Revista Exame

O ano zero da competição entre cartões de crédito

Em julho, a empresa de cartões Cielo, a maior do país, deixa de ter a exclusividade do uso da bandeira Visa - e isso muda tudo no mercado. Os dias de paz entre as operadoras parecem estar contados

Cielo deixa de ter exclusividade do uso da bandeira Visa (Ernesto Rodrigues/AE)

Cielo deixa de ter exclusividade do uso da bandeira Visa (Ernesto Rodrigues/AE)

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Da Redação

Publicado em 4 de março de 2011 às 17h21.

O domingo chuvoso de 8 de novembro de 2009 foi atípico na alameda Grajaú, em Alphaville, próximo a São Paulo. Na altura do edifício de número 219, o entra e sai de pintores deixava claro que aquele não era um dia de descanso na sede da Visanet, a maior credenciadora de cartões do país. Na manhã do dia seguinte, antes de se dirigirem à sede, funcionários de todas as regiões do país participariam de um evento num teatro de São Paulo no qual seriam informados de que a marca da empresa passaria a ser Cielo.

Com a intenção de mostrar que a mudança era para valer, a direção da empresa exigiu a pintura das paredes, a troca das sinalizações das portas e a substituição do letreiro da fachada em Alphaville. De fato, quando chegaram à sede para trabalhar, os funcionários não encontraram nenhum sinal da Visanet. O enterro da antiga marca foi, de forma simbólica, um divisor de águas na companhia. Desde então, todas as energias da Cielo foram centradas no mercado que nascerá no dia 1o de julho deste ano, quando termina o contrato de exclusividade entre a empresa e a bandeira de cartões Visa - a maior reviravolta da história do mercado brasileiro. Nesse novo contexto, não fará sentido manter a marca Visa no nome.

Um mercado aquecido Por mais de uma década, as credenciadoras de estabelecimentos comerciais Redecard e Cielo (quando ainda era Visanet) viveram as benesses de um setor praticamente sem competição. Os lojistas que quisessem aceitar os cartões Visa, líderes de mercado, eram obrigados a contratar os serviços da Cielo - e quem quisesse realizar pagamentos com a Mastercard, a segunda principal bandeira, precisava contratar a Redecard.

O mesmo valia para os respectivos cartões de débito - Visa Electron, da Visa, e Maestro e Redeshop, da Mastercard. Juntas, Cielo e Redecard tinham um mercado cativo que totalizava 80% do setor no país. Sem poder contar com as marcas mais desejadas e aceitas, não chegava a ser surpresa o fato de que ne nhuma empresa ousasse entrar nesse segmento, mesmo se tratando de um dos mercados de cartões mais aquecidos do mundo. Na última década, o número de emissões teve um crescimento médio anual de 19%.

Por pressão do governo federal, tudo isso começa a mudar agora. Na prática, a partir de julho os lojistas poderão contratar apenas uma credenciadora e com ela trabalhar com os cartões Visa e Mastercard, o que o governo espera que provoque uma batalha entre Cielo e Redecard. Além disso, o novo cenário motivou a estreia de concorrentes. No começo deste ano, o banco Santander anunciou uma parceria com a empresa gaúcha GetNet para operar no credenciamento de cartões. O plano é atingir 300 000 estabelecimentos num prazo de três anos, especialmente pequenas e médias empresas.


"É líquido e certo que a competição vai se acirrar e se refletir nas tarifas cobradas dos lojistas", diz José Paiva Ferreira, vice-presidente do Santander responsável por toda a área de varejo. Segundo projeções da consultoria AT Kearney, a taxa cobrada dos estabelecimentos comerciais para realizar as transações - de cerca de 3% do valor da compra, alta para os padrões internacionais - deve cair para cerca de 2% nos próximos anos. A disputa por clientes ainda poderá ficar maior se forem confirmadas as informações de que o HSBC está se preparando para atuar nesse setor. Procurados, os executivos do banco não quiseram conceder entrevista.

As movimentações também ocorrem em bancos menores. Com um projeto menos ambicioso, o banco Panamericano, pertencente ao Grupo Silvio Santos e 21o do ranking nacional, já tomou a decisão de entrar no setor de credenciamento. "Vamos atuar em mercados inexplorados, como os estabelecimentos comerciais populares que ainda não aceitam nenhum tipo de cartão", diz Elinton Bobrik, diretor executivo de cartões do Panamericano.

Ele deixou, em outubro, o Itaú Unibanco para preparar a nova fase do banco de Silvio Santos. Outra que promete esquentar a concorrência é a First Data, maior processadora de pagamentos do mundo. Presente no Brasil desde 2001 com a oferta de aplicativos para sistemas de pagamento, a empresa quer atuar, num primeiro momento, como o braço tecnológico dos novatos do mercado, prestando serviços de instalação das máquinas, atendimento aos clientes por meio de call center e controle de fraudes. Pela frente, a First Data deve encon- Um mercado ainda concentrado trar a concorrência da CSU CardSystem, processadora de meios eletrônicos de pagamento com sede em São Paulo.

Entre  as bandeiras, o fim da exclusividade também altera o ambiente competitivo. A partir de julho, qualquer nova marca de cartão poderá firmar acordo com a Cielo  - a Redecard já faz esse tipo de contrato há mais tempo. Foi justamente essa perspectiva que incentivou o Banco do Brasil e o Bradesco a lançar a bandeira de cartões Elo, no fim de abril. "Seria impossível desenvolver uma bandeira nacional isoladamente, sem uma vasta rede de aceitação instalada", diz Luiz Carlos Trabuco, presidente do Bradesco.

