Fábrica da Impossible Foods: 300 milhões de dólares em investimentos e uma parceria com o Burger King (Impossible Foods/Divulgação)
Lucas Agrela
Publicado em 23 de maio de 2019 às 05h27.
Última atualização em 27 de junho de 2019 às 16h12.
Grandes pastagens, milhares de cabeças de gado e matadouros. Por séculos, a produção de carne foi baseada na criação e no abate de animais em escala industrial. Com o aumento da população, a humanidade precisará produzir cada vez mais alimentos e, por mais que a produtividade do campo esteja aumentando, sempre haverá um impacto ambiental. Diante desse cenário, algumas empresas novatas têm investido em soluções tecnológicas para produzir e vender carne sem a necessidade de criar e sacrificar animais. Toda a matéria-prima é desenvolvida em laboratório. Com isso, espera-se que, em breve, seja possível produzir um bife ou um hambúrguer sem esperar o ciclo de vida dos animais.
As startups que usam a tecnologia na produção de alimentos — apelidadas de foodtechs — buscam alternativas para a produção de diversos tipos de comida. Já existe a maionese sem ovos, o queijo sem leite animal, o hambúrguer à base de proteína vegetal e até um nugget vegano, feito de grão-de-bico, cebola, milho e cenoura. A maioria desses produtos já é comercializada e tem ganhado consumidores especialmente na Europa e nos Estados Unidos. Recentemente, a rede de fast-food Burger King — controlada pelo grupo 3G Capital, dos brasileiros Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira — anunciou que, até o fim do ano, pretende vender um lanche de proteína vegetal em todas as suas unidades nos Estados Unidos. A “carne” é produzida pela startup americana Impossible Foods, especializada no desenvolvimento de produtos de proteína vegetal. Fundada em 2011, ela recebeu, em maio, um investimento de 300 milhões de dólares.
A mudança mais radical no mercado de alimentos, no entanto, são as carnes de proteína animal de verdade, mas que são produzidas em laboratório. Nesse caso, as empresas utilizam pequenas amostras de células-tronco de animais reais, as quais são cultivadas por cientistas. As amostras recebem nutrientes para que se desenvolvam e formem tecidos musculares. Quando pronta, a carne é consolidada em formatos populares. O mais comum é o do hambúrguer, adotado pelas startups americanas Just e Memphis Meats, e também pela holandesa Mosa Meat.
Fundada em 2015, a Mosa Meat foi pioneira no desenvolvimento da tecnologia. O pesquisador e fundador da empresa Mark Post foi a primeira pessoa do mundo a apresentar uma carne cultivada em laboratório em 2013. Dois anos mais tarde, Post e o colega Peter Verstrate criaram a Mosa Meat para aprimorar as técnicas de produção e levar seus produtos ao mercado. “Nosso maior problema hoje é o custo. Para reduzi-lo, precisamos ter uma produção em larga escala. Nosso objetivo é chegar a um custo de 10 dólares por hambúrguer”, diz Verstrate, presidente executivo da empresa. A redução é significativa. O primeiro hambúrguer produzido por Mark Post teve o custo de 330 000 dólares. A Mosa Meat estima que, em cinco anos, deverá alcançar uma capacidade de produção industrial, fazendo com que o preço fique próximo ao de um hambúrguer tradicional.
O objetivo da Mosa Meat e de suas concorrentes é estabelecer-se como uma alternativa mais sustentável à produção de carne. Segundo dados reunidos pela consultoria americana CB Insights, a produção em laboratório consome 82% menos água e emite 79% menos poluentes do que a pecuária de corte atual. “Ainda que as carnes de laboratório não sejam baratas o suficiente, elas provocam um debate sobre o impacto da produção de carne no mundo e nos fazem pensar sobre o que deve ser considerado normal”, diz Neil Stephens, professor na Universidade Brunel, em Londres, e um dos principais estudiosos do tema no mundo.
