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Chocolate amargo para Nestlé e Garoto

O veto do Cade à compra da Garoto estragou o plano da Nestlé de liderar o mercado. O que a empresa fará agora para se expandir?

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Da Redação

Publicado em 15 de junho de 2011 às 08h45.

 Desde o último dia 4, o executivo Ivan Fábio Zurita, presidente da subsidiária brasileira da Nestlé, está vivendo um pesadelo. Naquela quarta-feira, depois de ter esperado dois anos por um veredicto dos órgãos antitruste brasileiros, ele recebeu um ultimato -- em apenas 20 dias precisa contratar, com o dinheiro da própria companhia, uma consultoria e uma auditoria para calcular o valor de mercado e iniciar o processo de venda da fabricante de chocolates Garoto, pela qual a Nestlé pagara cerca de 500 milhões de reais no início de 2002.

Segundo a determinação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), o negócio deverá estar totalmente desfeito em pouco menos de seis meses. A decisão surpreendeu Zurita e os demais executivos da Nestlé, que sempre deram o caso como ganho. "Estamos perplexos", diz Zurita. "Não entendemos quais foram os critérios do Cade, que chegou a conclusões diferentes em casos anteriores."

A determinação é inédita na história do direito concorrencial brasileiro. Nos últimos anos, outras análises igualmente complexas (ou até mais) tiveram desfechos menos traumáticos e que não causaram maiores prejuízos para o mercado. Se a compra da Garoto tivesse sido aprovada, a Nestlé, que individualmente detém 29,8%, passaria a ter 53,7% do volume de chocolates vendidos, e desbancaria a americana Kraft, líder do mercado com a marca Lacta e 33,8% de participação.

Seria uma concentração menor, por exemplo, do que a gerada em 2000 pela formação da AmBev, resultante da fusão da Brahma com a Antarctica e um dos casos mais polêmicos da história do Cade. Ao nascer, a AmBev detinha cerca de 70% de um mercado de 12,5 bilhões de reais por ano -- aproximadamente dez vezes maior que o de chocolates, segundo a ACNielsen. É o caso, portanto, de perguntar por que desta vez a postura do Cade foi diferente e até que ponto obrigar a Nestlé a vender a Garoto em tão pouco tempo faz sentido.

A decisão é polêmica até mesmo dentro do próprio conselho. "Sou a favor de decisões menos radicais", diz o jurista João Grandino Rodas, presidente do Cade e o único a votar a favor da operação. Rodas quebrou o protocolo e comentou o trabalho dos colegas. "Acredito que a intervenção do Estado na atividade econômica deveria ser mínima e absolutamente excepcional", diz ele.


O economista Thompson Andrade, relator do caso Nestlé-Garoto no Cade, e os demais conselheiros são unânimes ao apontar que qualquer outra conclusão seria desvantajosa para a manutenção da concorrência. Segundo ele, a fusão resultaria num duopólio, em que 90% do mercado total de chocolates ficaria na mão de Nestlé e Kraft. A concentração seria maior em determinados segmentos.

O relatório do Cade diz que, com a Garoto, a Nestlé seria monopolista, por exemplo, em cobertura líquida, matéria-prima utilizada por fabricantes de chocolate de menor porte.

Nos casos anteriores em que ocorreu uma situação parecida, o Cade optou por soluções menos drásticas. Quando a Colgate-Palmolive comprou a Kolynos, em 1995, a determinação foi proibir a Colgate de utilizar a marca por quatro anos. Os executivos da Nestlé estavam, inclusive, prevenidos para uma hipótese do gênero. "Tomaríamos como razoável a determinação de sair de um mercado em que, pelo entendimento do conselho, tivéssemos participação acima do desejável", diz Zurita.

Por que desta vez o Cade não seguiu o roteiro que valeu para o caso da AmBev, cuja fusão foi condicionada à venda da marca Bavaria, que pertencia originalmente à Antarctica, pela nova empresa? "Separar apenas algumas marcas para vendê-las seria um péssimo negócio para um eventual comprador", diz o relator Andrade. "Diferentemente do que ocorre no mercado de cerveja, elas não têm individualmente participação de mercado suficiente para atrair compradores." De acordo com o relatório do Cade, o Prestígio, um dos chocolates mais vendidos da Nestlé, por exemplo, tem pouco mais de 2% de participação.

