Francisco de Souza, agricultor: renda de 300 000 reais por ano com terras arrendadas para captar energia solar (Humberto Lopes/Exame)
André Jankavski
Publicado em 9 de maio de 2019 às 05h44.
Última atualização em 24 de julho de 2019 às 16h32.
Em Assú, no Rio Grande do Norte, as terras de Francisco de Souza nunca entregaram o prometido. Ao longo de toda a vida, o agricultor de 70 anos conseguiu tirar do solo árido não mais do que quantidades modestas de feijão, algodão, milho e melancia, além da criação de bovinos, que eram comercializadas no centro da cidade, a 40 quilômetros de distância. A propriedade de 400 hectares, amealhados por seu pai entre 1960 e 1980, não era muito diferente das terras dos vizinhos, que sofriam com a seca do sertão.
Nos anos 2000, uma nova esperança surgiu para a família. O petróleo enterrado no subsolo da região de que tanto se falava havia despertado o interesse da Petrobras, que passou a extrair o produto em pequenas fazendas e pagar royalties aos proprietários. Em 2010, a demarcação de um poço de petróleo chegou a ser feita nas terras de Souza, mas a exploração não foi levada adiante pela estatal. Há cinco anos, ele abandonou o campo e decidiu se mudar para o centro da cidade, onde os filhos já moravam e trabalhavam. Agora, uma nova oportunidade bateu à porta do agricultor potiguar: o sol que sempre castigou o solo vai gerar um rendimento que ele nunca teve.
Souza acaba de arrendar suas terras para geração de energia solar para a companhia goiana Pacto Energia, que atua nas áreas de transmissão, geração e comercialização. No contrato de 36 anos, a área de Souza, que fará parte do projeto Solaris junto com outros terrenos no município vizinho de Carnaubais, vai receber 400.000 painéis solares, capazes de produzir cerca de 130 megawatts por ano. O projeto Solaris deve gerar 1,3 gigawatt, o suficiente para abastecer mais de 1 milhão de residências.
Assim que as instalações estiverem prontas, o que está previsto para o final de 2023, Souza deve receber por ano cerca de 300.000 reais. Ao final do contrato, terá embolsado, em valores correntes, 9 milhões de reais, dinheiro que a agricultura nunca trouxe para ele. E há perspectiva de o contrato ser renovado por mais 25 anos. “Eu sinto falta de estar nas minhas terras, mas fico feliz com essa oportunidade que apareceu para nós”, diz Souza.
Assim como o agricultor, outros proprietários de terras vêm sendo abordados por empresas que querem desenvolver grandes usinas solares no Nordeste. Nos últimos quatro anos, a Pacto já arrendou 22.000 hectares na região, que tem um dos maiores índices de incidência solar do mundo. A área, que inclui terrenos em Pernambuco, Ceará e Piauí, permitiria instalações com 6 gigawatts de potência, o equivalente a quase a soma das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia.
Mas a meta da empresa é ainda mais ambiciosa. A Pacto planeja desenvolver usinas solares com potência equivalente a quase duas Itaipus até 2025, demandando 75 bilhões de reais em investimentos. “O planeta Terra recebe 8.000 vezes mais energia solar do que consome. Temos uma grande oportunidade na nossa frente”, diz Rodrigo Pedroso, presidente da Pacto Energia, empresa criada por ele em 2000. Hoje Pedroso tem 70% do capital da Pacto e o restante é do sócio Eduardo Constantino, da família dona da companhia aérea Gol.
Para os projetos saírem do papel, no entanto, é preciso antes ter a garantia de que alguém comprará a energia, seja no mercado livre, seja no regulado, que tem contratos de prazo maior e engloba as concessionárias. Em 2019, o governo já marcou dois leilões para contratar novos lotes de energia. Há outros dois certames agendados para 2020. Para os projetos concorrerem nos leilões, as empresas precisam ter a terra assegurada e um estudo de viabilidade que comprove o custo da energia a ser ofertada. Disso resulta uma corrida por áreas em todo o país.
Outra família que deve enriquecer com a energia do sol é a de Carlos Henrique Pinto, de Mossoró, também no Rio Grande do Norte. O pai de Carlos, Hugo Freire Pinto, dono de uma pequena rede varejista de tecidos e eletrodomésticos, foi acumulando terras de pouco valor na cidade de Carnaubais. A principal compra ocorreu em 1990, quando um comerciante ofereceu 300 hectares a Hugo. A área permaneceu abandonada durante quase 30 anos. Com a morte do patriarca em 2017, as terras ficaram para a família. “Meu pai nunca gostou de vender nada. Agora é como se tivéssemos ganhado na loteria”, diz Carlos Henrique Pinto.
