Dreamforce: mais de 75 especialistas em ética, inovação e IA reunidos (Jakub Mosur Photography/Divulgação)
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Publicado em 5 de outubro de 2023 às 06h00.
Última atualização em 13 de agosto de 2024 às 10h51.
Em uma atmosfera de floresta, com direito a cachoeira (uma analogia ao clima desbravador das empresas que buscam inovação) e “escoteiros” alegres dando as boas-vindas ao público, mais de 40.000 participantes de várias partes do mundo circularam entre os dias 12 e 14 de setembro pelo Moscone Center — maior complexo de convenções de São Francisco, na Califórnia (Estados Unidos) — para conferir de perto o Dreamforce, evento promovido há 21 anos pela Salesforce. “Toda a identidade é inspirada no tema dos parques nacionais dos Estados Unidos”, explica Daniel Hoe, vice-presidente de marketing da Salesforce para a América Latina. As trilhas, diz ele, fazem menção aos Trailblazers, como são chamados os “desbravadores” que usam os produtos e serviços da empresa de CRM para transformar seus negócios.
Não à toa, a inteligência artificial (IA), um dos maiores catalisadores dessas mudanças, foi o tema central do evento. Logo na abertura, Marc Benioff, CEO da Salesforce, apresentou novidades, como o Einstein Copilot, assistente de IA conversacional da companhia que, como o próprio nome diz, funcionará como um copiloto, ajudando as áreas de atendimento a levar soluções e ofertas customizadas a seus clientes. “O atendente terá agora um auxiliar na mesma tela [equivalente a um ChatGPT], para ajudá-lo na resposta”, explica Fabio Costa, CEO da Salesforce no Brasil. “Conseguimos trazer para a realidade uma interação funcional, sem que isso desse mais trabalho para o usuário.”
Outro anúncio foi o lançamento do Copilot Studio, que permitirá que os desenvolvedores criem aplicativos de IA generativos personalizados em low-code. O Slack também ganhou uma nova funcionalidade e passará a usar a inteligência artificial para sintetizar conversas. Sim, agora será possível receber, em texto, um resumo daquela reunião que poderia ter sido um e-mail.
Benioff também anunciou a nova geração do Einstein GPT, a inteligência artificial para CRM da Salesforce. A plataforma se integra agora a uma nova data cloud para permitir que as empresas unifiquem dados estruturados e não estruturados de clientes em vários pontos de interação (de telemetria a conversas no Slack).
A ideia é criar uma linguagem comum para que diferentes aplicativos possam se comunicar entre si. “Hoje, 71% das aplicações das empresas são desconexas. Com a data cloud na plataforma Einstein 1, as companhias vão poder criar aplicativos poderosos de IA e fluxos de trabalho que aumentem a produtividade, reduzam custos e proporcionem experiências incríveis ao cliente”, destacou Parker Haris, CTO e cofundador da Safesforce no palco do Dreamforce.
Apesar de todo o entusiasmo em torno da IA, uma coisa ficou bastante evidente ao longo do evento: a preocupação com a ética e a segurança no uso de dados. Benioff mencionou o lado interessante e obscuro de filmes de ficção científica, como O Exterminador do Futuro e Minory Report — este último, inclusive, roteirizado por Peter Schwartz, ex-funcionário da Salesforce. “Existem partes boas e partes não tão boas nesses filmes. Eu não sei quais partes delas queremos que aconteçam. Mas são os nossos valores que vão nos guiar nessa direção”, alertou.
Para Benioff, não há dúvidas em relação às oportunidades que a IA trará e quanto ela vai mudar tudo, para todos. Mas o executivo reforça que, assim como muitas novas tecnologias, pode haver uma “lacuna de confiança”.
Uma pesquisa da Salesforce mostra que, ao mesmo tempo que a IA é a prioridade número 1 dos CEOs, 52% deles não acreditam que ela seja segura e confiável. “Temos ilhas de informações por aí”, afirmou. “Muitos CEOs, CIOs e CTOs com quem conversei em todo o mundo dizem: ‘Bem, eu não estou pronto para entregar todos os meus dados para essas LLMs públicas [modelos de linguagem de grande escala]; então vou tentar tornar todos os meus sistemas mais inteligentes’. E isso é realmente interessante. Mas outro fato interessante é que essas coisas são boas, mas não são ótimas”, disse Benioff.
A inquietude do CEO da Salesforce faz sentido, uma vez que a companhia defende sistemas em códigos abertos (low code e no code), para ter a garantia de que dados desconexos e diferentes APIs, não importa os fornecedores, possam ser integrados.
