Robô Glória: suporte a mulheres em situação de vulnerabilidade (Divulgação/Divulgação)
Repórter
Publicado em 30 de junho de 2023 às 06h00.
Última atualização em 30 de junho de 2023 às 17h37.
Enquanto grande parte do debate a respeito de inteligência artificial se concentra nos efeitos sobre os postos de trabalho ou em como ela pode tornar os negócios mais eficientes, uma importante contribuição da IA vem ganhando força fora dos holofotes: a de impulsionar ações de impacto social.
No início de julho, especialistas em inteligência artificial, pesquisadores, líderes empresariais, organizações sem fins lucrativos e governos se reuniriam no AI for Good Global Summit, em Genebra, na Suíça, exatamente para discutir e identificar aplicações práticas da IA para promover o bem. Preparada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela União Internacional de Telecomunicações (ITU, na sigla em inglês), a conferência tem como objetivo acelerar o progresso em direção aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) com a ajuda da tecnologia.
Estavam em pauta soluções para desafios como fome, igualdade de gênero, mudanças climáticas, gestão de desastres naturais, inclusão, saúde mental, produção de alimentos, educação, infraestrutura sustentável, economia circular e outras prioridades de desenvolvimento — tendo a IA como ferramenta para ampliar o alcance desses projetos.
O encontro global nasceu da plataforma AI for Good, parceria da ITU com 40 agências da ONU que conecta pessoas, empresas e entidades no mundo todo que estão usando inteligência artificial para transformação social. Em 2022, quase 300 projetos de IA foram executados pelo sistema da ONU, abrangendo todos os 17 ODS.
Ajuda psicológica para jovens
No Brasil, o potencial da tecnologia para o bem é cada vez mais explorado. “As aplicações de IA vêm crescendo em velocidade extraordinária e alcançam todas as indústrias, inclusive o ecossistema de impacto social”, comenta Felipe Matos, vice-presidente da Associação Brasileira de Startups (ABStartups).
A Weni é um exemplo. A startup alagoana, especializada em comunicação automatizada, está por trás do projeto Pode Falar, canal de ajuda online em saúde mental voltado para adolescentes e jovens de 13 a 24 anos, coordenado pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil.
Por meio do chatbot desenvolvido pela empresa, os jovens interagem com a personagem Ariel, que oferece uma escuta acolhedora de maneira anônima e gratuita. Depois de compartilhar suas demandas, os usuários passam por uma triagem automatizada do bot e então são apresentados às opções disponíveis no Pode Falar, conforme a complexidade das questões colocadas, que incluem conversar pelo chat com um atendente humano devidamente preparado para os primeiros socorros emocionais.
“A inteligência artificial tem papel fundamental para impulsionar projetos de impacto social. O processamento de linguagem natural (PLN), por exemplo, permite interagir de modo mais natural e de acordo com a realidade de cada um, o que facilita a comunicação e o compartilhamento de informações, tornando os programas sociais mais acessíveis e eficazes”, explica Bruno Amaral, CMO da Weni.
O Pode Falar foi lançado no começo de 2021 para lidar com o aumento dos casos de sofrimento mental em jovens e adolescentes durante o isolamento social. Na época, o foco era a percepção sobre a pandemia, mas hoje trabalha uma série de temas. Nesses dois anos, cerca de 90.000 jovens conversaram sobre saúde mental com Ariel, dos quais 18.000 iniciaram contato com o bot e em seguida receberam ajuda humana por livechat. Foram mais de 1 milhão de mensagens e 109 fluxos criados pelo script do software.
“Essa é a tecnologia que nos possibilita compreender, classificar e responder mensagens em grande escala, de forma humanizada. Sem a IA estaríamos muito limitados, tanto em termos de volume de mensagens quanto na precisão das respostas. E isso é crucial para o resultado”, afirma Amaral.
Atenção à saúde mental no trabalho
O aplicativo Ivi, criado pela empresa Hisnek, é outra amostra de uso de IA para promover a saúde mental. A ferramenta, alimentada por inteligência artificial, é voltada para o segmento corporativo, como apoio para o bem-estar emocional dos colaboradores, uma questão cada vez mais debatida no mundo todo.
Anualmente, 12 bilhões de dias de trabalho são perdidos devido à ansiedade e à depressão, custando à economia global quase 1 trilhão de dólares, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT). No Brasil, no ano passado, mais de 200.000 pessoas foram afastadas de suas atividades, via INSS, por transtornos mentais.
“Em 2018, já havia um grande número de afastamentos por algum tipo de doença psíquica (mais de 175.000 pessoas). Olhando o motivo, nos deparamos com diversos estudos da Organização Mundial da Saúde (OMS) comprovando a dificuldade de oferecer prevenção assertiva por causa do tabu relacionado ao tema nas empresas. Foi nesse contexto que a Ivi foi desenvolvida”, conta Carolina Dassie, CEO da Hisnek.
Usando inteligência artificial associada a protocolos clínicos, a ferramenta identifica o estado mental de cada funcionário que interage com ela, auxiliando na detecção e prevenção de transtornos mentais. Após o mapeamento, a Ivi ainda promove o cuidado ativo, oferecendo práticas para manter saudáveis os que já estiverem bem e para despressurizar os que apresentarem maior vulnerabilidade emocional. “Estes, além do acompanhamento digital, são guiados para psicoterapia online e outros cuidados específicos. Ou seja, usamos a tecnologia para escalar o cuidado sem deixar de oferecer o contato humano para os usuários que precisam desse acolhimento”, ressalta.
Após a pandemia, que desencadeou um aumento global de 25% nos casos de ansiedade e depressão, segundo a OMS, a procura pela Ivi cresceu bastante. Hoje, o aplicativo beneficia mais de 300.000 empregados de companhias de diversos segmentos.
