(Catarina Bessell/Exame)
Repórter
Publicado em 22 de março de 2024 às 06h00.
Há uma máxima que afirma que uma mudança súbita de realidade — sejam 15 minutos de fama, um evento traumático, seja até ganhar muito dinheiro — pode transformar completamente a vida de alguém. São eventos raros, em ocasiões igualmente raras, capazes de impactar também o futuro de grupos inteiros, de sociedades, e seu modo de viver. Neste momento, é possível que uma mudança assim esteja em curso na economia, por algo que opera num campo entre o real e o virtual: o ultradigital bitcoin.
A criptomoeda, sempre vista com desconfiança por governos e investidores tradicionais, está mais famosa do que nunca, e seu valor de mercado experimenta uma alta recorde de 250% nos últimos 12 meses, com uma única unidade do ativo flutuando entre 65.000 e 73.000 dólares em valor. Há, por assim dizer, um momento de ruptura no caminho quase sempre instável da criptomoeda.
Por trás dessa valorização está a escassez, uma característica intrínseca do bitcoin. Da mesma forma que o preço de commodities, o valor do bitcoin é sensível à demanda. Mas isso ficou ainda mais evidente com o lançamento, em janeiro, dos fundos de índices negociados na bolsa de valores americana, conhecidos pela sigla em inglês ETFs. Essa modalidade cria ativos físicos da moeda digital e facilita sua liquidez na conversão para outros ativos.
Desde que foram aprovados pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla em inglês), os investidores aportaram 7 bilhões de dólares nesses papéis.
No mês de março, 5% das reservas de bitcoin já correspondiam a fundos ETFs. “Atualmente, dentro do ecossistema de cripto, o bitcoin se firma como o ativo de menor risco. A aprovação dos ETFs diminuiu as incertezas regulatórias para os investidores e alterou a percepção de risco”, afirma Augusto Pezzini, CIO da gestora Metrix.
Outra contribuição ao momento de maior euforia da moeda é o processo de geração de novos bitcoins. O código de computador que fundamenta o bitcoin impõe o limite rígido de existirem apenas 21 milhões de moedas. No entanto, mais de 90% desse total já foi criado. Esse processo, chamado de mineração, exige que os computadores e seus proprietários sejam recompensados com bitcoins novos no momento em que finalizam o ciclo que confirma as transações de um determinado período. Mas há um limite: toda a cadeia de mineradores só pode gerar cerca de 900 novos bitcoins por dia, uma taxa que deve cair no próximo mês após um evento periódico chamado halving, que reduz a recompensa para os mineradores a cada quatro anos.
“No jargão econômico, a oferta de bitcoin seguirá inelástica, ou seja, independentemente de oscilações nos preços, a quantidade ofertada permanecerá relativamente constante”, diz Fábio Murad, gestor da Ipê Investimentos. Esse funcionamento foi definido por Satoshi Nakamoto, o criador anônimo da moeda digital, como uma forma de evitar a inflação dentro do sistema bitcoin. Se nada mudar, o último bitcoin está programado para surgir por volta do ano de 2140.
Mas com a boa fase, há também a previsão de que os detentores de grandes quantias de criptos optem por vender suas posições. Este momento é corriqueiro na trajetória do bitcoin, marcada por altas seguidas por quedas descomunais: após seu último pico, em novembro de 2021, o bitcoin caiu mais de 70% no ano seguinte. Para os analistas mais céticos — incluindo autoridades governamentais e executivos do mercado financeiro —, se mantém a posição de que o bitcoin é um ativo sem valor intrínseco.
As altcoins e memecoins, que aglomeram os câmbios com propostas diferentes do bitcoin e, em alguns casos, são piadas nascidas nas redes sociais, também estão se capitalizando e fortalecendo a ideia geral de moedas virtuais. O ether, segunda maior cripto do mundo, experimentou uma valorização que, segundo previsões, deve ultrapassar em breve a do bitcoin.
A diferença é que, além de ancorada na alta do bitcoin, será estimulada pela atualização de seu sistema de blockchain, que deixou seu funcionamento menos custoso do ponto de vista energético. Uma transação que anteriormente poderia onerar o sistema em 1 real para ser publicada agora pode ficar em 1 centavo; outra que custava centavos poderá custar uma mera fração disso.
Em um mundo que precisa ser mais ESG, o bitcoin deve patinar um pouco mais para perder a fama de poluente. A moeda está na lista das menos ecológicas.
Em outras palavras, seu funcionamento tem impacto ambiental exageradamente alto devido à grande quantidade de energia necessária para manter os computadores que fazem os complicados cálculos das transações. Até 2030, a moeda deverá passar a consumir 1% da energia elétrica disponível no mundo.
