Revista Exame

Brasil, um país de empreendedores

Apesar de todos os obstáculos à livre iniciativa, o Brasil é hoje palco de um dos mais impressionantes fenômenos de emergência de empresas em todo o mundo

Rodrigo (à esq.) e Nei Brasil: experiência empreendedora em dois momentos distintos do país   (Germano Lüders/EXAME.com)

Rodrigo (à esq.) e Nei Brasil: experiência empreendedora em dois momentos distintos do país (Germano Lüders/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 12 de abril de 2012 às 09h30.

São Paulo - Aos 23 anos de idade, o gaúcho Nei Brasil, formado em ciências aeronáuticas, viu-se diante de uma das decisões mais importantes de sua vida. O ano era 2005 e Nei, morando em São José dos Campos, no interior de São Paulo, havia terminado um mestrado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica.

De um lado, ele tinha uma oportuni­dade de emprego na Embraer, uma das maiores fabricantes de aviões do mundo — o “sonho de consumo” de milhares de jovens brasileiros e caminho natural para quem se forma no prestigiado ITA. De outro, a vontade antiga de abrir o próprio negócio.

Como fez em outros momentos críticos, Nei telefonou para o pai, morador de Bagé, a poucos quilômetros da fronteira com o Uruguai. Treze anos antes, Rodrigo Brasil, então diretor de uma cooperativa local de carnes às voltas com uma crise terminal, viu-se obrigado a entrar no mundo dos negócios.

“Se não empreendesse, não comia”, lembra ele. Empreender no Brasil, a experiência havia lhe ensinado, era um processo exaustivo e arriscado. Diante da pergunta de Nei, Rodrigo deu seu veredito: “A Embraer é uma bela empresa, meu filho”. 

Nei entendia o pai. Lembrava que o poder aquisitivo da família caíra bastante nos primeiros anos da década de 90, quando Rodrigo tentava colocar de pé uma trading de couro. De uma hora para outra, as férias de verão nas praias de Santa Catarina foram substituídas por viagens a balneários localizados a poucos quilômetros de Bagé.

Nas outras vezes em que tinha pedido um conselho ao pai — na escolha do vestibular e, mais tarde, na opção de fazer o mestrado —, Nei havia seguido a opinião paterna. Naquele momento, no entanto, decidiu quebrar a regra. “Fui movido pela vontade de fazer algo completamente novo”, diz Nei.

Hoje, a Flight Technologies, apesar de novata, já é referência no país em desenvolvimento de veículos aéreos não tripulados. Os pequenos aviões fazem reconhecimento em operações militares e, mais recentemente, estão sendo usados para monitorar florestas plantadas. Em 2012, o empreendimento de Nei deve faturar 6 milhões de reais.


Pai e filho iniciaram a vida empreendedora em contextos muito distintos. No ano em que Rodrigo decidiu fundar sua empresa, em 1992, a inflação ultrapassou 1 100% e os juros reais oscilaram em torno dos 70%. Quando a Flight Technologies foi criada, a economia estava estabilizada havia dez anos.

O país começava a ser visto como uma das economias emergentes mais interessantes do mundo. Diferenças entre as histórias da família Brasil ajudam a entender um novo fenômeno em curso no país, algo tão transformador quanto a já mítica ascensão da classe C — o nascimento de um país de empreendedores.

O sonho do brasileiro jovem já foi conseguir um emprego público. Hoje, um número cada vez maior deles quer ter o próprio negócio. E isso muda tudo.

A era da multiplicação

Entre 2000 e 2010, o número de empresas no Brasil cresceu 47%, alcançando 6,2 milhões de negócios. Segundo a mais recente avaliação do Banco Mundial, o Brasil cria 316 000 novos negócios por ano, ficando em terceiro lugar como o país mais empreendedor, atrás apenas de Estados Unidos e Reino Unido (a China não entra na conta do banco por falta de dados confiáveis).

A taxa de sobrevida, que considera as empresas que ultrapassam dois anos de existência, cresceu de 50% no começo da década para 73% hoje. O Brasil claramente saiu da era do empreendedorismo de exceção e está inaugurando uma nova fase — a do empreendedorismo de massa, com um número crescente de empresas atuando dentro dos limites da legalidade.

“O país está ficando mais capitalista”, diz Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e sócio da gestora Gávea Investimentos. Até a virada do século, a maioria dos novos empresários criava empresas por absoluta falta de opção. Hoje quase 70% abrem o negócio por enxergar alguma oportunidade.