A nova bandeira, que deve chegar ao mercado nos próximos seis meses, terá um foco especial no segmento da baixa renda e pretende alcançar uma participação de 15% nos próximos cinco anos. "Vamos repassar as economias obtidas pela escala do negócio aos consumidores finais. Será um genérico de cartão de crédito", diz Trabuco. Um item já fora da planilha de custos do Elo é o dos royalties pagos pelo uso das bandeiras internacionais. "A tendência é que haja redução de taxas", diz Paulo Rogério Caffarelli, vicepresidente de cartões do Banco do Brasil e presidente da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços. A Caixa Econômica Federal é outra que planeja a criação de uma bandeira própria nos próximos meses, mas ainda não fez nenhum anúncio oficial.


O que provocou a mudança das regras do jogo foi a publicação, no ano passado, de um relatório conjunto entre o Banco Central, o Ministério da Fazenda e o Ministério da Justiça. O calhamaço de 297 páginas trazia uma análise profunda - e dura - do setor no Brasil. Para as empresas, ficou claro que a exclusividade seria mudada por bem ou por mal. Entre Redecard e Mastercard, a relação de irmãs siamesas não era registrada em contrato.

Já a Cielo (na época, ainda Visanet) precisou vir a público dizer que seu contrato com a Visa não seria renovado quando expirasse, em julho deste ano. Apesar de representar o marco zero da competição no setor, a mudança "voluntária" das companhias não parece ter atendido plenamente o governo. "A autorregulação é bem-vinda, mas não é suficiente.

O Banco Central vai regular as taxas cobradas dos consumidores e vamos fazer um projeto de lei para que o setor de cartões como um todo passe a ser supervisionado", diz Luiz Paulo Barreto, ministro da Justiça. Independentemente do que de fato venha a ser feito, o certo é que a transformação já promovida até agora tira o Brasil da companhia de Peru e Uruguai, as duas únicas nações em todo o mundo onde os lojistas são prisioneiros de uma única credenciadora da Visa. Em países como os Estados Unidos, os comerciantes podem solicitar o credenciamento da bandeira a 50 instituições diferentes.

Diante de toda essa movimentação, a Cielo e a Redecard estão focadas no que vem pela frente. Segundo dados da consultoria Economática, as duas empresas foram as mais rentáveis dos últimos três anos entre as companhias abertas brasileiras. Mesmo que ninguém acredite numa queda de rentabilidade imediata, a tendência é que as margens sejam pressionadas no longo prazo. Com o fim da exclusividade, é provável que uma parte dos lojistas que hoje têm duas "maquininhas" decida ficar apenas com uma. Por isso, estima-se que o número de máquinas em operação das empresas líderes saia dos atuais 2,3 milhões para 1,7 milhão em 2014.

Para tentar reduzir possíveis estragos, os executivos de Cielo e Redecard estão pensando em alternativas. A Cielo quer que as maquininhas gerem receita para seus clientes com a oferta de serviços financeiros. "Ao usar os aparelhos para pagamento de contas e recarga de celular, o estabelecimento comercial estará atraindo um fluxo maior de clientes para o local - e ainda ganha uma taxa por isso", diz Rômulo Dias, presidente da Cielo.


Esse projeto já começou a funcionar em grandes redes. Desde o começo do ano, os clientes dos supermercados Pão de Açúcar podem sacar até 100 reais nos caixas com o cartão Visa. A Redecard, por sua vez, vai intensificar sua estratégia de disputar mercados com credenciadoras regionais, como a do Banrisul, que atua principalmente no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina. Além disso, tanto a Cielo quanto a Redecard pretendem conquistar novos clientes no Centro-Oeste, considerado pelas duas empresas como a nova fronteira dos cartões no país.

"O brasileiro ainda usa muito cheque e dinheiro para pagar suas contas. Temos muito espaço para crescer", diz Roberto Medeiros, presidente da Redecard. No Brasil, as compras realizadas com cartões representam apenas 25% do consumo total - número bastante inferior aos 40% do mercado americano. Lá, 75% das famílias têm pelo menos um cartão.

Embora a disputa para valer só vá começar em julho, o duelo entre Cielo e Redecard já acontece nas propagandas. As duas companhias passaram a fazer campanhas institucionais próprias pela primeira vez no fim do ano passado. A Redecard aproveitou o silêncio da Cielo no período anterior à troca de nome para promover, por meio de comerciais, a imagem de "maquininha mais democrática do Brasil" - já que seus terminais aceitavam outras bandeiras de menor porte além da Mastercard.

A resposta da Cielo veio com o slogan "Nada supera essa máquina". Em março, a empresa estreou uma campanha publicitária com o nadador Cesar Cielo - a ideia foi associar- se aos conceitos de liderança e rapidez que o atleta representa. A Cielo, que antes tinha uma pequena verba destinada a propaganda e marketing, neste ano pretende investir 150 milhões de reais nessas áreas. Apesar dessa mudança e da perspectiva de mais competição, os varejistas estão impacientes. "Até agora, as empresas só ficaram no discurso", diz Roque Pellizzaro Junior, presidente da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas. "Mas é bom que fique claro: vamos usar nosso poder de barganha para ganhar descontos." Pela disposição de todos os envolvidos, 2010 será mesmo o ano zero da competição no Brasil.

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