Algo semelhante à corrida por terras com capacidade de abrigar parques solares já foi visto há alguns anos na expansão da energia eólica. O próprio Rio Grande do Norte fez parte desse movimento e, atualmente, é possível observar centenas de cataventos na paisagem ao percorrer as estradas do estado. O sol, no entanto, é visto como uma fonte ainda mais poderosa do que o vento no Brasil. Um estudo realizado pela consultoria americana Bloomberg New Energy Finance estima que o país deverá dobrar a capacidade de energia renovável instalada até 2040 para 316 gigawatts. Do total, 36% da eletricidade viria do sol, e isso exigiria investimentos de 97 bilhões de dólares até lá.
Segundo dados da Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica, o índice médio de incidência solar por aqui, com potencial de gerar 5,4 quilowatts-hora por metro quadrado, é muito superior ao de países como China, Estados Unidos e Alemanha, os atuais maiores geradores no planeta. O governo faz estimativas mais conservadoras. O Plano Decenal de Expansão de Energia, criado pelo Ministério de Minas e Energia em conjunto com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), aponta que a participação da modalidade sairá de menos de 1% hoje para 4% em 2027. “A energia solar já é bastante competitiva e o crescimento pode ser maior do que o previsto pelo governo, pois o mercado tem contratado acima das expectativas”, afirma Thiago Barral, presidente da EPE.
De fato, não falta apetite para as empresas que estão lançando projetos bilionários de usinas e parques solares. Além da Pacto, o grupo espanhol Solatio anunciou um empreendimento em São José do Belmonte, em Pernambuco, com potência de 1,1 gigawatt ao custo de 3,5 bilhões de reais. Dois terços devem ser financiados por bancos públicos brasileiros e o restante virá de aporte de capital dos espanhóis. No fim do ano passado, a italiana Enel iniciou a construção de um parque solar em São Gonçalo, no Piauí, que deverá receber 1,4 bilhão de reais em investimentos.
Já a brasileira Omega, que tem a gestora de recursos Tarpon como sócia, definiu a entrada no setor de energia solar com uma aquisição de 1,1 bilhão de reais por 50% do complexo fotovoltaico Pirapora, em Minas Gerais. E o investimento na área não deve parar por aí. A companhia enxerga espaço para que a tecnologia ainda incipiente em seu portfólio chegue a representar 30% dos negócios no futuro.
Esses projetos indicam a evolução veloz da energia solar no país. O Brasil saiu de uma potência instalada de meros 7 megawatts, em 2012, para 2 074 megawatts, em 2018. E nos próximos três anos já estão previstos 21 bilhões de reais em investimentos privados nos projetos contratados em leilões, valor que deve crescer ainda mais até lá. “Estamos de olho em novos leilões e projetos. Queremos fomentar uma fonte que vai ser cada vez mais competitiva”, diz Antonio Bastos Filho, presidente da Omega Geração.
Embora o futuro seja promissor, as contas mostram que a produtividade da energia solar ainda está abaixo da eólica e da hídrica. Por enquanto, o fator de capacidade médio da energia solar no Brasil, que representa a proporção entre a produção de uma usina e sua capacidade máxima (e que é o que paga as contas no fim do mês), é de cerca de 25%. No caso da eólica, o índice fica em torno de 50%; e no da hidrelétrica, em 60%.
A expectativa é que, à medida que as tecnologias para geração solar sejam aprimoradas, essa relação se torne mais vantajosa. Além disso, o preço médio da fonte solar fotovoltaica ainda é mais alto do que o da eólica. Nos últimos leilões, o valor alcançado pela energia fotovoltaica foi de cerca de 33 dólares por megawatt-hora, enquanto algumas áreas de eólica já conseguem alcançar preços de 16 a 20 dólares. “O mercado de energia solar faz muito mais sentido para quem quer investir em geração própria, pois consegue ter uma área de expansão bem maior do que a eólica”, afirma Bernardo Marangon, diretor-geral da consultoria Exata Energia.
Denominada geração distribuída, essa modalidade de gerar luz para consumo próprio — e, de quebra, economizar na conta de energia — tem chamado a atenção de algumas das grandes empresas do país e de fora. A própria Bloomberg New Energy Finance acredita que 95% da energia solar produzida no Brasil em 2040 será por meio de projetos fotovoltaicos de pequena escala: placas instaladas na cobertura de casas, fábricas, prédios e em áreas específicas para atender empresas que necessitem diminuir os gastos com eletricidade. “A energia solar apareceu como o novo eldorado no Brasil”, diz Miguel Setas, presidente da empresa portuguesa EDP. A companhia comandada por Setas estreou no mercado de energia solar no país em 2017 e separa 100 milhões de reais todos os anos para essa modalidade.
