Revista Exame

A política é uma profissão?

Para tratar da saúde, as pessoas procuram um médico. Para construir, um engenheiro. Mas em política vigora a noção de que os amadores são melhores

Congresso Nacional: votar é apenas uma pequena parte das tarefas dos representantes eleitos (Marcos Oliveira/Agência Senado)

Congresso Nacional: votar é apenas uma pequena parte das tarefas dos representantes eleitos (Marcos Oliveira/Agência Senado)

DC

David Cohen

Publicado em 8 de novembro de 2018 às 05h36.

Última atualização em 8 de novembro de 2018 às 05h36.

Uma das principais marcas destas recentes eleições foi a revolta contra os políticos. Não é que não haja bons motivos para desconfiar de (vários) políticos. Mas a insatisfação popular parece ter contaminado, nos últimos tempos, toda a classe. Em grande medida, foi esse sentimento que elegeu para a Presidência Jair Bolsonaro (apesar de ser deputado há décadas, ele concorreu com o mote de fazer uma política diferente “disso que está aí”), como nos Estados Unidos já havia levado Donald Trump à Casa Branca e na França dado a vitória a Emmanuel Macron.

Há um certo paradoxo na produção de políticos antipolíticos. Não há médicos não médicos, nem pilotos de avião sem experiência em pilotar. A política pode ser mais bem exercida por amadores?

Estátua de Platão na Grécia: para ele, a política devia ser entregue a uma classe especial | Yannis Behrakis/Reuters

Foi assim nos primórdios da democracia, na Grécia antiga. Os representantes eram escolhidos por sorteio. Esse era um dos motivos por que o filósofo Platão menosprezava a democracia. Se a política é uma arte, dizia, então tem de ser feita por quem entenda dela. Para ele, ser feita por gente escolhida na infância, homens e mulheres, por sua coragem e inteligência, e treinada em ginástica, música, matemática, dialética, artes marciais e, finalmente, administração. Para evitar as tentações do poder, essa classe receberia um salário módico, não poderia ter propriedades, jamais poderia casar ou ter filhos (mulheres e crianças seriam de todo o grupo).

Para Aristóteles, os políticos formavam, junto com os professores, a profissão mais nobre de todas. Sua função seria moldar uma vida virtuosa para os habitantes da cidade. Não era esse o caso da democracia em sua época — e por isso também Aristóteles não era muito fã do regime. Mas a noção do “cidadão soldado” (que dá base ao direito de portar armas nos Estados Unidos) e do “cidadão político”, típica da democracia ateniense, inspirou o nascimento da democracia americana.

É uma noção persistente, mas equivocada. A Guerra da Independência Americana só foi decidida quando os insurgentes receberam treinamento e apoio do Exército francês. Da mesma forma, é ilusório esperar que um novato político traga eficiência ao sistema que ele próprio condena. A função de um deputado é bem mais complexa do que levantar a mão para votar projetos. É preciso elaborar os projetos, apreciar projetos de outros legisladores ou do Executivo, discutir uma ampla gama de assuntos, esmiuçar orçamentos, fiscalizar as ações do Executivo. Tudo isso requer conhecimento e experiência.

O aprendizado inclui negociação, capacidade de processar muita informação, construção de confiança entre os pares.

Nada disso se adquire da noite para o dia. Como disse o senador Renan Calheiros em recente entrevista à revista VEJA, não se forma um quadro como seu colega Romero Jucá em quatro ou oito anos. Claro, tanto Calheiros quanto Jucá suscitam desconfiança de uma grande parcela da população e a frase poderia ser tomada em sentido menos republicano. Mas ela condiz com uma palestra proferida pelo sociólogo alemão Max Weber em 1919. “Há duas maneiras de fazer a política ser uma profissão: ou se vive ‘para’ a política… ou, então, ‘da’ política”. As duas não são excludentes”, diz Weber. Ao contrário, dedicar-se integralmente à política e extrair dela seu sustento tornou-se a regra no Ocidente.

Viver “para” a política sem viver “da” política significaria restringir a atividade a pessoas de posses. Foi contra essa possibilidade que os franceses instituíram em 1848, junto com o sufrágio universal, os proventos legislativos. Da mesma forma, políticos que não entendam do assunto tornam-se joguetes nas mãos de poderosos — como acontecia no começo da história dos partidos, dominados por organizações como a Sociedade Tamany, de Nova York. Ou nas mãos de servidores concursados, não eleitos.

É claro que a profissionalização tem problemas. Os políticos tendem a formar uma casta, distante das preocupações do povo. Um estudo do ano passado na França mostrou que a parcela da vida consagrada à política entre os deputados franceses passou de 46% em 1978 para 68% em 2012. Essa distância do “mundo real” eleva a desconfiança — que no Brasil, com a crise econômica, atingiu níveis recorde. Como em quase tudo na vida, essa é uma questão de equilíbrio. De um lado, a profissão política tem uma curva de aprendizado. De outro, uma curva de corporativismo. Os eleitos vão ficando mais aptos, mas também adquirem doses crescentes de cinismo.

Por isso, a renovação deve ser bem-vinda. Mas isso é muito diferente de extirpar a classe política. As alternativas a ela podem ser bem piores. 

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