“Queremos ter a certeza de que todas as aplicações na Salesforce estejam funcionando bem juntas.” E como fazer, então, para proteger os dados dos usuários? Benioff explica que a solução encontrada pela Salesforce foi a construção de uma camada própria de segurança para o Einstein (veja mais a seguir).
“Quando lançamos nossa IA, os dados já eram invisíveis para nós. Na época, tivemos, inclusive, de criar uma tecnologia para que os sistemas de machine learning que estávamos desenvolvendo fossem capazes de operar de forma autônoma, sem que olhássemos para eles”, destacou Benioff, que deixou um recado: “Não estamos olhando para os seus dados. Os seus dados não são nosso produto. Estamos aqui para fazer uma coisa: torná-los melhores, mais produtivos, mais eficazes, mais bem-sucedidos”.
O Dreamforce em números
Em sua 21a edição, a conferência se consagra como o maior evento de inteligência artificial do mundo
21 anos de evento
+ de 75 especialistas em IA, inovação e ética
+ de 1.500 sessões
+ de 40.000 participantes
+ de 100 países representados por participantes presenciais e online
“Uma figura proeminente no mundo da tecnologia e da inovação, com contribuições significativas para startups, aceleração de empresas e pesquisa em inteligência artificial.” Essa é a forma como o ChatGPT descreve Sam Altman, CEO da OpenAI. Mas a inteligência artificial criada pela empresa, e que tem capacidade de fornecer informações até setembro de 2021, ainda não tem resposta para tudo. Não sabe, por exemplo, o filme preferido de Altman. A resposta é bem previsível! Ele é fã de Her, longa de ficção no qual um humano se apaixona por uma inteligência artificial.
Mas, deixando os gostos pessoais de Altman de lado, vamos ao bate-papo dele com Benioff. Calmo, polido e com um semblante sem muita expressão, ele falou diante de um auditório lotado. Do lado de fora, milhares de pessoas acompanhavam, por telões, o que o homem no comando da empresa por trás do ChatGPT tinha a dizer.
Selecionamos, a seguir, alguns trechos desse bate-papo em que os executivos falaram sobre como o potencial ilimitado da IA pode impactar a humanidade. Confira.
1. A corrida pela IA
Quem sairá na frente na corrida pela melhor inteligência artificial? Para Altman, não há dúvida. “Eu realmente acho que os Estados Unidos serão os maiores líderes em inteligência artificial. Temos muitas coisas a nosso favor.”
2. O próximo passo do GPT-4
O desafio, diz Altman, é continuar tornando o ChatGPT melhor e mais robusto. “Também queremos garantir que seja realmente útil para as pessoas. Portanto, estamos agora profundamente envolvidos no mundo corporativo, tornando os sistemas muito seguros e altamente confiáveis para lidar com dados adequadamente, sem criar distorções.”
3. A Ética em jogo
Em relação aos valores fundamentais que a OpenAI vai estabelecer daqui para a frente, o executivo espera modelos mais inteligentes, capazes e personalizáveis. “Acreditamos que o bem superará, em ordens de grandeza, o mal”, disse. “Mas também queremos garantir que nossos modelos estejam alinhados e que as empresas possam confiar, a nós, os seus dados, e que sejamos muito claros sobre nossas políticas a respeito disso.”
4. Empresas de IA
Altman destacou a moda, agora, de as companhias se autointitularem empresas de IA. “Houve um momento depois que a App Store foi lançada, em que as empresas de software diziam ser companhia de dispositivos móveis. Mas nenhuma delas diz mais isso hoje, porque seria impensável não ter um aplicativo móvel.” O mesmo, diz ele, vai acontecer com a IA. “Será impensável não ter inteligência integrada em cada produto e serviço.”
5. Possibilidades infinitas
Muitas pessoas, diz Altman, usam chatbots para ajudá-las a programar. “Talvez elas digam: ‘ei, ele escreve apenas 5% do meu código’. E então isso aumentará para 50% e depois para 75%, 85% e 95%. E, em algum momento, não se tratará apenas de escrever mais códigos, mas sim de permitir que você faça coisas que você simplesmente não conseguia fazer antes”, afirma. “Eu creio que mudanças quantitativas levam a mudanças qualitativas. Portanto, se você tiver ferramentas melhores, em algum momento, você poderá fazer muito mais.”
