A Mídia contemporânea precisa ser, para suas audiências e para as marcas as várias vozes de seus públicos e a narrativa das empresas com as quais comercialmente dialoga (Getty Images)
Da Redação
Publicado em 27 de agosto de 2020 às 05h04.
Pois não é que, séculos depois de sua adolescência, a Mídia veio a viver sua maior crise de identidade, já gente feita, consolidada e madura? Mídia, apenas para falarmos a mesma língua aqui, é a denominação semiótica daquilo que está no meio entre o emissor e o receptor. Na prática e para o que nos interessa aqui, é a interlocução dos emissores de informação com suas audiências, os gestores da comunicação e seus públicos. Tudo viabilizado, no modelo vigente, pelo capital corporativo. Os anunciantes, que pagam a conta da Mídia.
Pois essa Mídia a que nos referimos aqui sempre foi a voz do dono da mídia, sua própria verdade feita conteúdo, empacotada, distribuída, consumida e deu. Pois não é que deu ruim, e de anos para cá a verdade mudou de mãos e nós, cidadãos, assumimos o comando de nossas inúmeras verdades, sejam elas quais forem, e a distribuição ganhou tantas múltiplas personalidades que o que durante séculos era tão certo ficou hoje tão criticamente duvidoso?
A história não nos esconde que geração, produção e distribuição do conteúdo informativo e reflexivo disseminado por canais diversos de comunicação, notadamente a partir da era da comunicação em massa, acabaram por concentrar o comando da narrativa dos fatos e análises desses mesmos fatos nas mãos de um grupo de elite. O capitalismo quis assim. Pois concordemos ou não (e podemos discordar), gostemos ou não, devemos exatamente a eles e às suas iniciativas pioneiras, que deram ensejo ao que chamamos de mídia contemporânea, a criação de veículos essenciais às complexas sociedades contemporâneas, em que informação é o feijão com arroz de nossa convivência, do conhecimento cotidiano sobre nós mesmos e de tudo o que acontece no mundo à nossa volta.
Tem viés? Tem. É insuspeita? Não. Na verdade, nunca foi. Mas segue sendo essencial.
A Mídia contemporânea precisa ser, para suas audiências e para as marcas — de resto, as duas faces da sua razão de ser, desde sempre —, as várias vozes de seus públicos e a narrativa das empresas com as quais comercialmente dialoga. Precisa deixar de ser unívoca para sobreviver enquanto espécie e, darwinianamente, adaptar-se a um mercado em transformação profunda, recorrente e radical. Precisa mimetizar-se em vários canvas: físicos, eletrônicos e digitais. Precisa ser a voz de uma diversidade social inaudita e ser ainda intérprete das corporações, porque todos os grupos de mídia têm hoje departamentos internos de branded content produzindo informação em nome das empresas, que, por sua vez, também precisam ter voz. De novo, o capitalismo quis assim.
Isso lutando bravamente para, nos exemplares casos de forte identidade, nunca deixarem de ser elas mesmas e reafirmarem sempre o que pensam. A revolução digital mudou a vida e os costumes. Mudou você, mudou a mim. Mudou tudo à nossa volta, e o desafio da Mídia hoje é ser todas essas mudanças ao mesmo tempo e reafirmar-se ainda como origem e destino do seguro, numa sociedade conectada e contaminada pelo fake dominante.
Houve um dia, e já lá se vão 12 anos, que o professor, escritor e pensador contemporâneo Clay Shirky lançou seu seminal livro Here Comes Everybody — The Power of Organizing Without Organizations, e ali imaginamos que entraríamos numa era da colaboração onipresente e generosa, em que todos, sem organizações centralizadoras (e a Mídia estaria então vivendo seu possível ocaso como guardiã das máximas verdades), sem controle, mas coesos e amistosamente unidos pela internet, construiríamos uma nova sociedade, democrática por essência e inclusiva por natureza.
A obra, como o nome revela, fala de um novo mundo interativo e onipresente, em que todos nós, quase sem exceção, trocaríamos impressões de tudo e sobre tudo, vivendo, a partir de então, felizes para sempre. Sem ter esse objetivo e sem ser essa sua intenção original, o brilhante professor Shirky criava ali mais uma distopia e menos, como pretendia ele em sua essência acadêmica, um novo tratado da sociologia conectada.
Distopia porque o mundo que imaginou, e que de fato parecia então ser aquele que se configuraria na real, na vida efetiva de nossa sociedade global, tornou-se, ao fim, um pesadelo de Hieronymus Bosch. O everybody ao qual ele se refere tornou-se uma terra de nobody. E, nesta terra de ninguém nada distópica e cruelmente verdadeira, nos transformamos em uma sociedade conectada, interativa e colaborativa da mentira e da calúnia.
Pois, se todos viramos mídia e se todos viramos o que bem entendemos, online e em todas as partes, qual é, então, a função da Mídia, gente?
Se por um momento ficamos em dúvida, os mais recentes anos nos recolocaram na trilha de antes, e de uma tradição que as democracias deveriam prezar antes e acima de tudo. A nossa inclusive, diga-se. Aquela em que entendamos, de uma vez por todas, que os mais essenciais pilares do jornalismo e do conteúdo, mesmo com todos os vieses citados acima, são os que ainda mais bem refletem o drama de nossa vida em sociedade. E aí me vêm à cabeça as grandes marcas da grande Mídia, aquelas nas quais ainda mais nos enxergamos. E aquelas com as quais, mesmo em meio à sua mais dramática crise histórica de identidade, paradoxalmente e de alguma forma, ainda mais nos identificamos.
Nós, contemporâneos seres erráticos, em busca das hoje tão fugidias certezas e de nossas tão escassas e incertas... hummm... verdades.