Foi só em 1981 que os habitantes do Mimbó foram reconhecidos como pessoas. Seus avós passaram décadas morando numa caverna (MirageC/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 22 de julho de 2022 às 06h00.
Por Carolina Cavenaghi*
Imagine viver em uma caverna por 30 anos. Esse não é um relato pré-histórico nem o roteiro de um filme. É a história de 13 mulheres descendentes dos fundadores do Quilombo Mimbó. A 170 quilômetros de Teresina, Piauí, onde moro atualmente, fui conhecer essa história, na zona rural da cidade de Amarante. Deparei-me com um relato que carrega muita dor, esperança e a potência das mulheres.
Parte da memória viva do Mimbó, dona Idelzuíta Paixão, neta do casal que deu início a essa jornada, me contou a história de sua família. Seus avós, escravizados, fugiram a pé de Pernambuco e passaram décadas escondidos em uma caverna à beira do Rio Canindé na tentativa de escapar da atrocidade escravagista. Ao deixar o abrigo, o casal começou a construir uma comunidade às margens do rio. Segundo dona Idelzuíta, foi só em setembro de 1981 que os habitantes do Mimbó foram reconhecidos como pessoas. Nesses anos de história, o quilombo se multiplicou com pessoas da mesma família e hoje soma cerca de 600 habitantes. É a Paixão (sobrenome da família) que atravessou décadas de resistência contra a escravidão e segue caminhando com esperança. Idelzuíta lutou contra o preconceito, por direitos básicos e se tornou a primeira professora leiga do quilombo. Diante de muita emoção, era possível sentir a dor que atravessava seus olhos. Assim como a força que corria em suas veias.
Cheguei até lá quando soube de um projeto para profissionalizar mulheres do quilombo. Foi a artista plástica, designer e artesã Kalina Rameiro quem me fez o convite. Formada em artes plásticas, empreendedora e dona de um ateliê, ela é uma das coordenadoras do projeto e, nos últimos três meses, tem sido professora das mulheres do Mimbó. “Em sua grande maioria, as mulheres do Mimbó são agricultoras, vivem do plantio, mas demonstraram a vontade de transformar a própria vida. Elas querem ter uma profissão e ser independentes financeiramente”, contou Kalina quando me falava mais do projeto.
A ideia saiu do papel quando o governo do Piauí conseguiu uma grande doação de tecidos da empresária Cláudia Claudino. A convite da atual governadora do estado, Regina Sousa, Kalina — que já capacitava mulheres em outras comunidades — aceitou o desafio. O primeiro passo foi fazer com que as mulheres enxergassem as belezas dentro da própria comunidade. “Elas olhavam muito para fora. Eu fiz um processo de imersão na comunidade para que passassem a olhar com mais carinho o que tinham em seu lar, em seu quintal. A vegetação do quilombo é a inspiração para a arte delas, como uma forma de valorizarem a si mesmas, honrarem suas raízes.
Enquanto isso, 13 mulheres da comunidade se candidataram para participar do projeto. Maria de Jesus, Rosildete, Cristina, Elisanete, Sônia, Lene Maria, Maria Francisca, Graziele, Fernanda, Maria Rita, Raimunda Maria, Marta Paixão e Ivandi. Até então, a trajetória das mulheres do Mimbó era viver da agricultura ou se mudar para a zona urbana para trabalhar em empregos informais. Hoje, elas começam a construir seu próprio negócio, que, além de renda, traz autonomia, independência e reconhecimento.
Nem todas costuram — há aquelas que montam, as que limpam o produto, as que dão o acabamento, e até as responsáveis pelo controle de qualidade. Mas uma coisa é necessária: todas têm de entender a história do produto. Hoje, as 13 mulheres estão sendo capacitadas e recebem aulas de artesanato. Em breve, receberão carteiras oficiais de artesãs e já concorrem ao prêmio Top 100 de Artesanato, do Sebrae. Inclusive, elas também têm o apoio da instituição, que as ensina a precificar seu trabalho e a gerir o próprio negócio, uma vez que os empreendimentos são feitos não apenas do produto mas da precificação, das vendas, da divulgação e da gestão dos lucros. As vendas serão feitas pela internet, pelas redes sociais.
Durante a visita, conversei com elas sobre a importância de ganharem, cuidarem e terem a autonomia sobre o próprio dinheiro. Afinal, esse é o ciclo de independência que sempre defendi e procurei promover. A história delas me faz pensar quanto precisamos falar sobre esse tema em todas as camadas. Quanto a independência financeira liberta e empodera as mulheres. Em breve, as 13 mulheres do Mimbó serão artesãs e empresárias, produzindo e cuidando do próprio negócio. Em muitos casos, como no Mimbó, o quilombo é formado somente, e em grande maioria, por uma comunidade de mulheres, muitas mães solo. O que acontece é uma evasão dos homens para grandes centros urbanos em busca de trabalho. Essas mulheres carregam a responsabilidade de ser as provedoras de seus lares e de cuidar de suas famílias.
Quando abrimos o nosso olhar para o outro é possível nos conectarmos com profundidade e entender melhor o nosso papel nesta sociedade. Conhecer essas mulheres me transformou de uma forma avassaladora. Desde que cheguei ao Piauí, tenho a certeza do tamanho da oportunidade e da missão de conhecer um Brasil que pouco acessamos. Ao olhar nos olhos de cada uma daquelas mulheres, ouvi-las e sentir tanta força e esperança de um futuro melhor, eu me transformei. Nós, mulheres, carregamos essa luz, essa força e esse dom de ressignificar.
Em um mundo cada vez mais raso, eu busco essa magia de me conectar de verdade. Em cada uma delas existe um lugar de muita dor, mas também existe uma leveza e a esperança de um futuro melhor — afinal, elas já transformaram muito. Não podemos mudar a história passada, mas temos a responsabilidade de mudar a futura. Todas nós buscamos ser percebidas e ter oportunidades e direitos iguais. É muito mais do que a independência financeira e econômica; é uma independência humana.