6. Os riscos da IA
“Uma das coisas com as quais luto é que não vejo um mundo onde, se a IA for tão poderosa quanto pensamos, as pessoas possam causar danos significativos com ela”, disse Altman. “Não vejo um mundo em que tenhamos menos vigilância, e acho que isso seja algo bom.”
7. O impacto nos modelos de negócios
Altman destacou também como é gratificante ver o que está acontecendo, em especial, na área de educação, com “engenhosidade de professores e empreendedores que constroem empresas de edtech, e de estudantes, que encontram novas maneiras de usar o ChatGPT para aprender”. Outra área que se beneficia da IA, diz ele, é a de saúde. “Podemos imaginar um mundo em que esses sistemas nos ajudem a curar muitas doenças”, acredita. “Essa combinação entre um médico e uma IA, significa que podemos oferecer algo muito além do que imaginamos ser possível.”
8. Criatividade em jogo
O CEO da OpenAI também se mostrou surpreso com o potencial da IA na entrega de trabalhos criativos. Hoje, a empresa tem sob o seu guarda-chuva ferramentas como o Dall-E, um programa de IA que cria imagens a partir de comandos textuais.
“Se você tivesse me pedido para prever, há dez anos, a ordem em que a IA transformaria as indústrias, eu teria dito, primeiro, o trabalho manual; em segundo lugar, o trabalho cognitivo; e talvez, certamente por último, a criatividade.” Por fim, Altman lamentou a resistência da indústria da música em torno da IA.
“Essas empresas, simplesmente, não querem lidar com isso e estão focadas em outras áreas. E acho uma pena, porque, assim como estamos vendo na arte visual, acredito que a IA será uma ferramenta capaz de ampliar a capacidade dos seres humanos, e não de substituí-los.”
Para contrapor o ângulo otimista de Altman e de outros especialistas em IA, o Dreamforce convocou um time de artistas de peso, como o cineasta Spike Lee, que participou, ao lado da atriz Viola Davis, de um painel bem fervoroso sobre a batalha dos artistas em defesa da arte e da originalidade. Em julho deste ano, atores de Hollywood entraram em greve para reivindicar aumentos salariais e exigir regras mais claras para o uso da IA na indústria de entretenimento.
Viola criticou a forma como interesses comerciais se sobrepõem à arte. “O entretenimento é parte do que fazemos, mas toda essa conversa sobre IA é mais uma discussão de negócios. É uma discussão do tipo: ‘Vamos tornar isso mais rápido, mais rápido, para podermos economizar mais dinheiro’.
Sim, é disso que se trata. E não há espaço para a IA no que fazemos”, desabafou a atriz, reforçando o processo criativo exigido na construção de um papel. “Leva-se em torno de dois meses para criar um personagem. De cinco a seis meses para criar um cenário. Isso é a arte. Isso é o que faz você dizer ‘uau’.” E disse mais:
“Você não vai até alguém como Van Gogh e diz: 'Escuta, Vinnie, nós queremos substituir o que você faz por IA. Você pode deixar suas pinceladas de lado, pôr a tinta de lado. Você não precisa desses amarelos e tudo o mais. Podemos fazer isso muito rápido’. Você não faz isso.”
Spike Lee também trouxe à tona o receio de que a IA seja encarada como tentativa de substituir o fator humano. “A vida que esses artistas vivem é refletida no trabalho que eles fazem. E, se você não vivenciar essas coisas, não conseguirá alcançar a grandeza.
Porque você está colocando sua alma e seu coração em uma arte que uma máquina imunda não é capaz de fazer”, afirmou Lee, desculpando-se pela linguagem. “Sou do Brooklyn”, descontraiu. Sob aplausos, Viola fez mais um desabafo. “Meu medo é que as pessoas não se importam mais com a arte. Meu medo é o fast food”, disse a atriz.
Com a palavra, uma das mulheres mais influentes do mundo em IA
O Dreamforce levou ao seu palco principal mais de 70 pesquisadores em IA e especialistas em inovação e ética. Um dos grandes destaques foi a doutora Fei-Fei Li, codiretora do Institute for Human-Centered AI da Universidade Stanford. Cientista, imigrante e uma das pessoas mais influentes em inteligência artificial no mundo, segundo levantamento da revista Time, a cientista ficou conhecida mundialmente como uma das mentes por trás do ImageNet, um dos principais sistemas de IA para reconhecimento de imagens — episódio que ela mesma detalha em seu novo livro The Worlds I See: Curiosity, Exploration, and Discovery at the Dawn of AI, com lançamento previsto para 7 de novembro.