“Criar empresas apenas por necessidade nunca foi um bom sinal para um país”, diz Eric S. Maskin, ganhador do prêmio Nobel de Economia em 2007. “Já a prevalência de empresas criadas por oportunidade tem um potencial altamente transformador.”


O que explica essa mudança? Seria ingênuo supor que um país com longa tradição em impor obstáculos ao desenvolvimento do setor privado houvesse se transformado, da noite para o dia, em um lugar dos sonhos para o empreendedorismo. Longe disso.

Os avanços observados no Brasil ocorrem a despeito de um quadro burocrático e fiscal muito pouco favorável à prática empreendedora. Ocupamos, não custa lembrar, a vexatória 126ª posição no ranking do Banco Mundial, que classifica o ambiente de negócios em 183 países. A força empreendedora, graças a uma feliz combinação de fatores, vem se impondo apesar do governo, não por causa dele.

Mas é inegável que o novo empreendedor brasileiro catalisa boa parte das transformações modernizadoras pelas quais o país vem passando. Talvez a mais poderosa delas seja o aumento da escolaridade — ainda que soframos com a baixa qualidade da educação, o aumento da quantidade de anos de estudo ajuda a fortalecer o novo empresário.

A proporção desses empreendedores com mais de 11 anos de estudo dobrou em oito anos, alcançando 25%. O curso de administração já é aquele que forma mais profissionais no país — 155 000 graduados por ano, ante 87 000 em direito, o segundo colocado. O avanço na escolaridade se soma a outra mudança social de fundo, a demográfica.

No caso brasileiro, a nova leva de empreendedores conta cada vez mais com gente jovem. Segundo um levantamento do Global Entrepreneurship Monitor, a mais completa pesquisa feita anualmente sobre empreendedorismo no mundo, o número de empreendedores entre 18 e 24 anos é o que mais tem aumentado no país.

Essa é uma das consequências do fenômeno conhecido como bônus demográfico. Com dois terços da população na faixa etária considerada economicamente mais produtiva, nunca houve tanta gente com idade para abrir um negócio próprio.

“Há uma turma enorme na faixa dos 20 aos 30 anos propensa a empreender”, diz Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da gestora Rio Bravo. Uma juventude mais preparada acaba favorecendo a qualidade das empresas que estão sendo gestadas.

Cada ano a mais de estudo, diz um relatório do banco Bradesco, representa um aumento de 13% na renda. O novo empreendedor não apenas estudou mais, é também mais rico e conta com maior disponibilidade de recursos de outras fontes. O volume de crédito nas mãos das pequenas empresas foi multiplicado por 5 desde 2004, o maior salto nas categorias avaliadas pelo Banco Central.


Avanços no volume e na natureza das empresas iniciantes são um tipo de fenômeno capaz de mudar a cara de um país. É nas pequenas empresas, rápidas e rebeldes, que costumam surgir grandes inovações. São também esses negócios iniciantes que colocam fermento na necessária competição, conferindo dinamismo aos mercados.

Esse ambiente borbulhante de novos negócios é, ao mesmo tempo, um desafio e uma oportunidade para as grandes empresas. Na Fiat, a participação de pequenos fornecedores praticamente dobrou na última década. “Não estávamos buscando esse aumento. Foi um movimento natural”, diz Antonio Damião, diretor adjunto de desenvolvimento de fornecedores da Fiat.

Preocupada em fortalecer sua cadeia de suprimentos, a Vale criou em 2008 um programa para aumentar o número de fornecedores. Desde então, já foram concedidos 650 milhões de reais para financiar cerca de 400 empresas, principalmente pequenas e médias. “Queremos aumentar o leque para não depender de poucas companhias”, diz Ricardo Porto, diretor de suprimentos da mineradora. 

Um novo vale do silício?

Desenvolver um ecossistema empreendedor é hoje o sonho de muitos governos. Em todo o mundo, a grande referência é o Vale do Silício, nos Estados Unidos, berço de algumas das companhias mais inovadoras. Está tudo lá: universidades, dinheiro para investimento, empreendedores com boas ideias e mercado consumidor forte.

Estima-se que existam em todo o mundo 79 “Siliconias”, termo que dá nome às tentativas de copiar o prodígio californiano. Até hoje, nenhuma delas chegou lá. Daniel Isenberg, professor da renomada escola de negócios americana Babson College, é um dos maiores estudiosos de ecossistemas de empreendedorismo.

