Revista Exame

Chega de ser boazinha na Xerox

À frente da Xerox, Ursula Burns - a primeira mulher negra a comandar uma companhia global

Ursula Burns, presidente mundial da Xerox (Getty Images/EXAME.com)

Ursula Burns, presidente mundial da Xerox (Getty Images/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 11h39.

Raras marcas no mundo conseguem ir além da condição de mera identidade corporativa para entrar na vida dos consumidores como parte do vocabulário. Foi assim com a Gillette, que virou sinônimo de suas lâminas de barbear lançadas em 1903. Mais recentemente, o Google deixou de ser apenas o nome da companhia de busca na internet criada no Vale do Silício para se tornar um verbo, conjugado nos mais diversos idiomas. A americana Xerox, que vendeu sua primeira fotocopiadora em 1961 e se transformou em codinome de uma categoria de produtos, faz parte desse seletíssimo time. Por meio século, pertencer a esse grupo a ajudou prosperar em cerca de 160 países.

Pode parecer curioso, portanto, que hoje seus executivos se dediquem tanto justamente em desfazer essa associação. A intenção se materializou numa campanha publicitária lançada nos Estados Unidos em setembro - a primeira da empresa a circular massivamente nos principais canais de TV, jornais e revistas americanos nos últimos 20 anos. As "estrelas" das peças representavam clientes da companhia - da mascote do time de baseball New York Mets a funcionários da rede de hotéis Marriott.

Em situações diferentes, eles mostram como a Xerox os ajudou a gerenciar atividades como arquivar e digitalizar documentos. A empresa que no passado resumia suas atividades à produção de máquinas para fazer cópias hoje é responsável até mesmo pelo controle de tráfego da cidade de Cleveland, em Ohio, onde instalou e monitora câmeras em cruzamentos e processa o pagamento de multas. Essa drástica transição, ensaiada nos últimos anos, ganhou velocidade com a compra da prestadora de serviços americana ACS, por 6,4 bilhões de dólares, anunciada em setembro de 2009 - menos de 100 dias depois de a americana Ursula Burns assumir a presidência da empresa. Com o negócio, as vendas da Xerox chegaram a 22 bilhões de dólares em 2009, 25% mais que no ano anterior, após uma década de estagnação.

Aos 52 anos, Ursula é ela mesma um fato novo não apenas no comando da Xerox - como também na história corporativa americana. Numa sucessão anunciada há quase três anos, ela herdou da antecessora, Anne Mulcahy, o cargo de presidente executiva, em julho de 2009, e a presidência do conselho de administração, em maio deste ano. Com a transição, a senhora de cabelos curtíssimos e língua afiada tornou- se a primeira mulher a suceder outra mulher numa grande companhia nos Estados Unidos. É também a primeira mulher negra a presidir uma corporação global. No dia seguinte ao anúncio de sua nomeação, ela se surpreendeu com dezenas de ligações, como a do ex-jogador de basquete Magic Johnson. Segundo ela, "por meses, foi enlouquecedor". Passado o burburinho, Ursula conseguiu se concentrar no que realmente importa: a transformação da Xerox.

Um aspecto fundamental dessa empreitada está na mudança cultural da empresa - mais especificamente no que ela já se referiu como "terminal niceness" (algo como gentileza terminal). "Gostaria que tivéssemos mais desacordo, discussão e confronto. Sem isso, as pessoas acabam por repetir velhas crenças, mesmo que não acreditem mais nelas", disse a EXAME em entrevista concedida após um encontro com analistas no estádio do New York Mets, em Nova York.