Esse dado assusta os investidores mais tradicionais e que miram índices de sustentabilidade condizentes com as metas de sustentabilidade desta década.
Do lado oposto está o ether, considerado o ativo digital mais sustentável do planeta, seguido da solana, que tem um sistema de processamento similar, e da cardano. Para o bitcoin contornar a questão, terá de contar com a transição energética global, que já tem ajudado a moeda. De acordo com o Bitcoin Mining Council (um fórum global de empresas do setor), em 2023 63% dos mineradores de bitcoin já usavam energia renovável — dois anos antes eram 49%.
Ainda assim, o destoante Vitalik Buterin, russo criador da criptografia Ethereum, que roda o ether, afirma que a capacidade de aprimoramento da moeda que criou se manterá por muito tempo como vantagem diante de outros câmbios.
O jovem inovador de 30 anos afirmou publicamente que contará com o uso da inteligência artificial (IA) para deixar o ether superior no consumo de energia, na velocidade com que faz transações, e mais robusto na variedade de registros e trocas de ativos suportados.
Com isso, espera garantir a longevidade da blockchain perante avanços como a computação quântica, que tornará vulneráveis as moedas digitais por usar um poder de processamento capaz de violar a segurança criptográfica de todos os ativos existentes.
Distante do sobe e desce das criptos, mas diretamente envolvida, está a taiwanesa Nvidia, empresa responsável pelo design dos chips que fazem os cálculos de mineração do bitcoin e também impulsionam a incensada inteligência artificial. A companhia viu na pandemia a demanda por hardware para cripto crescer 200%.
Na posição de líder, tomou distância de concorrentes como a Radeon e a Intel, e ultrapassou a marca de 2 trilhões de dólares na bolsa. A empresa, que surfa a onda do bitcoin do topo, além de sinônimo de alta tecnologia, sintetiza a combinação de inovações em que ninguém apostava como definidoras do futuro.
Com a manutenção do crescimento da moeda nos próximos meses, espera-se que, em algum momento, o valor de 1 milhão de dólares por unidade seja atingido — ascendendo junto toda uma nova economia criada ao lado dela. Se esse patamar, inimaginável no momento, chegar, o bitcoin não será apenas o ativo que emergiu, mas também o que decolou.
El Salvador arriscou ao adotar o bitcoin como moeda corrente. A aposta deu lucro, mas no dia a dia o dólar ainda impera
Menor país da América Central, El Salvador é do tamanho do estado de Sergipe e tem quase a mesma população que a cidade do Rio de Janeiro. Seu índice de desenvolvimento humano (IDH) está abaixo da média dos emergentes e as taxas de analfabetismo e empregabilidade estagnaram em 2014.
Cerca de 25% dos domicílios urbanos não têm água encanada e apenas 17% das casas são servidas por rede de esgoto. Apesar dos números, digamos, complicados, El Salvador é a primeira nação, e única, a adotar o bitcoin como moeda oficial ao lado do dólar americano.
Sob o comando do autoritário Nayib Bukele, o país, que regulamentou o bitcoin via lei, comprou cerca de 2.800 unidades da cripto entre 2021 e 2022, a um preço médio de 42.599 dólares, segundo o site Nayib Bukele Portfolio Tracker, que rastreia a quantidade de bitcoins adquiridos pelo governo salvadorenho.
Com a alta mais recente, obteve um lucro de 84 milhões de dólares com o ativo digital. Contudo, é apenas uma reversão de perdas do país, que ficou com o investimento no vermelho nos últimos dois anos.
Publicamente, o presidente afirma que essa é apenas uma parte da conversão cambial que o país fez. Outra provém de medidas como um programa de pagamento em criptomoeda para obtenção de cidadania no país, receitas com conversão do ativo em dólar em comércios locais, recursos com mineração de bitcoin e receita com serviços governamentais.
Além disso, soma-se o interesse de empreendedores libertários que encontram facilidades fiscais para levarem suas carteiras para o país. Com todas essas frentes, o saldo de criptomoeda seria muito maior que o projetado, assim como um lucro potencial seria maior.
Mesmo que a aposta pouco ortodoxa seja questionada por organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), é uma tentativa do país de se modernizar por um caminho que poucos tentaram.
Um dos bons resultados pode ser analisado pelo fato de ter conseguido honrar pagamentos dos títulos de dívida nos últimos dois anos, com retornos de 70% para os credores. A condição tem chamado a atenção de JPMorgan, Eaton Vance e PGIM Fixed Income, que recomendaram ou compraram a dívida da nação.
A população de El Salvador, no entanto, ainda não adotou definitivamente o bitcoin. Nos pequenos comércios da capital de San Salvador,a moeda é aceita, mas o câmbio volátil e de funcionamento complexo afasta os salvadorenhos, que ainda preferem usar o dólar nas transações.