Ao longo de sua carreira, Isenberg saiu dos Estados Unidos para estudar o ambiente de negócios de lugares como Israel, Taiwan e Irlanda. Eis um de seus mantras: “Parem de tentar copiar o Vale do Silício”. A dinâmica de um ecossistema envolve interações de elementos como cultura, acesso a capital, mercados.

Isoladamente, muitos deles até podem estimular a atividade empreendedora por algum tempo. Mas não são suficientes para sustentá-la no longo prazo. O recado de pesquisadores como Isenberg é claro: cada país ou região deve estimular seu ecossistema de acordo com as características locais. Em boa medida, é o que vem ocorrendo no Brasil.


O fortalecimento do emprego, por exemplo, parece ser uma peça-chave no ambiente empreendedor em formação por aqui. A taxa de desemprego caiu de 12,4% em 2003 para 4,7% em dezembro. Essa situação de quase pleno emprego funciona como uma poderosa rede de proteção.

Para os novos empresários, se tudo der errado, não será difícil arrumar uma vaga mais adiante. Em certa medida, isso desmente o senso comum — que associa o empreendedorismo a um apetite desmedido pelo risco. Afora um pequeno grupo realmente destemido, a massa de empreendedores é formada por gente como cada um de nós.

Formal ou informalmente, sempre fazemos avaliações de risco e oportunidade antes de nos lançar numa nova empreitada. “A boa nova é que, na avaliação de milhões de brasileiros, o risco de empreender diminuiu”, diz Ilan Goldfajn, economista-chefe do Itaú Unibanco e ex-diretor do Banco Central.

A certeza de que haveria para onde voltar foi o impulso que faltava para o paulista Carlos Eduardo Caruso Ferreira, hoje com 39 anos, começar a empreender. Em 2002, ele trabalhava como consultor da AT Kearney, ganhava um salário equivalente a 32 000 reais, mas decidiu largar tudo para fazer um mestrado promovido pela Fifa.

Era o passo primordial para que, dois anos depois, Ferreira abrisse uma consultoria esportiva com um ex-colega da AT Kearney. “Sabia que, se nada desse certo, não ficaria muito tempo desempregado, e isso me deu segurança para começar a caminhada”, diz. Hoje a Golden Goal presta consultoria de marketing esportivo, administra camarotes de estádios de futebol e fatura 12 milhões de reais.

Um dos efeitos colaterais do aquecimento do mercado de trabalho é a troca maior de emprego por parte dos trabalhadores. O índice que mede a rotatividade aumentou mais de 8 pontos percentuais desde 2001 — e isso é positivo, segundo uma pesquisa da fundação americana Kauffman, referência em estudos sobre empreendedorismo.


Firmas criadas por pessoas que tiveram contato com várias culturas empresariais têm mais chance de dar certo. É também uma questão de conhecimento. As empresas privadas dobraram o investimento em treinamento desde 2000 — e isso beneficia quem quer sair para empreender. 

Uma questão de imagem

O carioca José Olympio Pereira, copresidente do banco de investimento Credit Suisse no Brasil, começou a trabalhar em meados dos anos 80. “Naquela época, quando alguém empreendia e tinha sucesso, as pessoas logo indagavam: qual é a falcatrua?”, diz. A expansão econômica das últimas décadas deixou esse ranço preconceituoso para trás.

Estima-se que a cada dia surjam no Brasil 19 novos milionários. São mais de 137 000 deles espalhados pelo país. Na última lista de bilionários elaborada pela revista americana Forbes, há 36 brasileiros — um aumento de 20% em relação ao ano anterior.

“A imagem mudou”, diz Beto Sicupira, sócio da AB InBev, um dos bilionários da lista e fundador do braço brasileiro da Endeavor, ONG internacional de promoção do empreendedorismo. “Os exemplos de sucesso e o testemunho de que dá para chegar lá ajudaram a tirar o preconceito em torno da atividade.” 

Nos últimos anos, os brasileiros se acostumaram a ler notícias sobre investimentos milionários de fundos de capital de risco e private equity, que saíram de 261 milhões de dólares em 2002 para 4,6 bilhões em 2010. Ou sobre as 130 empresas que lançaram ações na bolsa de valores desde 2004 — das quais 30% tinham menos de dez anos de existência na época do IPO.

E isso alimenta o sonho. Não é de estranhar que 86% dos brasileiros digam considerar o empreen­de­dorismo uma boa opção de carreira. Nesse quesito, na última amostra do Global Entrepreneurship Monitor, com 54 países, o Brasil só ficou atrás da Colômbia. De certa forma, esse fenômeno é global.

