Revista Exame

Fiscais de carona no helicóptero da Chevron

Sem recursos e infraestrutura, os técnicos da Agência Nacional do Petróleo apuraram o acidente no campo de Frade, no Rio de Janeiro, pegando carona na aeronave da Chevron — a empresa que deveriam investigar

Vazamento de óleo no Campo de Frade: carona é “economia de dinheiro público”, segundo a ANP   (Divulgação/Chevron Brasil Petróleo)

Vazamento de óleo no Campo de Frade: carona é “economia de dinheiro público”, segundo a ANP (Divulgação/Chevron Brasil Petróleo)

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Da Redação

Publicado em 15 de dezembro de 2011 às 05h00.

São Paulo - Haroldo Lima, diretor geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP) entre 2005 e dezembro deste ano, é um nacionalista de carteirinha. Filiado ao Partido Comunista do Brasil, dedicou a maior parte dos sete anos em que esteve à frente da agência a temas mais políticos do que técnicos.

Na manhã de 8 de novembro, uma terça-feira, Lima abriu um evento sobre gás no Rio de Janeiro com o mesmo espírito. Convidado para falar sobre o papel de novos operadores no setor, fez um discurso em que defendeu a importância de o Brasil manter a soberania do pré-sal.

Enquanto Lima fazia a defesa do “petróleo é nosso”, técnicos da agência tentavam entender o que ocorria no campo de Frade, a 120 quilômetros da costa fluminen­se. Na véspera, a americana Chevron, que controla as operações, notificara problemas técnicos. Naquela terça-feira, a Petrobras, que é sócia na exploração do campo de Frade, identificara uma mancha de óleo na região.

Na manhã de quarta, 9 de novembro, não havia dúvida: o petróleo escapava por uma fenda no fundo do mar aberta pela Chevron. Nos dias que se seguiram, ficou claro que o país precisa mesmo se preocupar com o tema da soberania — não a do petróleo, como quer Lima, mas a soberania da ANP para exercer suas funções. 

A agência demorou uma semana para divulgar detalhes do acidente. As primeiras informações sobre as razões do vazamento, o tamanho da mancha de óleo e os impactos ambientais foram contraditórias e questionadas por ambientalistas, que chegaram a levantar dúvidas sobre a transparência das inves­tigações.

“Os problemas com a Chevron foram escamoteados pela ANP”, diz a deputada estadual Aspásia Camargo (PV-RJ). “Ela é uma agência reguladora que não regula nada.”

Quem se empenhou no começo para esclarecer as dúvidas foram os policiais da Delegacia de Meio Ambiente e Patrimônio Histórico da Polícia Federal. Sem entenderem nada de petróleo, tomaram a inicia­tiva em 11 de novembro de ir ao campo de Frade para ver de perto o que ocorria e divulgar as primeiras imagens da mancha de óleo.


Só conseguiram chegar quatro dias depois, em 15 de novembro, num helicóptero da própria Chevron, porque tiveram dificuldade para alugar uma aeronave com autonomia de voo para fazer o trajeto em alto-mar. A viagem custaria, por baixo, 10 000 reais. 

A logística é um capítulo particular no incidente. A ANP não tem helicóptero e usa a estrutura da Marinha. Para sobrevoar o local precisou esperar dois dias até que fossem cumpridos os trâmites burocráticos para a liberação de um único helicóptero. Mas não foi a única viagem feita pelos técnicos da agência.

Segundo a Chevron informou à reportagem de EXAME, os técnicos da ANP — e também os do Ibama e da Marinha — utilizaram o helicóptero da empresa para fazer parte das vistorias. “Os contratos preveem que as companhias de petróleo garantam estrutura de apoio às autoridades”, diz o delegado Fábio Scliar, da Polícia Federal.

“Mas apurar um acidente com a empresa dizendo quem, quando e onde pode voar é colocar a raposa para cuidar do galinheiro.” A Marinha nega que tenha usado a aeronave da Chevron.

Segundo porta-vozes da ANP, os técnicos da agência normalmente usam os equipamentos de transporte das petroleiras, o que “economiza o dinheiro público”. Até o fechamento desta edição, o Ibama não se manifestou a respeito.

Para os especialistas do setor de petróleo, o acidente da Chevron é um alerta. “Numa plataforma de petróleo, pode haver a melhor fiscalização do mundo e, mesmo assim, ocorrer um desastre”, diz David Zylbersztajn, ex-diretor-geral da ANP.

“O problema no caso da Chevron foi a reação após o acidente: a falta de comando, o ‘bate-cabeça’ e a desinformação mostraram um despreparo para lidar com o setor.”

Hoje, Polícia Fe­deral, Ministério Público Federal, Assembleia Legislativa do Rio e Tribunal de Contas da União investigam não só o acidente mas também se a ANP é capaz de vistoriar o pré-sal. “A sensação é que faltam dinheiro, pessoal e infraestrutura para a ANP”, diz o ministro Raimundo Carreiro, do TCU.

Criada em 1997, a ANP regula e fiscaliza os setores de petróleo, gás e biocombustíveis. Por lei, deve se manter com recursos próprios, vindos das participações a que tem direito nos royalties da exploração do petróleo. Por causa das recentes descobertas, o montante que lhe cabe é maior do que o faturamento de muitas empresas instaladas no país.


Neste ano, a ANP deveria receber quase 5 bilhões de reais. Porém, 90% disso é contingenciado pelo governo. Pouco mais de 300 milhões de reais chegaram à agência. É uma quantia substancial, mas 80% são gastos com o pessoal e a estrutura administrativa.

O restante não permite equipar adequadamente a agência. No setor, os 780 funcionários são tidos como servidores heroicos: têm formação técnica irretocável, mas convivem com sobrecarga de trabalho e falta de estrutura. 

Intervenção política

Outro fator que prejudica a ANP é a ingerência do governo. “Cargos-chave foram preenchidos por indicações políticas”, diz Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura. Além de Haroldo Lima, o PCdoB é representado há sete anos por outro filiado, Alcides Araújo dos Santos, o Alcides Amazonas, superintendente em São Paulo.

Em 2010, Alcides pediu exoneração para concorrer a deputado estadual. Perdeu e retornou ao mesmo cargo. A agência não se preocupou com o fato de que, entre seus doadores de campanha, havia empresas que ele fiscalizava — caso das distribuidoras Combuluz e Gran Petro.

Na diretoria, Allan Kardec Duailibe é conterrâneo e amigo da família do senador José Sarney. Seu currículo não incluía uma linha sobre combustíveis até chegar à ANP em 2008. Um de seus projetos de pesquisa na época tratava do “desenvolvimento tecnológico em epilepsia, câncer de mama e enfermidades gástricas”.

Hoje ele responde pela elaboração de regras para o setor de etanol, cuja produção recentemente passou a ser regulada pela ANP. Quem mais entende de petróleo na diretoria é Magda Chambriard, funcionária aposentada da Petrobras.

Seu trunfo, porém, é considera­do um problema. A Petrobras, sua ex-em­pregadora, é sócia na maioria dos campos do país, o que gera discussões sobre um potencial conflito de interesses.

Ao se despedir do cargo, Lima manifestou o desejo de ser substituído por um “político com perfil técnico” ou um “técnico com perfil político” — o que daria continuidade ao atual estilo de gestão.

“Se for apurado que a ANP falhou no caso da Chevron, a culpa será do governo”, diz a advogada Maria D’Assunção, especialista em direito regulatório. “É o governo que deixa a agência sem o dinheiro e a autonomia para cumprir suas funções.”

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