Não foi por falta de profissionais experientes que a Nestlé perdeu a batalha. Para a empreitada no Cade, a companhia contratou os mesmos advogados que cuidaram do caso da AmBev, Carlos Francisco de Magalhães e Tércio Sampaio Ferraz Junior. Outra especialista que trabalhou na fusão das cervejarias, a economista Elizabeth Farina, da Universidade de São Paulo, também se juntou à equipe.

Do outro lado, a Kraft, desde o início empenhada em melar o negócio, também se cercou de especialistas no assunto, como o advogado José del Chiaro, ex-diretor da Secretaria do Desenvolvimento Econômico, um dos organismos antitruste do governo, e o economista e consultor Gésner Oliveira, presidente do Cade no governo Fernando Henrique Cardoso. 


No início, o processo seguiu o andamento tradicional, com a apresentação de análises baseadas em pesquisas de opinião para indicar a provável reação dos consumidores a uma variação nos preços. Mas, com tantos cérebros operando, o pessoal do Cade foi obrigado a estudar uma montanha de papéis, que ia aumentando à medida que cada uma das partes argumentava ou se contrapunha a alguma informação colocada na mesa.

Durante esses dois anos, o caso somou mais de 6 000 páginas de relatórios, com exposições baseadas em modelos econômicos complexos, como o da Teoria dos Jogos, estudado pelo matemático americano esquizofrênico e prêmio Nobel John Nash, representado pelo ator Russell Crowe no filme Uma Mente Brilhante. Quem se der ao trabalho de ler aquilo tudo, vai encontrar análises baseadas no "dilema dos prisioneiros", num certo exercício de "minijogos 2 x 2" e fórmulas como a que diz que P/P = CMg/CMg, que relaciona a variação percentual de preço em função da variação percentual de custo.

A partir de certo ponto, a discussão sobre a compra da Garoto pelos suíços parece ter ficado tão esquizofrênica quanto o próprio Nash. "Os relatórios da Nestlé começaram a trazer informações contraditórias", diz Cleveland Prates Teixeira, um dos conselheiros. A Nestlé, por exemplo, tentou provar que a incorporação da Garoto poderia até fazer os preços cair, como resultado da redução de custos resultante da fusão.

O Cade considerou os argumentos da Nestlé inconsistentes. "Ora os relatórios da empresa diziam que determinado fator era fundamental para a redução de custos variáveis, ora diziam que não era", afirma o conselheiro Teixeira. Segundo o relator Andrade, dois dos aspectos que apareceram nos primeiros relatórios da Nestlé e sumiram nos seguintes foram os ganhos com a demissão do conselho de administração da Garoto e o compartilhamento de programas motivacionais e de treinamento.

O contrário também aconteceu. Alguns itens que constavam como irrelevantes nos primeiros relatórios passaram a ser considerados determinantes pela Nestlé, como a redução de custos variáveis com o fechamento de depósitos da Garoto. Dos quase 30 itens que surgiram nos diversos relatórios da Nestlé durante o processo, restaram apenas 13 no último documento emitido pela própria empresa.


E, desses 13, apenas três foram aceitos pelo Cade. "A Nestlé sustentou que a fusão faria seus custos cair em 12%", diz Andrade. "Mas as nossas análises mostraram que a queda seria de apenas 2,7%." Quem tem razão? "Nós entendemos do mercado de chocolates", diz Zurita. "Por que teríamos comprado a Garoto, então? Isso não faz sentido."

A esperança da Nestlé agora é tentar reverter a decisão do Cade. Zurita, para quem essa é uma questão pessoal, diz que ainda não foi atrás da contratação da consultoria e da auditoria para acompanhar a venda da Garoto, e dá a entender que a história não vai ficar assim. "Isso ainda vai longe", afirma, inconformado.