Entrevistada no Dreamforce pela CEO da revista Time, Jessica Sibley, a cientista explicou que, embora possa parecer contraditório, acredita no poder das máquinas para identificar o viés humano. Segundo ela, boa parte das imperfeições, das injustiças e dos preconceitos é causada por nós mesmos, sob uma perspectiva histórica e geracional. “As máquinas não podem imitar, amplificar ou até mesmo escalar nossos preconceitos humanos. Portanto, se usadas adequadamente, elas podem, inclusive, ajudar a mitigar isso”, acredita Fei-Fei.
A cientista deu como exemplo um levantamento feito anos atrás por pesquisadores do Google usando ferramentas de análise de imagens para avaliar por quanto tempo os atores e atrizes apareciam nos filmes. A conclusão, na época, diz a cientista, foi de que os homens tinham o dobro de tempo de exposição — e de fala — em relação às mulheres. “Essa é uma escala de dados que os humanos não poderiam fazer manualmente, mas que as máquinas podem fazer facilmente”, exemplificou Fei-Fei.
Sobre os perigos da IA, a cientista chamou a atenção para a forma como nos dirigimos à tecnologia. “Um dos meus medos em relação ao discurso público atual sobre IA é essa tendência de usarmos a inteligência artificial como sujeito. ‘A IA está fazendo isso conosco’; ‘a IA vai nos substituir’, e assim por diante. Na realidade, isso é fundamentalmente uma ferramenta; o controle dela está nas mãos das pessoas”, destacou Fei-Fei. “Portanto, toda a minha esperança no bom desenvolvimento da IA reside nas pessoas, e não na tecnologia em si.”
Sobre o temor em torno da perda de empregos, a cientista é categórica. “Ninguém se sente intimidado pela eletricidade. A IA é nova, é poderosa e parece esmagadora, mas todos têm um papel a desempenhar”, garante. E vai além: “Não importa qual seja o seu emprego, gradualmente ou até rapidamente, ele será impactado pela IA. Além da educação, é importante entender que tipo de papel ativo você pode desempenhar, seja em marketing, desenvolvimento de software, empreendedorismo, criação de empresas, edição, escrita, seja música. Essa ferramenta provavelmente vai impactá-lo, e talvez até capacitá-lo. Como podemos conhecê-la e usá-la? Há muitas oportunidades.”
O otimismo de Fei-Fei se estende às aplicações da IA. “Trata-se de uma ferramenta que podemos usar para melhorar nossos produtos, atender melhor nossos clientes, educar melhor nossos filhos, capacitar melhor nossos artistas. Mas, enquanto abraçamos essa ferramenta, temos de centrá-la em torno dos valores humanos em que acreditamos. Há tantas forças nos puxando, e todos nós teremos dúvidas, enfrentaremos momentos de desafios, mas tenho essa crença inabalável de que, se quisermos usar uma ferramenta da maneira certa, podemos encontrar um caminho.”
Como diz a canção Times Like This, do Foo Fights, banda escolhida para encerrar o Dreamforce, em tempos assim, muitos terão que aprender, constantemente, a viver de novo.
Em um encontro com jornalistas, Fabio Costa, CEO da Salesforce no Brasil, explicou em detalhes o que Marc Benioff quis dizer com a camada de proteção criada pela empresa de CRM para defender seus clientes do vazamento de dados (inclusive aqueles inseridos no ChatGPT). Quer saber o segredo? Fazer com que a OpenAI e outros modelos generativos (os chamados LLMs) simplesmente não memorizem aquilo que não devem. Como isso é possível? Pois bem. Esses modelos de linguagem se formam com base na junção e na organização de informações. Funciona assim: os algoritmos aprendem a ler o todo, e então passam a fazer correlações que os tornam capazes de formular uma avaliação probabilística em relação à próxima palavra de cada pergunta e de cada resposta. “Tudo o que você pergunta — e tudo o que ele responde — é absorvido”, diz Costa. Daí a sacada da Salesforce de codificar e decodificar todos os dados que forem sensíveis. “Essa camada vai tirar a identificação do cliente, por exemplo, mas de uma forma inteligente. Esse é o segredo. Ela faz isso sem que aquele prompt, ou seja, aquela pergunta, perca o significado para o modelo LLM, como é o caso do ChatGPT. Essa é a beleza da coisa: como você mascara a pergunta sem identificar o cliente e, ao mesmo tempo, sem fazer com que aquilo perca o sentido”, diz Costa.
Confira, em vídeo, os principais painéis e debates do Dreamforce.