Loja da Nespresso (Germano Luders)
Da Redação
Publicado em 15 de junho de 2012 às 16h15.
Rio de Janeiro - Nos anos 80, o economista Edmar Bacha criou o neologismo que sintetizou à perfeição o sentimento em relação à nossa trajetória como nação.
É dele a expressão “Belíndia”, a mescla da pequena e rica Bélgica cercada pela gigantesca e paupérrima Índia — um retrato do fracasso brasileiro na construção de uma sociedade moderna.
Muita coisa mudou nas últimas três décadas, e hoje o termo Belíndia perdeu o sentido. Numa mostra de como as realidades se desmancham no ar, a Índia tornou-se uma economia promissora e a Bélgica vive o desencanto que tomou conta da Europa.
A principal mudança, porém, foi do próprio Brasil. Ainda somos um dos campeões mundiais de desigualdade de renda, mas os pobres estão ascendendo numa velocidade inédita e nossa elite vem ganhando uma proporção única na história.
A Bélgica, com seus 10 milhões de habitantes, ficou pequena para servir de metáfora. "Parece incrível, dado o nosso histórico, mas, aos poucos, estamos diminuindo o número de pobres e aumentando o de ricos", constata o economista Ricardo Paes de Barros, uma das maiores autoridades do país em estudos de desigualdade.
"É como se todo mundo estivesse sendo empurrado para cima." É com essa analogia que o economista Marcelo Neri, da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, explica o movimento de ascensão econômica da população brasileira nos últimos anos.
Até agora, o lado mais conhecido dessa mudança é a expansão da classe C, que ganhou quase 30 milhões de brasileiros, içados das classes D e E desde 2003.
Porém, no meio de cálculos, surgem outros fatos igualmente importantes. "Não foi apenas a classe C que ‘engordou’. Toda a pirâmide socioeconômica se moveu para cima", diz Neri. Enquanto a base encolheu, as classes A e B foram as que mais cresceram proporcionalmente.
Durante o período estudado pela FGV, de 2003 a 2009, quase 7 milhões de brasileiros romperam a fronteira da alta renda, aumentando para 20 milhões de pessoas a elite do país. A melhor notícia, porém, diz respeito ao futuro: a projeção é que as classes mais ricas continuem crescendo mais rapidamente nos próximos anos.
Em 2014, elas incluirão 31 milhões de pessoas, 50% mais que hoje — o prognóstico leva em conta a escolaridade de pais e filhos e o acesso à internet, entre outros indicadores que apontam a capacidade de geração de renda futura da família.
Embora ninguém arrisque projeções mais à frente, as apostas são de que o número de pessoas nas classes mais elevadas continue crescendo aos milhões nas próximas décadas.
O que todos esses números significam? Para o país, uma oportunidade única de virar uma página e relançar as bases do nosso capitalismo. Os mais importantes pensadores econômicos sempre enxergaram a igualdade de oportunidades como uma das principais forças morais do sistema econômico inaugurado na Inglaterra após a Revolução Industrial.
Na vida real, sabemos que essa igualdade demorou muito a se materializar, e mesmo nos países desenvolvidos as marcas das antigas classes sociais até hoje estão presentes. No Brasil, porém, o caso sempre foi muito mais grave.
Até recentemente, a sorte ou o azar no nascimento praticamente ditavam os limites de cada um ao longo da vida — quem nascia na Bélgica dificilmente morria na Índia, e vice-versa.
Agora, os limites das classes estão sendo cada vez mais redefinidos, e as oportunidades de ascensão nunca foram tão marcantes. Quase metade das pessoas hoje classificadas nas classes A e B — ou seja, gente com renda familiar mensal superior a 6 941 reais, segundo critério da Fundação Getulio Vargas — é da primeira geração a pertencer a tais estratos. A constatação é de um estudo do instituto de pesquisas Data Popular.
"Boa parte desses consumidores tem bolso de classe A e cabeça de classe média”, afirma Renato Meirelles, sócio do instituto. “São pessoas que pesquisam preços antes de comprar e tomam decisões baseadas no custo-benefício."
Por isso, decifrar o que quer esse batalhão de consumidores é hoje um desafio para inúmeras empresas, que enxergam o processo de ascensão social como uma janela de oportunidade a ser aproveitada.
Atualmente, as classes A e B são responsáveis por um consumo anual equivalente a 930 bilhões de reais em produtos e serviços, 40% do total projetado de 2,5 trilhões de reais para o país como um todo pela IPC Editora, especializada em estudos de mercado.