Uma das saídas possíveis é pedir uma revisão de análise para o próprio conselho. Foi o que fez a Gerdau, na ocasião da compra da siderúrgica Pains, em Minas Gerais, em 1994. Um dos fatores que pesaram para a decisão final favorável à Gerdau foi o fato de as operações das duas empresas já estarem tão integradas quando o Cade emitiu o veto que não seria mais possível separá-las.

Justamente por causa de antecedentes como esse, desde o início do processo a Garoto está protegida por uma cláusula de reversibilidade da operação -- tanto é que a Nestlé se limitou a efetuar investimentos de manutenção no período à frente da Garoto. A regra foi criada recentemente pelo Cade, como medida profilática para fazer com que os veredictos pudessem ser realmente aplicados.

"Uma revisão da decisão dificilmente seria aceita pelo Cade", diz a advogada Gianni Nunes de Araújo, especialista em legislação antitruste do escritório Franceschini e Miranda, de São Paulo. "Para isso, seria preciso apontar uma inconsistência na análise, o que é improvável num caso em que os argumentos foram debatidos à exaustão."

Outra opção para a Nestlé seria entrar com uma ação na Justiça comum. Há vários casos assim para questionar multas impostas pelo Cade. "Um processo na Justiça seria oneroso e demorado", diz a advogada Fabíola Cammarota de Abreu, especialista em legislação antitruste.


Nesse caso, a Nestlé poderia ganhar tempo para não ter de vender a Garoto a toque de caixa, muito provavelmente por um preço menor do que o pago aos antigos controladores, a família capixaba Meyerfreund. Caso se decida por esse caminho, a Nestlé poderia requerer uma liminar para suspender as determinações do Cade enquanto a ação estiver em curso, o que poderia levar anos.

À Nestlé, porém, não interessa que a novela se prolongue indefinidamente. Nem à Garoto, que ficaria sem receber investimentos nesse período. "Nossos advogados estão estudando o problema", diz Zurita. (Até o fechamento desta edição, a Nestlé ainda não havia nem colocado a Garoto à venda nem tomado nenhuma providência concreta para se opor à decisão do Cade.)

Quem poderia comprar a Garoto? O Cade estabeleceu que a empresa não pode ser vendida a nenhuma outra que detenha mais de 20% de participação de mercado -- percentual estipulado para eliminar a possibilidade de que a Kraft pudesse candidatar-se. Há várias possíveis compradoras.

Os executivos da britânica Cadbury, dona da Adams no Brasil, confirmaram o interesse publicamente. Outras cotadas no mercado são a argentina Arcor e as americanas Hershey, dona da marca Kisses, e a Mars, da M&M. Além de participação de mercado, o comprador levará uma empresa financeiramente sadia. A Nestlé diz ter revertido os prejuízos da Garoto nos últimos dois anos.

Sem a Garoto, o desafio de Zurita será encontrar outra forma de ganhar escala para aumentar a rentabilidade da Nestlé nas operações com chocolate, que representaram cerca de 10% de seu faturamento de 8,5 bilhões de reais no ano passado. "Esse é um mercado de margens muito apertadas", diz Giovanni Fiorentino, especialista em bens de consumo da consultoria Bain & Company.

Fica comprometida também a estratégia da Nestlé de usar a Garoto, cujos produtos são mais baratos, para ampliar sua penetração no mercado de renda mais baixa. Para Zurita, a Garoto era considerada importante para cumprir o compromisso assumido com a matriz de, até 2006, elevar a 10 bilhões de reais (1,5 bilhão mais que o obtido no ano passado) o faturamento da Nestlé brasileira. Zurita afirma não ter um plano B para ampliar a presença e as receitas da empresa nesse mercado.

Comprar uma empresa não é algo simples como comprar pão", diz ele. "Tinha planos para o negócio e ainda conto com a reversão da decisão." Depois de dois anos esperando pela bênção do Cade para poder dormir tranqüilo, parece que o pesadelo de Zurita apenas começou.
 

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