Combate à violência contra a mulher
Também é um case de aplicação de IA em desafios sociais. O projeto nasceu em 2019, idealizado pela professora Cristina Castro-Lucas, da Universidade de Brasília (UNB), que percebeu que para lidar com a questão era preciso uma plataforma segura e simplificada, que possibilitasse o mesmo acesso a informação e apoio a todas as mulheres.
A docente então uniu empresas das áreas social e de tecnologia para desenvolver a Glória, uma inteligência artificial com a missão de educar e dar suporte a quem estiver em alguma situação de vulnerabilidade — além de coletar, analisar e disponibilizar dados sobre a violência de gênero, auxiliando na geração de conteúdo educacional e na melhora de políticas públicas.
O Instituto Gloria, ONG resultante da iniciativa, também integra outros projetos focados em soluções que têm a tecnologia como ferramenta para fazer o bem. Um deles é o programa gratuito Power4Girls, em parceria com a Embaixada e Consulados dos Estados Unidos, voltado para o empoderamento de meninas por meio da inovação.
Mais acessibilidade para deficientes visuais
A OMS constata que pelo menos 2,2 bilhões de pessoas no mundo convivem com algum tipo de deficiência visual — no Brasil, o IBGE conta quase 7 milhões de indivíduos cegos ou com baixa visão. Para oferecer mais autonomia e inclusão a essas pessoas, nasceu a Lysa, um cão-guia robô movido a inteligência artificial.
Sua idealizadora é a capixaba Neide Sellin, que era professora de uma escola pública e, ao observar os desafios de uma aluna deficiente visual para se locomover, quis fazer algo para mudar a situação. “O único apoio que ela tinha era uma bengala. E são apenas 150 cães-guias no Brasil inteiro, para milhões de pessoas que precisam. Isso me chamou muito a atenção”, conta.
Então, ali mesmo na escola foi sendo construído o protótipo da Lysa, com a ajuda da própria garota, que apontava as principais necessidades práticas. “A partir disso, fomos aperfeiçoando até chegar à solução que temos hoje”, diz Neide.
A IA é o ponto central do robô. É com aprendizado de máquina que ele reconhece os objetos ao redor e comunica para o usuário que item é aquele, desvia de obstáculos e ainda faz um mapa simultâneo do espaço. O cão-guia robô conta também com uma rede de sensores e câmeras, navegação por GPS, app mobile, dois motores e bateria com 8 horas de autonomia — tudo isso pesando apenas 2,5 quilos, sendo fácil de transportar e guardar.
A criação rendeu a Neide Sellin em 2021 um lugar entre as Top 12 Melhores Ideias do Mundo, entre os quase 5.000 inscritos no Slingshot, um dos maiores polos de inovação do planeta, em Singapura. “Usar a tecnologia para construir um mundo melhor não é mais um diferencial. É uma realidade, uma necessidade”, diz a dona da Lysa.
Apoio para quem transforma
Impulsionar a transformação social por meio da inovação é o DNA da Phomenta, negócio de impacto sediado em Campinas, no interior de São Paulo, que conecta investidores sociais a ONGs. A empresa nasceu em 2015, depois de seus fundadores identificarem nas organizações do terceiro setor da região ambientes pouco inovadores, o que influenciava diretamente a capacidade de captarem recursos e de se adaptarem aos novos tempos.
A fim de auxiliar as entidades a mudar esse cenário, a Phomenta leva conteúdo educacional gratuito sobre gestão, oferece programas de aceleração social e de voluntariado corporativo, faz assessoria filantrópica e ainda realiza o diagnóstico e a certificação de ONGs.
Para colocar tudo isso em prática, recursos de inteligência artificial são bastante usados no dia a dia, principalmente na otimização de tarefas operacionais, permitindo aos times que dediquem mais tempo às tarefas táticas e estratégicas. Há anos, um robô apelidado de Evandro, por exemplo, ajuda a gerar as certidões negativas das ONGs. “Em vez de uma pessoa pesquisar CNPJ por CNPJ a mão, para verificar aspectos de confiança e idoneidade, usamos um robô”, conta Daiany França, líder de parcerias e novos negócios da Phomenta. Mais recentemente, ferramentas de IA também foram adotadas em setores como marketing, projetos e gestão de pessoas.
Em 2022, a empresa fomentou mais de 3.000 ONGs na América Latina e na Índia. Atualmente conta com 23 programas e 17 clientes, alguns bem conhecidos, como Johnson & Johnson, Magalu, Instituto Malwee e Instituto Sabin.
França salienta que a tecnologia, por mais inteligente que seja, não promove o bem sozinha: para cumprir seu papel facilitador, ela precisa de propósito e ação. “Acreditamos muito na capacidade humana de mudar o mundo. Isso nem a mais potente IA vai fazer, pois a inteligência é artificial, mas a atitude é humana”, afirma.
Voltado também para deficientes visuais, além de pessoas analfabetas, o OrCam MyEye é um dispositivo de inteligência artificial que converte texto (impresso ou digital) em áudio e reconhece rostos, produtos, cores, cédulas de dinheiro e afins – em tempo real e sem conexão com a internet.
De tecnologia israelense, o aparelho tem apenas 22 gramas e pode ser acoplado a praticamente qualquer tipo de óculos. Diversos governos estaduais e municipais brasileiros estão adquirindo o equipamento para uso em instituições de ensino e bibliotecas. Na cidade de São Paulo, por exemplo, 55 bibliotecas, além do Centro Cultural São Paulo, possuem pelo menos uma unidade.
“Isso é revolucionário, pois permite a qualquer pessoa, que antes não tinha acesso à leitura, ler o livro que quiser”, disse a secretária de Cultura Aline Torres.