O crescimento da alta renda nos últimos anos já se fez sentir nas vendas de todos os setores — do iate ao cafezinho. Tome como exemplo a empresa italiana Ferretti, que fabrica embarcações de esporte e lazer e acaba de inaugurar uma fábrica no interior de São Paulo.
A Ferretti atua no Brasil há 21 anos, mas, até agora, licenciava sua marca para o brasileiro Marcio Christiansen. No ano passado, a empresa italiana decidiu se estabelecer de vez no país, em sociedade com Christiansen, com um investimento de 50 milhões de reais nas instalações de uma fábrica nova. O objetivo é triplicar a capacidade de produção de iates que custam entre 2,8 milhões e 15 milhões de reais.
Para a montadora alemã Audi, o Brasil foi o país onde as vendas mais cresceram em termos percentuais no ano passado, uma alta de 62% (depois de um crescimento de 42% em 2009). Em 2011, seus executivos esperam dobrar as vendas em relação ao ano passado.
O aumento deve vir do modelo recém-lançado A1, de 90 000 reais, o mais "barato" da montadora. "Nossa projeção é continuar crescendo de 20% a 25% nos próximos dois anos, pelo menos", diz Paulo Kakinoff, presidente da Audi no Brasil.
A escala maior de consumidores de produtos premium também alcança bens que custam pouco em termos absolutos, mas não cabem no orçamento regular dos brasileiros de baixa renda. Entre esses produtos pode estar um creme para retardar o envelhecimento do rosto de 200 reais ou um xampu de 80.
A limitação do mercado brasileiro de consumidores mais sofisticados adiou por décadas a chegada ao país da cosmética ativa — produtos que ficam no meio do caminho entre os cosméticos e os medicamentos. A categoria foi inaugurada no país há apenas 11 anos pela francesa L’Oréal, embora na Europa seja um segmento quase centenário.
Nos oito primeiros anos, a empresa vendeu no Brasil apenas duas de suas marcas, La Roche-Posay e Vichy. Desde 2008, animada pelo desempenho do segmento, a L’Oréal trouxe mais três marcas mundiais ao país.
"Em 2008, o Brasil era o oitavo mercado para a companhia. Hoje dirijo o terceiro maior negócio do grupo, atrás apenas da França e da Alemanha", diz o francês Philippe Mottard, diretor da divisão de cosmética ativa.
O exemplo da L’Oréal evidencia que o país hoje está no radar de empresas dos mais diferentes setores. Com isso, vem diminuindo rapidamente o tempo de chegada ao Brasil de produtos lançados globalmente. As máquinas de café Nespresso, do grupo Nestlé, só foram lançadas aqui em 2006, embora existam há 25 anos.
Já a linha mais nova de máquinas de café expresso da Nestlé, a Dolce Gusto, lançada mundialmente em 2006, chegou ao Brasil menos de três anos depois. A decisão foi tomada após uma pesquisa realizada em 2008 com 400 pessoas, todas das classes A e B.
"Queríamos ter certeza do interesse do brasileiro pelo produto. Embora tenhamos o hábito de tomar café, não tínhamos o costume, mais europeu, de fazê-lo individualmente em casa", diz Lilian Miranda, diretora da unidade de cafés da Nestlé. "A pesquisa deixou claro que o público brasileiro está em busca de sofisticação, quer estudar os produtos e qualificar o consumo."
No ano passado, a venda de máquinas e cápsulas de bebidas cresceu 55% no país. O plano de distribuir os modelos Dolce Gusto apenas nas regiões Sudeste e Sul até 2012 foi modificado. "Tivemos de correr para expandir a distribuição no Brasil inteiro. As pessoas de outros estados compravam máquinas em São Paulo e depois nos ligavam perguntando sobre como achar as cápsulas em suas cidades", diz Lilian.
Quem são os ricos?
Apesar de se tratar de um grupo ainda pequeno ante os quase 200 milhões de habitantes do país, a elite econômica brasileira se espalha por um espectro gigantesco: vai dos bilionários das finanças e dos negócios a uma família com renda de 7.000 reais por mês, o mínimo para integrar a classe B.
Mesmo no espectro mais restrito da classe A, ou seja, das pessoas com renda familiar de pelo menos 9 000 reais, a diversidade é enorme. São Paulo, a maior cidade do país, tem hoje a maior frota de helicópteros do mundo. É a sexta cidade em número de bilionários e onde mais se consomem vinhos Romanée Conti.
