Pensamentos elevados: visitantes na feira de inovação C2, em Montreal (Sebastien Roy / C2/Divulgação)
Da Redação
Publicado em 13 de setembro de 2018 às 05h27.
Última atualização em 13 de setembro de 2018 às 05h27.
Encravado na região central da cidade, o prédio principal da Universidade de Toronto é rodeado por instituições que absorvem e aplicam o conhecimento gerado por professores e alunos. Em uma caminhada de apenas 500 metros é possível encontrar os principais hospitais, as sedes de grandes corporações e um hub de inovação. É dentro deste último prédio que pesquisadores e empreendedores trabalham juntos para que o Canadá se transforme numa potência em inteligência artificial, uma tecnologia que nos próximos anos vai mudar radicalmente profissões, negócios e nações.
Dada a importância do tema — listado entre as prioridades do primeiro–ministro Justin Trudeau —, a academia decidiu arregaçar as mangas e ser uma agente da mudança da economia do país, como EXAME verificou em maio. A reportagem visitou centros de inovação, laboratórios e empresas em quatro cidades do Canadá, da Costa Leste à Oeste, e viu de perto o dinamismo das relações entre as universidades públicas e a iniciativa privada — uma lição importante para o Brasil.
“Muitas vezes, nas universidades, há uma resistência a novas abordagens, e a mudança é lenta. O que oferecemos, no entanto, é a liberdade de escolha entre algo puramente teórico e algo com aplicação em empresas reais”, diz Richard Zemel, diretor do Vector Institute, organização sem fins lucrativos com a missão de acelerar a adoção da inteligência artificial pelo país.
O instituto foi fundado com verbas do governo federal mais dinheiro do governo da província de Ontário e de 39 empresas. Para essas, a expectativa é acessar as descobertas e, eventualmente, contratar novos talentos. “Metade do nosso orçamento de quase 200 milhões de dólares para os próximos cinco anos veio da iniciativa privada”, afirma Zemel. Ele acumula a posição de liderança no Vector com a de professor de ciências da computação e aprendizado de máquinas, uma modalidade de inteligência artificial, na Universidade de Toronto.
O instituto também tem a vantagem de funcionar como um polo de atração e de retenção de profissionais. É por isso que o Vector faz parte da Estratégia Pan-Canadense de Inteligência Artificial, programa criado em 2017 com 125 milhões de dólares canadenses (cotado em 3,1 reais no dia 6 de setembro) para gerar novos organismos que ajudem a deter a migração de cérebros.
Atraídos por salários altos e bônus ainda maiores, os estudantes formados no Canadá são os líderes de laboratórios de inteligência artificial de empresas de tecnologia do Vale do Silício, nos Estados Unidos, como Facebook, Apple e Google. Nos moldes do Vector, há os novos Montreal Institute for Learning Algorithms (Mila), em Montreal, e o Alberta Machine Intelligence Institute (Amii), na cidade de Edmonton.
Em todos eles, além de uma relação muito próxima com a iniciativa privada, há sempre a presença de uma figura científica de ponta capaz de atrair mais alunos e empresas. No Vector, o maior nome é o do professor da Universidade de Toronto Geoffrey Hinton, descendente direto do matemático inglês do século 19 George -Boole. Hinton é considerado o papa do aprendizado de máquina e divide seu tempo com pesquisas no Google.
Em Montreal, Yoshua Bengio, o mais renomado especialista em deep learning, uma das técnicas de inteligência artificial, é o diretor do Mila. “No Mila, eu tenho como missão manter um relacionamento com as empresas, fazendo uma gestão mais ágil de pesquisas. Mas, como professor universitário, meu papel é orientar a pesquisa de maneira que a inteligência artificial seja benéfica para o público em geral”, diz Bengio.
