Revista Exame

Eduardo Mufarej | Lugar-incomum

Para fugir dos clichês e ir muito além do óbvio, é crucial elegermos pessoas preparadas e que respeitem o conhecimento

Coronavírus: quantas vezes, desde o começo desta pandemia, você já ouviu que “nada será como antes”? (Getty Images/Getty Images)

Coronavírus: quantas vezes, desde o começo desta pandemia, você já ouviu que “nada será como antes”? (Getty Images/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 7 de maio de 2020 às 05h00.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 13h14.

Quantas vezes, desde o começo desta pandemia, você já ouviu que “nada será como antes”? A frase, uma espécie de profecia do óbvio, genérica o suficiente para abarcar qualquer cenário, contaminou o discurso de especialistas — e dos nem tão especialistas assim — de áreas que vão da saúde pública à economia.

O problema é que essa ideia não nos leva a lugar algum. O mundo já vinha em uma embalada marcha de transformação. Nada é como antes nas relações de trabalho, com exceção de nossas legislações anacrônicas. Nada é como antes na educação, a não ser nosso modelo de ensino analógico, arcaico, desencontrado da experiên­cia dos alunos fora da sala de aula.

O coronavírus simplesmente acelerou as mudanças e acentuou a distância entre o Brasil que somos e o Brasil que precisamos ser. O melhor que podemos tirar desta pandemia é a construção de soluções para o país que estejam de acordo com nossos tempos.

“Estamos em guerra contra um inimigo invisível” é outro clichê que se espalhou como um vírus pelo debate público brasileiro. Os políticos, seus principais vetores, parecem tentar justificar a enorme dificuldade que têm em apresentar saídas para a crise.

O primeiro problema dessa frase talvez esteja na analogia bélica. Não estamos em guerra. Nas guerras, o objetivo é a morte do inimigo. Nas pandemias, a missão deve ser a preservação da vida. As pandemias exigem a participação de toda a população. E é justamente nesse ponto que se encontra a maior fragilidade do Brasil. Temos sido incapazes de agir com unidade.

O que nos leva ao segundo problema da frase: não é novidade para o brasileiro enfrentar “inimigos invisíveis”. A desigualdade, a má alocação de recursos públicos, a baixa produtividade e o modelo de educação atrasado são só alguns dos mais antigos e emblemáticos.

Seria mesmo surpreendente se um país com tão profundos abismos sociais fosse capaz de agir com unidade. Enquanto no Instagram proliferam os registros dos pães caseiros de fermentação natural e as aulas de ioga por videoconferência em espaçosas salas de estar, famílias sem acesso a água nas torneiras e aglomeradas em barracos insalubres se veem obrigadas a racionar alimento. Grandes empresas lançam o meritório programa “Não demita”, enquanto a realidade dos pequenos empresários é desalentadora.

O que há em comum os lugares que estão enfrentando de forma eficaz o coronavírus? Políticos que se orientam por dados e evidências, agem com urgência e gozam da confiança da população. Aliás, em muitos casos, políticas. Alemanha, Islândia, Nova Zelândia e Taiwan, exemplos de sucesso, são países liderados por mulheres.

O fato é que esta é uma crise que depende de forte atuação do Estado, mas também da colaboração de todos os cidadãos. Como esperar que os brasileiros sigam as melhores práticas — lavar as mãos, cobrir o rosto, evitar aglomerações — quando seus representantes politizam o vírus e produzem crises quase diárias?

Em algum momento, a pandemia do coronavírus vai passar. Os outros inimigos permanecerão. Por isso, o melhor que podemos fazer é abraçar as mudanças emergenciais que estamos sendo obrigados a adotar. Tirar desta situação provisória soluções permanentes.

O ensino à distância, implementado às pressas, tem gerado ansiedade nas famílias em quarentena, mas pode ser estruturado em modelos híbridos que fortaleçam nossos programas educacionais. As videoconferências cortam custos e expandem a capacidade de alcance do conhecimento. Os conteúdos digitais são mais atraentes aos jovens, potencializando o aprendizado.

Em muitas profissões, o home office será mantido após a crise, mas, para que funcione, precisamos atualizar as relações de trabalho, com modelos menos associados a tempo e mais a produtividade. Produtividade que também tende a crescer com a digitalização tanto no setor público quanto no privado. Podemos sair desta crise com menos carimbos e burocracias que encarecem nossos produtos e atrasam nossa economia.

As absurdas cenas de aglomerações na busca pelo auxílio emergencial não existiriam se já tivéssemos uma identidade digital única para cada cidadão. Estudos apontam que, para cada real investido em digitalização do governo, economizamos 38 reais. A falta de um prontuário único na saúde está custando vidas.

A crise aponta para a urgência de superarmos problemas incompatíveis com nossos tempos, como a falta de saneamento e a pobreza extrema. Para isso, precisamos de gente responsável e qualificada ocupando as cadeiras de assembleias, câmaras, prefeituras e governos.

As eleições municipais podem parecer assunto distante em meio ao caos na saúde e na economia, mas serão decisivas para nossos próximos anos. Em outubro, vamos escolher os homens e as mulheres que terão a missão de liderar a retomada da rotina e da economia de nossas cidades, o enfrentamento de velhos “inimigos invisíveis” e a criação de novas formas de viver neste mundo em que “nada será como antes”.

Não são tarefas simples e as soluções precisam ir muito além do óbvio. Por isso é crucial elegermos pessoas preparadas, que respeitem o conhecimento e que sejam capazes de representar de fato os interesses da população brasileira. Só assim chegaremos a lugares-incomuns.

 


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