Usina de Belo Monte: transmissão de energia comprometida por dois anos, no mínimo. (Divulgação/Exame)
Da Redação
Publicado em 13 de abril de 2016 às 05h56.
São Paulo — O setor elétrico brasileiro tem sido vítima de todo tipo de barbaridade: chega a dar dó. Quase sempre, o vilão é o governo, com sua onipresente capacidade de causar estragos onde encosta. Tudo começou em 2012, quando os sábios de Brasília decidiram mudar as regras de concessões do setor, causando uma confusão que não foi resolvida até hoje.
As estatais de energia quase foram à lona, assoladas também por um escândalo de corrupção conhecido como “eletrolão”. Em cima disso, faltou água para as hidrelétricas, obras fundamentais atrasaram e os preços dispararam. Foi, em suma, uma confusão.
Mas, mesmo em meio a tanto caos, uma companhia estrangeira está conseguindo se destacar por seu potencial negativo — a espanhola Abengoa, que, em poucos meses, passou de pilar a pária do setor elétrico brasileiro. A Abengoa chegou ao Brasil há duas décadas, mas começou mesmo a se destacar em 2012, quando deu a partida num método agressivo de conquista de leilões de transmissão de energia.
Para superar a concorrência, oferecia preços até 30% menores do que os propostos pelo governo nos leilões. O maior projeto conquistado com esse modelo foi a construção de uma das linhas (mais conhecidas como “linhões”, por razões óbvias) que ajudarão a levar a energia da usina de Belo Monte, no Pará, para o Sudeste.
Eram tantas frentes abertas que a Abengoa se tornou a recordista histórica no quesito quilômetros de transmissão em obras realizadas simultaneamente por uma mesma empresa — 6 240 quilômetros de linhas em 2015. Até que, no fim do ano passado, a empresa deu calote nos credores, parou as obras e demitiu mais de 3 000 funcionários.
Começava, ali, uma crise que, quatro meses depois, parece estar muito longe do fim. As origens do rolo da Abengoa remontam à sede do grupo, em Sevilha. Em suas demais operações, a empresa repetiu nos últimos anos a agressividade que demonstrou no Brasil. Parecia querer crescer a qualquer custo.
Entrou em mercados tão diversos quanto a dessalinização de água em Gana e tornou-se um dos maiores operadores de projetos de energia solar do mundo. Logo acumulou uma dívida equivalente a 59 bilhões de reais, duas vezes seu faturamento anual.
No ano passado, os investidores começaram a suspeitar que havia algo errado, e de fato havia: a Abengoa não conseguiu emitir mais papéis de dívida para se financiar e a Deloitte, sua auditora, notificou o grupo espanhol de que havia dúvidas sobre sua “viabilidade”. Foi quando a empresa pediu a suspensão dos pagamentos aos credores.
Por aqui, a Abengoa usou o dinheiro que tocaria as obras para pagar a demissão dos funcionários. Os fornecedores, sem receber, pediram a falência da empresa e a Abengoa contratou às pressas o escritório de advocacia Barbosa, Mussnich e Aragão e a consultoria financeira G5 Evercore para entrar em recuperação judicial, aceita pela Justiça brasileira no dia 22 de fevereiro.
Até o dia 23 de abril, a subsidiária terá de apresentar o quadro final de credores à Justiça e um esboço do plano de reestruturação. A dívida preliminar da empresa é de 3,1 bilhões de reais, mas bancos e fornecedores encontraram 250 “divergências” na papelada — o que significa que a dívida pode ser maior.
Um processo de recuperação judicial nunca é simples, mas o da Abengoa caminha para ter um nível de complexidade muito maior do que a média — mal começou e já está sendo motivo de ações judiciais. Os 1 200 credores temem que a subsidiária brasileira seja usada para resolver os problemas da matriz.
O plano de reestruturação apresentado na Espanha prevê carência de sete meses, desconto de 70% nas dívidas, conversão do restante em participação acionária e a venda de concessões detidas no mundo todo. O risco, segundo os credores locais, é a companhia vender uma empresa no Brasil para pagar os bancos e os investidores na Espanha. O primeiro a brigar foi o banco BTG Pactual.