Os projetos estão saindo do papel: nos últimos dois anos, a EDP fechou contratos de 15 projetos de geração com clientes garantidos. O mais emblemático até agora foi assinado no segundo semestre de 2018, quando a companhia fechou um acordo para construção de uma área que terá 15.000 painéis solares, com capacidade suficiente para abastecer 88 agências do Banco do Brasil em Minas Gerais. Esse projeto deverá produzir uma economia de 82 milhões de reais para o banco estatal nos 15 anos seguintes.
A EDP também está próxima de anunciar um contrato com uma das maiores redes de shoppings do país. A CPFL Energia, que tem a estatal chinesa State Grid como controladora, decidiu apostar no mercado e criou a empresa Envo há dois anos. De lá para cá, a companhia investiu 22 milhões de reais em uma fazenda solar para a operadora Algar Telecom e 13 milhões de reais em um projeto de instalação de placas solares para o Centro de Abastecimento do Estado da Guanabara — nome de um mercado municipal na zona norte da cidade do Rio de Janeiro —, que também contemplou uma usina de cogeração a gás natural.
Para completar, a CPFL instalou sistemas solares em 231 residências no município paulista de Campinas. A ideia é ampliar a velocidade dos projetos, mas há barreiras. “É preciso melhorar a legislação para garantir o equilíbrio operacional e financeiro das empresas e de todos os envolvidos no mercado”, diz Fabiana Avellar, diretora de regulação da CPFL Energia.
Painéis subsidiados
Ainda há muitas dúvidas relacionadas à regulação da chamada energia solar distribuída. Uma das principais é em relação aos subsídios dados para consumidores que querem instalar painéis solares em casa ou até mesmo comerciantes. Atualmente, a regra diminui em até 90% o valor da conta de luz dos que optam por investir em painéis solares. A questão é que, na prática, o modelo criou uma distorção: todos os consumidores acabam financiando uma energia mais barata para um grupo seleto de brasileiros. E, embora já tenha havido uma queda de 50% no preço dos painéis, para obter o benefício é necessário ter 25.000 reais para instalar o sistema — um custo alto para a maioria da população.
A recuperação do investimento se dá, dependendo da região, de 30 a 63 meses, segundo um índice criado pela empresa de comercialização Comerc. Além disso, existe uma discussão sobre o pagamento pela utilização da infraestrutura das empresas e concessionárias na geração de energia distribuída. Como o uso do fio das distribuidoras também é feito pelos consumidores que produzem a própria eletricidade, a Agência Nacional de Energia Elétrica abriu uma audiência pública para discutir propostas que não lesem as distribuidoras. Afinal, o pagamento relacionado à utilização do fio só é cobrado na tarifa convencional, as distribuidoras poderiam ter um aumento de custo, ao mesmo tempo que as receitas cairiam.
É fato que o mercado ainda precisa amadurecer. O próprio Rio Grande do Norte é um exemplo. O estado tem uma das melhores incidências solares do país e um terço da população vive abaixo da linha da pobreza, mas é um dos locais menos vantajosos para ter painéis solares em casa. Os retornos de investimento para consumidores comerciais estão entre os mais lentos, segundo o índice da Comerc. São necessários quase 6,4 anos para o projeto se pagar, enquanto no Amazonas são necessários 4 anos e meio. Isso porque a tarifa potiguar é uma das mais baixas do Brasil.
Além de megawatts, a corrida pela energia solar deve trazer recursos para a Região Nordeste. A cidade de Carnaubais, que tem a maior parte das terras arrendadas pelo projeto da Pacto, deve receber cerca de 200 milhões de reais em impostos sobre as obras estimadas em 4 bilhões de reais. Esse valor virá durante o período de construção. O dinheiro vai ser muito bem-vindo após a queda de arrecadação com a redução de royalties do petróleo, depois de a Petrobras tirar o pé da exploração em terra firme e dar prioridade à extração em águas profundas.
O número de empregos também crescerá por ali. Dos 32.000 postos que podem ser criados para a construção do Solaris, parte deve ficar em Carnaubais, que tem mais de 30% dos 10.000 habitantes desempregados. É uma esperança para diversas famílias. É o caso do agricultor Arnaldo Dantas, de 52 anos. Dois de seus três filhos estão desempregados e ele, aposentado por invalidez, tenta ampliar a renda com a ajuda da mulher, Maria José, de 57 anos, também aposentada. Fazem queijos artesanais e vendem por 10 reais nas ruas de Carnaubais. “Faltam oportunidades na cidade e as pessoas se viram como podem”, diz Dantas. De repente, com a ajuda do sol que tanto castigou aquelas terras, a realidade da família Dantas e de tantas outras na região pode mudar para melhor.
*De Assú e Carnaubais (RN)