Em Edmonton, pesquisadores associados com as técnicas que possibilitaram que um computador vencesse um jogador profissional de Go, um complexo jogo de tabuleiro de origem chinesa, fazem o papel de embaixadores de inteligência artificial do país. “Nossa missão não é só manter esses profissionais no Canadá, mas mantê-los localmente, na nossa cidade. Só assim vamos criar um ecossistema de inovação e empreendedorismo na região”, afirma Osmar Zaïane, diretor do Amii. Com dinheiro em caixa, esses institutos conseguem oferecer o melhor cenário possível: bons salários, liberdade de pesquisa e possibilidade de trabalhar ao lado de nomes renomados.
EXAME ouviu de diferentes especialistas que, sem essa combinação, dificilmente um país conseguirá se destacar na área — o Canadá também costuma citar que oferece como outra vantagem para pesquisadores que queiram viver no país uma cultura aberta, multicultural e de aceitação de imigrantes. Diferentes nações estão colocando em campo uma estratégia para desenvolver a inteligência artificial. A França prometeu investir 1,8 bilhão de dólares na tecnologia até 2022.
Em maio, o governo do presidente americano, Donald Trump, anunciou que estava trabalhando num projeto para facilitar as pesquisas em inteligência artificial e desonerar empresas que investirem no tema. Na China, o plano é se tornar um dos líderes na área até 2030, criando uma indústria de 150 bilhões de dólares, segundo o governo. Antigo presidente das operações do Google no gigante asiático, Kai-Fu Lee abriu neste ano, com a ajuda do governo central, um curso para treinar professores universitários de engenharia em inteligência artificial. Já foram formados 100 deles no país. Agora, a meta é expandir o mesmo curso para 300 estudantes de destaque que estão prestes a se formar.
Enquanto lá fora os professores negociam salários e são cobrados por uma interação com as empresas (incluindo entrevistas para veículos de imprensa), o Brasil mantém regras muito mais restritivas para a relação entre os pesquisadores e a iniciativa privada. O regime de dedicação exclusiva de docentes — que paga os maiores salários na academia — proíbe o exercício de outra atividade remunerada, pública ou privada. O Ministério da Educação, inclusive, usa o número de professores nessa categoria para atribuir a qualidade de um curso. É comum, portanto, os professores, ao subir na carreira universitária, se afastarem cada vez mais do mundo prático das disciplinas que ministram.
Se o Brasil parece preso ao passado, outros países já entenderam que a inteligência artificial vai gerar uma revolução na economia, de acordo com Ajay Agrawal, professor de empreendedorismo da Rotman, escola de gestão da Universidade de Toronto. Na visão dele, o impacto da nova tecnologia será comparável ao que os computadores tiveram no mundo dos negócios nos últimos 50 anos. Como um computador é basicamente uma máquina de calcular, o resultado foi uma redução do custo da aritmética. Com isso, muitos problemas passaram a ser abordados como uma questão de cálculo. Tirar uma fotografia, por exemplo, deixou de ser um caso da química e virou uma questão de zeros e uns. “O que a inteligência artificial promoverá será a redução do custo de fazer uma previsão que se confirme correta”, afirma Agrawal.
Isso significa que novas questões serão resolvidas como problemas estatísticos. Um carro autônomo funciona a partir do momento em que ele prevê corretamente que, ao manter certa velocidade e direção, continuará na estrada e não vai atropelar pedestres. Para criar um serviço digital de tradução simultânea, bastaria prever com exatidão palavras numa frase. A mesma técnica poderá ser usada para problemas mais complexos ainda, como meteorologia, propagação de doenças e desenvolvimento de medicamentos. “A inteligência artificial é melhor, mais rápida e mais eficiente do que os humanos quando o problema envolve um volume grande de dados”, diz.
