.
Pensando em como manter a produção de café viável e rentável no futuro, o gigante suíço de alimentos Nestlé desenvolve no Brasil um projeto com fazendas para garantir práticas de agricultura regenerativa. Essa técnica prioriza, entre outros, manejos como o enriquecimento de matéria orgânica no solo, recuperação da fauna e flora, restauro e conservação de florestas e recuperação de nascentes. O produto final é a redução da pegada de carbono e maior produtividade. Na operação nacional da Nestlé, todas as fazendas produtoras de café atuam com alguma prática do conceito de agricultura regenerativa. Desde 2021, fornecem à linha Nescafé 1.500 fazendas certificadas pelo Código Comum para a Comunidade Cafeeira (4C). Um case de sucesso é o Sítio Santa Rita, em São Sebastião do Paraíso, no sudoeste de Minas Gerais, visitado pela EXAME e cujas imagens ilustram esta reportagem.
Entre as regiões mineiras do Médio Rio Grande e Alta Mogiana, na terceira maior produtora do país, os cafeicultores Kleber de Souza e Antonio Adolfo de Souza passaram a dedicar 70 dos 120 hectares de área produtiva à agricultura regenerativa. “Nós viemos de uma seca que impactou nossa produtividade ao extremo nos últimos quatro, cinco anos. Foi essa volatilidade climática um dos fatores a incentivar o método de manejo regenerativo”, afirma Kleber. As lavouras da propriedade foram plantadas em 1990 e já passaram pela recepa — tipo de poda drástica em cafeeiros cuja produtividade está em queda. Agora são conduzidas no novo sistema regenerativo. “Por volta de 20 a 25 anos, a planta do café precisa ser reformada, e essa reforma já vem com uma genética muito mais interessante, que contribui para as práticas regenerativas”, diz Taissara Martins, gerente executiva de ESG para Cafés e Bebidas da Nestlé.
Até 2025, a Nestlé pretende ter 20% dos grãos advindos de sistemas regenerativos, e 50% até 2030. “É preciso haver essa mudança porque a gente fala de agricultura sustentável há muito tempo, o regenerativo começa a mudar a regra do jogo trazendo indicadores. A cafeicultura brasileira tem de ser uma grande sequestradora de carbono”, afirma.
Plantas de cobertura nas linhas do cafezal, colmeias de abelhas para melhorar a produtividade do fruto e uso de produtos biológicos. Essas são as principais mudanças que o cafeicultor Kleber de Souza cita sobre a nova forma de conduzir as árvores. Desde que começou a adotá-las, ele já percebeu um incremento de cinco sacas por hectare. A média de produtividade do sítio está, portanto, em 65 sacas por hectare no café regenerativo — mais do que o dobro da média nacional — a um preço que varia de 1.100 a 1.500 reais por saca de 60 quilos. “Onde a gente iniciou o projeto, houve menos emissões de carbono”, afirma. Nessa iniciativa da agricultura regenerativa, 35 fazendas diminuíram a pegada de carbono em 68%, segundo Martins.
O conceito é menos quilos de carbono e mais quilos de café. Segundo ela, a cobrança por um café que traga indicadores ESG é uma exigência da sede, na Suíça. “Dentro do regenerativo, é essa agricultura que devolve ao planeta, cuidando de solo, água, biodiversidade, e a tecnologia permite medir a emissão de carbono”, afirma a executiva. Além de Minas Gerais, as fazendas estão no Espírito Santo e no Sul da Bahia. As medições de emissões de carbono são realizadas em todas as unidades com base na metodologia da ferramenta Cool Farming Tool, uma calculadora online de gases de efeito estufa. “O desafio da metodologia é a medição, que exige visita física, organização do produtor em relação aos dados. O solo é o grande protagonista da agricultura regenerativa, mas a medição de carbono do solo ainda é um desafio, de abrir trincheiras, amostras de testes, correção em tempo hábil”, diz.
Enquanto as mudanças climáticas alteram a regularidade do café, produtores em sistema regenerativo conseguem produzir mais e ofertar os grãos no mercado com maior valor agregado e competitividade. A Nestlé não compra café direto dos produtores, mas via traders. Ainda assim, paga uma bonificação pelo café certificado em agricultura regenerativa, como a certificadora Rainforest Alliance. Sem entrar em detalhes, Martins diz que a companhia compra café acima do valor em bolsa. “Os cafeicultores não fornecem para apenas uma empresa, então temos conversas pré-competitivas com concorrentes para entender a valorização dos grãos com qualidade superior”, diz.
A Nestlé tem projetos de agricultura regenerativa em outros países, como Estados Unidos, México, Colômbia e França. No total, a empresa planeja investir 1,2 bilhão de francos suíços — 1,3 bilhão de dólares — nos próximos cinco anos para estimular a agricultura regenerativa em toda a cadeia de fornecimento, envolvendo no projeto cerca de 500.000 agricultores e 150.000 fornecedores. A companhia também anunciou neste ano o investimento de 20 milhões de reais para desenvolver a cadeia do cacau no Brasil.
De dentro da porteira, Kleber de Souza espera que o pagamento adicional por um café “regenerativo” vire tendência, inclusive porque o consumidor está buscando produtos com preservação ao meio ambiente. Ele diz que, a partir do momento em que começou a adotar o manejo mais sustentável, já sentiu a reação. “O mercado já olha diferente, e a remuneração é natural. A consequência vai ser um café bem remunerado no futuro, e o consumidor pagando pela importância de um café regenerativo”, afirma. É a oportunidade brasileira de manter viva uma cultura agrícola focada em tradições familiares: quase 80% dos 330.000 produtores de café no país estão em propriedades de pequeno porte. Estimular a lógica de menos carbono e mais café prepara para 2030 um setor com 300 anos de história.