Segundo o banco alega em uma ação judicial, a companhia desviava dinheiro. O BTG emprestou 375 milhões de reais para um projeto em Tocantins e diz que a Abengoa transferiu esse dinheiro para o caixa na Espanha (o banco perdeu em primeira instância e recorre). O administrador judicial da Abengoa no Brasil refuta esse risco.
“O dinheiro e os ativos que estão no Brasil não sairão daqui”, diz João Ricardo Viana, nomeado pela Justiça paulista. O BTG não comentou. O grupo de engenharia Tabocas entrou com uma ação exigindo 10% de participação acionária nas transmissoras Manaus e Norte Brasil, como previsto em contrato. O receio é que a empresa venda os ativos sem transferir as ações.
A Abengoa não deu entrevista. Em nota, diz que “os esforços no Brasil estão concentrados em minimizar os impactos da suspensão dos projetos. Em paralelo, a matriz na Espanha tenta preservar a atividade da companhia em todos os países.” O estilo de fazer negócios da Abengoa aumenta o potencial de estrago de sua crise. Os fornecedores eram pagos pelos bancos credores, e não pela empresa.
E só recebiam de quatro a seis meses depois da prestação do serviço (a média do mercado de construção são 45 dias). Ou seja, quando a empresa parou de pagar, em dezembro, o calote foi dado em serviços que haviam sido prestados em julho. Os quatro maiores fabricantes de estruturas metálicas do país uniram-se para tentar recuperar parte do dinheiro.
Sae Towers, Brametal, Incomisa e Tector (que pertence ao banco BMG) têm 140 milhões de reais para receber da Abengoa por material já entregue e um estoque de três meses de produção em suas fábricas. Dos cerca de 2 000 funcionários que as empresas de torres metálicas tinham, 800 já foram demitidos desde o início do ano.
“De um dia para o outro, veio a ordem de parar a fabricação, quando estávamos em plena carga”, diz Vagner Facin, diretor da Sae Towers e representante dos fabricantes. As empresas se programaram para mais um ano de produção só para atender a Abengoa.
Para as grandes multinacionais, o volume de crédito também é relevante — o conglomerado alemão Siemens tem 90 milhões de reais para receber, e a fabricante de componentes suíça ABB, 86 milhões. A solução que a Abengoa e o governo têm discutido resultará em uma empresa mais modesta, concentrada na execução de projetos de engenharia.
A Abengoa deve pedir aos credores um desconto da ordem de 35% e vender suas linhas de transmissão. A canadense Brookfield tem interesse em três projetos, e as brasileiras Taesa e Casa dos Ventos avisaram que darão lances se o governo aceitar pagar mais pelos contratos — o que a União diz que não vai fazer.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) se propõe a estender os prazos das concessões, isentando as multas por atraso. A solução favorita é a venda do pacote fechado: sete concessões em operação e nove em desenvolvimento para o mesmo comprador. “Assim, a compradora teria fluxo de caixa das transmissoras em operação para ajudar a financiar as obras”, diz Romeu Rufino, diretor-geral da Aneel.
A única empresa com disposição e capacidade financeira para um pacotão que demanda investimentos de quase 10 bilhões de reais é a chinesa State Grid — que saltaria de 5 800 para 16 300 quilômetros de linhas de transmissão no país, superando a Cemig, hoje a segunda maior do setor, atrás da Eletrobras. As negociações já começaram.
Os reguladores querem que, quando apresentado o plano de recuperação, no fim de abril, essa negociação esteja concluída. “Se não houver uma solução na forma e na velocidade que desejamos, podemos fazer uma intervenção administrativa”, diz Rufino. No limite, isso poderá significar o fim das concessões.
Nesse caso, o governo teria de refazer os leilões, os fornecedores ficariam mais tempo sem obras e os credores teriam de se engalfinhar por poucos ativos. Enquanto isso, a produção de energia que atenderia 700 000 pessoas — estimativa correspondente aos nove projetos da empresa — continuaria sem rede de escoamento. Esse é o melhor cenário para o fim da caótica crise da Abengoa.