Trata-se de um discurso que se tornou recorrente entre presidentes de companhias globais, sobretudo para os que tomaram seus postos nos últimos dois anos. Forjados em tempos de instabilidade, eles tentam, cada um à sua maneira, despertar nas equipes o senso de urgência. Nas palavras do holandês Paul Polman, presidente da anglo-holandesa Unilever desde janeiro de 2009, trata-se de aumentar o "nível metabólico" da companhia. Dan Akerson, presidente mundial da montadora americana General Motors, deu seu recado assim que comandou a primeira reunião de diretoria na sede da montadora, em Detroit, em setembro: "Precisamos de uma cultura de ataque, não de defesa". São companhias que se acostumaram a ocupar a liderança em seus setores e, de uma maneira ou de outra, assentaram uma cultura interna de estabilidade.

Com a crise, ficou claro que esse comportamento deixou de ser compatível. Não se trata apenas de ampliar a agressividade da porta para fora, como pregava Ray Kroc, criador da rede de lanchonetes McDonald's ("se eu visse um concorrente se afogando, enfiaria uma mangueira de bombeiro em sua boca", costumava dizer), mas, sim, de estimular o conflito dentro da própria empresa. Por isso, em fevereiro, Ursula dedicou-se a explicar para centenas de funcionários da área de vendas a necessidade de ser menos, digamos, "bonzinho". "Talvez a família Xerox deva agir mais como uma família de verdade", disse ela. "Quando você está em família, você não tem de ser tão gentil quanto é fora de casa. Quero que nos mantenhamos civilizados e gentis, mas temos de ser francos."

Não é comum que uma veterana como Ursula cumpra o papel de contestar o status quo. Tanto Polman, da Unilever, como Akerson, da GM, são forasteiros recém-chegados a essas empresas. Ursula, ao contrário, construiu toda sua carreira na Xerox desde que iniciou um estágio em engenharia em 1980. Desde o começo, tornou-se conhecida como dona de um perfil incomum e, mais do que isso, uma voz dissonante. Filha de mãe solteira, que criou três filhos num conjunto habitacional do governo em Nova York à custa de trabalho duro, Ursula conviveu com adversidades desde cedo.

Na Xerox, a franqueza (por vezes, desconcertante) passou a ser sua marca. Nos anos 90, começou a participar como ouvinte de reuniões de diretoria. Na ocasião, o presidente Paul Allaire repetia todos os meses que a companhia deveria parar de contratar e, em seguida, milhares de novos funcionários eram contratados. Certa vez, Ursula levantou a mão e disparou: "Senhor Allaire, estou confusa. Se o senhor diz que não se pode contratar e, no mês seguinte, 1 000 funcionários são recrutados, quem pode dizer para não contratar mais e garantir que isso aconteça?" A personalidade assertiva chamou a atenção de Anne Mulcahy, que se tornou presidente da companhia em 2001, e tirou a Xerox da maior crise de sua história. "Ela não tinha papas na língua", disse Anne num artigo recentemente publicado pela Harvard Business Review. "Mas gostei de sua autenticidade, ainda que faltasse um pouco de tato."

Sob o comando de Anne, a Xerox passou por uma profunda reestruturação. Com o ataque de competidores japoneses, os negócios começaram a naufragar. Em 2000, as ações caíram 80% e a dívida chegou a 18 bilhões de dólares. A situação era tão crítica que a executiva buscou inspiração no livro Endurance, que mostra como há mais de um século o desbravador inglês Ernest Shackleton livrou-se de uma tragédia que liquidou sua embarcação na Antártida, comendo pinguim e foca, à deriva num bloco de gelo. A virada emblemática inspirou o pesquisador americano Jim Collins a incluí-la em seu livro mais recente, Como as Gigantes Caem, como exemplo de que "você pode cair feio e, mesmo assim, voltar à tona". Aposentada desde maio, Anne chegou a ser cotada para suceder Larry Summers como diretora do National Economic Council do governo do presidente Barack Obama. Substituir, na Xerox, alguém com essas credenciais obviamente não foi uma tarefa fácil. "Na minha visão inicial, a situação da empresa só poderia piorar", diz Ursula.