Em várias partes do mundo, a ideia de tocar uma empresa nunca foi tão atraente. No Vale do Silício, há uma frase que resume bem esse espírito: no passado, para impressionar uma garota, os jovens fingiam fazer parte de uma banda. Hoje, fingem trabalhar em uma start-up. Não é a toda hora que a história de criação de uma empresa, como a rede social Facebook, vira um filme de Holly­wood. 


Embora muitos queiram ser o novo Mark Zuckerberg, o Brasil tem gerado empresas bem menos charmosas que as grandes estrelas americanas — e ainda é cedo para saber se um dia teremos por aqui gente capaz de mudar o mundo. Mas, dentro de nossa realidade, já há espaço para algumas estrelas.

A elite das novatas é formada pelas “gazelas” — termo usado pela OCDE, o clube dos países ricos, para designar empresas jovens com crescimento superior a 20% nos últimos três anos. Segundo o IBGE, havia no país em 2009, último ano de medição, quase 12 000 “gazelas”.

Isso é o equivalente a 3,3% do universo de empresas analisadas. Entre os integrantes da OCDE, a média é inferior a 1%. Fundada em 2003 no Rio de Janeiro, a agência de marketing Biruta Ideias Mirabolantes é uma delas. Ao lado de três sócios, o estudante Alan James, na época com 28 anos, conseguiu um lugar na incubadora conhecida como Shell Iniciativa Jovem.

Seu sonho era criar a própria empresa de comunicação. Já no segundo ano James conseguiu fazer pequenas campanhas para companhias como a própria Shell. Em 2007, a Petrobras virou cliente e, mais recentemente, Claro e Itaú Unibanco entraram no portfólio.

Com esses nomes na carteira, a Biruta não parou mais de crescer. Nos últimos três anos, o faturamento passou de 10 milhões de reais para 18 milhões. Em 2011, James e seus sócios venderam 20% da empresa, por 5 milhões de reais, para o fundo Fox Investimentos.

Entre os economistas, debate-se muito quais serão os efeitos desse novo momento do capitalismo brasileiro. Por ora, os índices de produtividade e inovação ainda não acusam as melhorias esperadas. Parte da explicação é o papel negativo do governo. Nesse sentido, as novas empresas estariam elevando a produtividade de um lado, e o governo estaria puxando para baixo do outro.

Para os economistas do Itaú, não restam dúvidas de que a nova onda de empreendedorismo está tendo importantes efeitos macroeconômicos. “Esse fenômeno é um dos motivos que nos fazem estimar o potencial de crescimento do Brasil em 4%, e não 3,5%”, diz Goldfajn. 

Qual é o fôlego dessa nova onda? Apesar da recente euforia, é preciso colocar o momento em perspectiva. O crescimento mais forte da economia, não há dúvida, cria grandes oportunidades. Mas também é capaz de ocultar antigos problemas. Vale olhar para o sistema tributário.


O Simples, regime criado em 1996 e que hoje vale para empresas com até 3,6 milhões de reais de faturamento, representou um enorme avanço ao reduzir o peso dos tributos e a burocracia. Na prática, porém, puniu o crescimento — já que o sistema tributário kafkiano existente no país passa a pesar sobre quem ultrapassa o limite.

A boa nova é que o governo, assustado com a desaceleração dos últi­mos meses, recentemente anunciou planos de alterar a lei trabalhista para permitir relações mais flexíveis de trabalho. Também há expectativas de desoneração da folha de pagamentos da indústria, entre outras medidas.

Na ausência de reformas mais ambiciosas, todas essas mudanças, se de fato forem adiante, são benéficas. Podem colocar mais lenha num movimento que está ganhando força a cada dia. Num país em que o Estado sempre teve atuação determinante nos rumos da economia, o avanço do empreendedorismo representa uma chance inédita de alcançar um equilíbrio melhor entre governo e sociedade.

Para pensadores como o cientista político americano Francis Fukuyama, é esse equilíbrio o responsável pelo sucesso de longo prazo de uma nação. Nesse sentido, uma sociedade forte e dinâmica é requisito essencial. Individualmente, os empreendedores geram empregos e prosperam na vida. Tomados em conjunto, são a chave para um ambiente mais moderno — e um país melhor.

Com reportagem de Daniel Barros e Guilherme Fogaça

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