Agrawal não está sozinho nessa visão transformadora. “A inteligência artificial é uma nova maneira de programar e, por isso, ela está modificando completamente a indústria de software”, afirma Jean-François Gagné, presidente da Element AI, startup de serviços nessa área avaliada em 1 bilhão de dólares e gestada dentro da Universidade de Montreal — o professor Yoshua Bengio é um dos fundadores. “O que acontece é que agora o sistema, com os feedbacks que recebe, se adapta e melhora sozinho. Isso é uma revolução profunda nos negócios”, diz Gagné.
É por isso que, para acelerar a adoção da inteligência artificial por diferentes setores, o Canadá quer ir além da estratégia com os institutos. O país planeja o desenvolvimento de competências num programa chamado superclusters. Em Montreal, o objetivo é desenvolver inovações na área de logística usando a tecnologia para otimizar os processos. O impacto esperado pelo governo em dez anos é um incremento no produto interno bruto de 16,5 bilhões de dólares canadenses. Na região de Toronto, o foco é voltado para a aplicação da inteligência artificial em manufatura avançada e na criação de novos chips capazes de processar as requisições dos algoritmos. Já em Edmonton, uma cidade média do interior canadense, o governo espera ver o surgimento de novas empresas de inteligência artificial voltadas para a agricultura, criando até 4.500 empregos e aumentando o PIB em 4,5 bilhões de dólares canadenses por ano.
“O que estamos mostrando ao mundo é que o investimento vai atrás do talento. É isso que fazemos com essas iniciativas: nutrimos talentos”, diz François–Philippe Champagne, ministro da Infraestrutura do Canadá. Segundo ele, o papel do governo é prover o ambiente necessário para que as empresas floresçam, sejam elas de inteligência artificial ou de outros setores, facilitando parcerias. EXAME observou esse pulsante ecossistema na C2, uma feira de criatividade em Montreal que tem entre os fundadores Daniel Lamarre, presidente do Cirque du Soleil.
Entre palestras de artistas, empreendedores circulavam pela feira mostrando startups na tentativa de encontrar investidores. Mas, com palestras concorridíssimas, os pesquisadores de inteligência artificial eram aqueles com status de estrelas do rock. Esta é, afinal, a maior ironia nesse campo da tecnologia: apesar de promover a automação de serviços e substituir as pessoas em diversas tarefas, a inteligência artificial só vai decolar com o trabalho intelectual de humanos.
O escritor americano Martin Ford alerta para o desemprego em massa que a inteligência artificial deve gerar
O futurista e escritor americano Martin Ford estuda os impactos da inteligência artificial. Ele alerta para um futuro dominado pela tecnologia, eliminando até empregos que exigem formação superior. Para ele, autor do livro Rise of the Robots: Technology and the Threat of a Jobless Future (“Ascensão dos robôs: tecnologia e a ameaça de um futuro sem emprego”, numa tradução livre), a educação precisa passar por uma transformação radical. Leia a entrevista a seguir.
Por que o senhor é um homem preocupado com os avanços da inteligência artificial?
Desde a Revolução Industrial, temos conseguido nos adaptar e estar sempre à frente das tecnologias. Mas, agora, as máquinas estão competindo com nossa capacidade intelectual. Em uma semana, um computador pode aprender o trabalho de uma pessoa. É isso que me preocupa. Cerca de 30% dos empregos devem desaparecer.
Quais empregos serão os mais afetados?
O efeito virá em diversas áreas. Não só nas tarefas repetitivas, mas também naquelas que exigem educação formal, inclusive de muitos anos. Um médico radiologista é um exemplo. Uma máquina pode interpretar um exame.
Como fazer para que as escolas e as universidades estejam preparadas para esse novo momento?
Temos de aceitar o fato de que apenas melhorar a educação ou resolver os problemas que conhecemos bem não será suficiente. Educar todo mundo para os empregos do futuro também não será suficiente. A melhor coisa a fazer é ensinar trabalho em equipe e criatividade, atividades em que as máquinas não são boas. Mesmo assim, é preciso pensar em outras medidas conjuntamente, como um projeto de renda básica.