Além do custo, outro entrave é a rígida regulação sobre a produção de alimentos. A legislação atual não prevê nenhum tipo de carne de laboratório. Nos Estados Unidos, existe até um debate quanto a esses alimentos poderem ser chamados de “carne” e sobre qual agência do governo é responsável por regulá-los. Em março, o Departamento de Agricultura, que supervisiona o setor de alimentos, e a FDA (a Anvisa americana) chegaram a um acordo sobre quais são as competências de cada órgão em relação a esse caso. Uma vez reguladas, a expectativa é que as vendas de carne de laboratório cheguem a 20 milhões de dólares até 2027. É uma fração irrisória do mercado de carne mundial, mas a tendência é de crescimento.
Enquanto isso, a aposta mais imediata no mercado de carnes alternativas são as empresas que produzem proteína à base de plantas. Segundo dados da consultoria Mordor Intelligence, o faturamento desse setor foi de 6,3 bilhões de dólares no ano passado e deverá chegar a 8,8 bilhões em 2024. Na liderança do mercado estão as startups americanas Impossible Foods — a mesma que vai fornecer hambúrguer vegetal à rede Burger King — e a Beyond Meat, que foi a primeira empresa do ramo a abrir o capital. Em maio, ela levantou mais de 240 milhões de dólares ao oferecer suas ações na Bolsa de Valores de Nova York. Seus hambúrgueres são feitos de soja ou ervilha e soltam até um sangue (composto de beterraba, no caso). O público-alvo não são apenas os vegetarianos e veganos. São também as pessoas que comem carne. “Se quisermos tratar com seriedade a questão da alimentação sustentável, temos de considerar essa reinvenção da carne”, diz o empresário Paul Shapiro, autor do livro Clean Meat (“Carne limpa”, numa tradução livre).
A possibilidade de mudar a forma como a comida é feita anima os investidores do Vale do Silício. Empresários como Bill Gates, fundador da Microsoft, e o britânico Richard Branson, do Virgin Group, são alguns dos que já apostaram nessas empresas foodtechs. Segundo dados da consultoria americana Crunchbase, 25 startups do ramo alimentício arrecadaram um total de 1,8 bilhão de dólares nos últimos dez anos. Entre elas chama a atenção a americana Finless Foods, que produz carne de peixe com as células dos animais. Seu objetivo é evitar os problemas associados à indústria de pescados, como o uso de hormônios ou a contaminação por mercúrio. O custo, também nesse caso, ainda é um problema. Segundo Michael Selden, cofundador da Finless, a estratégia é posicionar-se no mercado de luxo. “Isso nos ajuda com a questão do preço e nos -associa a um segmento de alta qualidade”, diz. E, como a legislação limita a quantidade de peixes pescados anualmente, seus produtos também oferecem uma alternativa ao mercado.
Outra startup que tenta mudar a produção de alimentos chegou ao Brasil em março. A chilena The Not Company produz maionese vegana, feita de óleo de canola, grão-de-bico, sementes de mostarda, vinagre de uva e suco de limão. Por isso, a empresa diz usar 83% menos água e emitir 37% menos gás carbônico na fabricação em relação à maionese comum. A Not também tem outros produtos sem os ingredientes convencionais, como hambúrguer, chocolate, leite e sorvete. A startup atraiu o interesse até de Jeff Bezos, fundador da varejista online Amazon, que, com outros investidores, colocou 30 milhões de dólares na Not.
As grandes empresas da indústria de alimentos não estão paradas. A brasileira JBS, por exemplo, abriu recentemente um centro de pesquisa nos Estados Unidos, dentro da universidade estadual do Colorado. O investimento foi de 20 milhões de dólares. Lá, a empresa pretende estudar soluções para problemas do setor, criar novos produtos — como proteína à base de plantas — e melhorar o bem-estar animal. Para André Nogueira, presidente da JBS nos Estados Unidos, a indústria alimentícia terá de se tornar cada vez mais eficiente para atender à crescente população mundial. “Temos produtos de proteína vegetal na Austrália e na Europa, como uma salsicha que contém boa parte de ingredientes vegetais. Esse mercado ainda é de nicho e tem muito a se desenvolver para ter relevância comercial”, afirma Nogueira. Ainda assim, o caso das startups de comida é um exemplo de como a tecnologia pode trazer inovação a todo tipo de setor — incluindo os mais tradicionais, como o de alimentos.