Nos últimos dez anos, as vendas dos esportivos Porsche — sonho de consumo de nove entre dez ricos — cresceram 3 500%. Ocorre que na mesma classe A está Fernando Morais, um paulistano de 32 anos, cujo salário como diretor de recursos humanos da rede americana Atlântica Hotels o coloca numa das primeiras faixas da classe mais alta.
Casado e pai de uma filha de 8 anos, Morais se orgulha do padrão de vida que leva com a família. No final do ano, trocou o carro usado da mulher, um Ka, por um Fiesta novo. Sua casa, própria e quitada, fica na Vila Matilde, na zona leste de São Paulo, e tem cerca de 130 metros quadrados.
Os gastos fixos da família incluem cerca de 900 reais da escola da filha, 600 reais com a academia de ginástica para ele e a mulher, pacote de TV por assinatura e outros confortos, como idas a restaurantes — o preferido da família é a cadeia australiana Outback. A verdade é que muitos de nossos ricos não são tão ricos assim.
Quase 80% das pessoas das classes A e B ganham até 16 000 reais. O que provavelmente veremos nos próximos anos é a combinação de dois movimentos: mais gente sendo alçada da classe média para as classes mais altas e um enriquecimento das pessoas que já compõem a elite.
A diversidade também diz respeito aos vários arranjos familiares existentes. Um estudo realizado a pedido de EXAME pela empresa Cognatis Geomarketing, especializada na mensuração de mercados, traçou os perfis que compõem as classes A e B. O estudo identificou 8 milhões de pessoas em famílias batizadas de "casal moderno maduro".
Essas residências são formadas por um casal em que pelo menos um tem 45 anos de idade ou mais (por isso maduro) e nas quais ambos trabalham (por isso moderno). Uma característica marcante desse grupo é o fato de ter poucos filhos.
"É natural que a renda desse tipo de família seja mais alta porque os dois trabalham. A maior parte desses casais também adiou a chegada de filhos para investir e avançar na carreira", diz o demógrafo Reinaldo Gregori, sócio da Cognatis.
Há uma correspondência com um perfil semelhante nos Estados Unidos, os gray dad’s (ou “pais grisalhos”). É gente como o publicitário Luiz Otávio Ferreira, de 45 anos, e a designer gráfica Fernanda de Assis, de 36, casados há dez anos.
Os dois decidiram adiar a chegada de Anita, de 2 anos, para curtir os primeiros anos de casados e investir na carreira. Ferreira e Fernanda são mineiros de Belo Horizonte, mas passaram uma temporada de três anos em São Paulo. "Foi um período de ascensão profissional, mas também de muito trabalho, em que não conseguiríamos passar o tempo que queremos com nossa filha", diz ele.
De volta à capital mineira desde 2008, o casal leva um padrão de vida confortável. Depois do nascimento da filha, substituíram as viagens de aventura por fins de semana numa fazenda da família.
Agora, estão se preparando para iniciar a construção da "casa dos sonhos", que, segundo eles, combinará um projeto moderno, com muita iluminação natural, com itens antigos, como fogão a lenha — os dois adoram cozinhar e receber os amigos e a família.
O terreno, no elegante bairro de Mangabeiras, já está pago. A construção, com orçamento estimado em 500 000 reais, está em boa parte garantida pela poupança feita nos últimos anos.
É interessante observar que as famílias tradicionais, nas quais apenas um membro trabalha, parecem caminhar para a extinção — tiveram queda de 15% entre 2003 e 2009 e são apenas o quarto tipo de arranjo familiar em número. "Muitas dessas famílias não conseguem se manter nas classes superiores justamente por terem só um gerador de renda, e acabam caindo para a classe C", afirma Gregori.
Há ainda tipos de domicílios que, embora não muito numerosos, estão em franco crescimento. Quem mais avança atualmente são os idosos independentes, pessoas com mais de 65 anos que vivem sozinhas, têm renda alta e consomem mais que seus semelhantes de gerações anteriores.
Em seis anos, esse grupo mais que dobrou. O cirurgião plástico Alcemar Maia Souto, de 55 anos, encaixa-se perfeitamente no segundo perfil de maior crescimento, batizado pela Cognatis de "solteirão maduro" — vive sozinho e não tem filhos. Sua renda mensal gira em torno de 45.000 reais.