Dois fatores, segunda ela, a ajudaram a ganhar confiança. O primeiro deles foi o modelo singular de sucessão. Desde 2007, Anne começou a dividir responsabilidades da companhia com Ursula e passou a tratá-la publicamente como sua sucessora natural. (Nem sempre, no entanto, de maneira tranquila. Anne assumiu que algumas dessas conversas tiveram de ser intermediadas pelo vicepresidente financeiro da companhia.) "É realmente o modelo para sucessão na liderança", afirma Jeffrey Sonnenfeld, professor de gestão na Universidade Yale. Para ele, muitos presidentes não cultivam sucessores com medo de reduzir o próprio poder."

Paradoxalmente, segundo Ursula, a crise financeira mundial foi o segundo fator fundamental para ajudá-la a levar a companhia para o próximo estágio - o crescimento. "A adversidade permite que as pessoas aceitem mudanças com mais facilidade", diz ela. Para os executivos da companhia, a mudança passou a ser sentida até mesmo no ritmo das reuniões. "Ela tem cobrado resultados rápidos e não tolera que os problemas se arrastem de uma reunião para a outra", diz Hervé Tessler, presidente de mercados emergentes da Xerox. "Não é confortável para todo mundo."

O barulho em torno do novo direcionamento pode ser percebido no estilo de comunicação adotado pela companhia. A Xerox nunca foi um grande anunciante - investiu 11 milhões de dólares em publicidade em 2009, segundo estimativas de mercado (a companhia não revela os valores). Seu logotipo foi mantido quase intacto durante 50 anos até 2008, quando as letras deixaram de ser maiúsculas. Ursula decidiu que era preciso fazer mais - e mais rápido. Em fevereiro, criou uma campanha viral na internet que consistia num vídeo com tom humorístico e jeitão de documentário sobre uma síndrome batizada de IOS (na sigla em inglês, algo como síndrome do excesso de informação).

Neste ano, também criou uma comunidade no Facebook batizada de "So what does Xerox do?". O ponto alto da estratégia até agora é a campanha com a participação de clientes, que deve dobrar os investimentos publicitários da companhia. "Convencer os clientes a entrar no jogo exigiu insistência", diz Christa Carone, vicepresidente de marketing da Xerox. "Todos eles têm muito cuidado ao associar suas marcas a outras empresas." No total, seis clientes foram envolvidos - entre eles Procter&Gamble e a fabricante italiana de motocicletas Ducatti. Em outubro, a campanha foi lançada na Europa e deverá permanecer ao longo de 2011 com outros clientes.

O senso de urgência que Ursula tenta instaurar já se reflete no relacionamento entre as equipes da ACS e da Xerox nos cerca de 100 países em que as duas empresas estão presentes. O Brasil é um deles. "Começamos a treinar as equipes para oferecer o portfólio de ambas as companhias para os clientes", diz o israelense Yoram Levanon, presidente da operação brasileira da Xerox. Os resultados começam a aparecer. Até agora, em todo o mundo, já foram fechados 30 contratos de venda "cruzada". No terceiro trimestre, as receitas chegaram a 5,4 bilhões de dólares - 48% mais em relação ao mesmo período do ano anterior. Sem a ACS, o crescimento teria sido de apenas 2%. As ações da Xerox valorizaram 35% neste ano até o dia do anúncio dos resultados, em 21 de outubro. "Só 20% dos clientes hoje já são atendidos pelas duas empresas", diz Federico de Silva Leon, analista da consultoria Gartner.

A velocidade é fundamental para que a Xerox ganhe espaço num mercado em que outras companhias de tecnologia já avançaram há mais tempo. Nos últimos dois anos, a HP comprou a EDS, companhia de terceirização de tecnologia, e a Dell adquiriu a prestadora de serviços Perot Systems. Sob o comando de Sam Palmisano, a IBM acelerou na mesma direção antes das concorrentes ao vender a divisão de computadores para a chinesa Lenovo, em 2004. Segundo Ursula, não estão nos planos medidas tão radicais como a da IBM. A ordem, porém, é clara - ninguém pode se dar ao luxo de copiar o passado.

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