Nascido no interior de São Paulo, Souto vive no Rio de Janeiro há 27 anos. Seus pais estudaram até a quarta série do antigo primário, o que hoje corresponde ao quinto ano do ensino fundamental. Apesar de ser o alvo típico das montadoras para segmentos mais luxuosos, Souto não faz grandes investimentos em automóveis.
Há poucas semanas, comprou um modelo considerado de médio custo por 50 000 reais. O cirurgião também não esbanja com roupas de luxo. "Eu avalio o modelo e a qualidade, mas dificilmente opto pela peça mais cara só por causa da grife", afirma Souto.
Ele confirma uma observação feita por Carlos Ferreirinha, dono da consultoria MCF, especializada em consumo de alta renda: "O ato do consumo está cada vez mais embaralhado, porque, felizmente, não somos mais um país só de pobres e de ricos.
Uma pessoa com alto poder de consumo pode decidir comprar um carro muito abaixo de suas possibilidades. Quem não tratá-la muito bem vai perder a venda. E isso pode acontecer numa loja de roupa, numa cafeteria ou numa concessionária de veículos".
A força da educação
Por outro lado, Souto gasta com peças de teatro, shows, várias idas semanais a restaurantes e com viagens. Costuma passar fins de semana em Búzios, Angra e, não raro, viaja a São Paulo para assistir a espetáculos que demoram a chegar ao Rio. Já foi à Europa 19 vezes e visitou vários países latino-americanos, mas ainda não conheceu os Estados Unidos.
"Não esgotei a vontade de visitar as várias regiões da França, da Espanha e da Itália", diz Souto. Entre seus interesses está a gastronomia desses países, incluindo os vinhos. O depoimento de Souto é especialmente importante porque mostra uma realidade ainda nova no Brasil.
Enquanto parte dos consumidores recém-chegados à alta renda tenta incorporar os códigos da elite tradicional, outros tiveram a autoestima reforçada e passaram a impor seus valores e suas vontades. "Pode parecer samba de uma nota só, mas vendedores, recepcionistas e atendentes terão de ser cada vez mais desprovidos de preconceitos e cada vez mais informados. Muitos desses novos consumidores têm dinheiro e ainda não conhecem muitas categorias de produtos e serviços", diz Ferreirinha.
Tudo indica que o salto da alta renda vinha sendo preparado há mais de dez anos. Um estudo mais recente do economista Marcelo Neri mostrou que o fenômeno das classes A e B foi impulsionado especialmente pelo reforço na educação. É verdade que, na média, a educação brasileira ainda é muito ruim.
Mas já foi muito pior — o número de anos de estudo dos novos adultos, ou seja, dos brasileiros que hoje têm 30 anos, subiu para nove em relação aos seis anos de estudo que seus pais tinham aos 30 anos. Além disso, boa parte da nova elite conseguiu um preparo muito acima do padrão reinante no país.
Quando a economia começou a se sofisticar — junto com a abertura aos produtos importados e, principalmente, com a estabilização da moeda —, os profissionais com mais educação ascenderam com as empresas. "Pela primeira vez na história, o executivo brasileiro está tendo a chance de ficar rico", afirma Romeo Busarello, professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing e diretor da construtora Tecnisa, de São Paulo.
Segundo Busarello, a escassez de mão de obra qualificada abriu caminho para que muitos profissionais enriquecessem precocemente, à base de saltos salariais e bônus. "Um engenheiro que ganhava 4 000 reais em 2005, hoje ganha 12 000. Talvez ele nem estivesse preparado para assumir as funções que lhe foram passadas, mas teve de aprender na marra."
Nos últimos anos, as vendas de imóveis de alto padrão passaram a aumentar muito nos meses de fevereiro, março e abril em razão do pagamento da remuneração variável de executivos, o chamado "efeito bônus". "Descobrimos que muitos executivos estavam empregando o dinheiro extra para comprar o apartamento novo", diz Busarello.
Bônus milionários, claro, sempre serão privilégio de uma minoria. Mas salários melhores podem estar se transformando em norma, pelo menos enquanto a economia do país se mantiver em alta. A pobreza, é verdade, ainda estará conosco por décadas, mas há uma chance real de que ela vá, aos poucos, se restringindo às franjas mais distantes do país.
"Se soubermos manter as coisas boas que conquistamos e avançarmos mais rapidamente no que ainda falta mexer, temos uma oportunidade rara de sucesso", diz Paes de Barros.