Revista Exame

Os dilemas da Índia, por um Nobel de Economia

A Índia acaba de eleger um novo governo — e seu desafio é imenso. Os dilemas de uma nação promissora, mas que ainda sofre com seu passado colonial, são tratados no último livro do prêmio Nobel de Economia Amartya Sen. Leia a seguir um trecho da obra

Centro financeiro de Haryana, na Índia: o rápido avanço econômico do país não foi capaz de resgatar centenas de milhões da pobreza (Frederic Soltan/Corbis/LatinStock)

Centro financeiro de Haryana, na Índia: o rápido avanço econômico do país não foi capaz de resgatar centenas de milhões da pobreza (Frederic Soltan/Corbis/LatinStock)

DR

Da Redação

Publicado em 24 de junho de 2014 às 14h02.

 "As recentes conquistas da Índia moderna e democrática não são negligenciáveis. Elas têm sido amplamente reconhecidas em todo o mundo na última década. O feito da Índia como pioneira na governança democrática no mundo não ocidental é uma realização reconhecida.

Assim como é vista com sucesso a manutenção de um Estado laico, apesar dos desafios resultantes de sua população multirreligiosa e da história problemática da violência que cercou os dias de encerramento do Raj, o período de dominação britânica.

Mais recentemente, acrescenta-se o rápido crescimento econômico na última década, quando a Índia se tornou a segunda grande economia que mais cresce no mundo.

Apesar dessas grandes realizações, a celebrada glória da Índia nos dias de hoje ainda é incerta. É importante e urgente que sejam avaliados tanto as conquistas como os fracassos que caracterizam a Índia atual. Em que medida os antigos problemas foram erradicados? O que resta ser feito? Há novos problemas que a Índia tem de enfrentar?

Em perspectiva histórica, as conquistas são grandes, especialmente à luz do que o país era no momento da independência, em 1947. A Índia emergia, então, de um domínio colonial opressivo, imposto por governantes imperiais obstinados. Antes da saída de fato dos britânicos, houve pouca transferência de poder real e muitas dúvidas sobre a capacidade da Índia de transitar a uma democracia plena.

Outro desafio naquele momento era evitar o perigo de caos e conflito. A diversidade dentro da Índia — de muitas línguas, religiões e etnias — deu aos céticos um bom motivo para se preocupar com a possível ruptura do país na ausência de um governo autoritário.

A divisão caótica da Índia pré-independência em dois paí­ses — Índia e Paquistão — também forneceu justificativa à ansiedade de que uma fragmentação ainda mais violenta pudesse ocorrer. 

Ofuscando todas essas preocupações, a pobreza da Índia era talvez o fato mais bem conhecido sobre o país no exterior. Nos Estados Unidos e na Europa, os pais pediam a seus filhos pequenos para não deixar comida no prato por causa da necessidade moral de “pensar nos indianos que morriam de fome”.

E, de fato, em 1943, apenas quatro anos antes do fim do domínio colonial, a Índia enfrentou uma gigantesca fome na qual entre 2 milhões e 3 milhões de pessoas morreram. As condições de vida na época da independência eram terríveis para uma grande parte da população, e não apenas em anos de escassez de alimentos.

De acordo com estudos do economista americano Angus Deaton, ‘é possível que a privação na infância dos indianos nascidos em meados do século passado fosse tão grave quanto a de outros grandes grupos na história, retrocedendo até a Revolução Neolítica’.

Apesar desse começo sombrio, a Índia recém-independente passou a rea­lizar um conjunto de significativas conquistas políticas e econômicas. A decisão de passar diretamente de séculos de domínio colonial para um governo democrático, sem uma interrupção transitória, provou ser saudável e sustentável.

Na Índia, como em outras nações, a democracia no sentido pleno do termo (o ‘governo do povo, pelo povo, para o povo’) ainda não foi alcançada — há imensas lacunas a ser preenchidas. No entanto, depois de mais de 60 anos de governos eleitos pelo povo, a Índia conquistou seu status de liderança democrática.

Na frente econômica, apesar de o crescimento da economia ter sido muito modesto — cerca de 3,5% ao ano — por várias décadas após a independência, esse desempenho foi um avanço em comparação com o crescimento quase zero (e, às vezes, até negativo) dos dias coloniais.

Felizmente, as coisas mudaram nesse aspecto ao longo da última década, fazendo com que a Índia se transformasse em uma das economias de mais rápido crescimento no mundo. 

Recentemente, porém, tem ocorrido um abrandamento da taxa de crescimento da economia — em parte motivado pela recessão global. Mesmo com uma expansão do PIB inferior a 6% ao ano, o resultado é impressionante.

O potencial de crescimento continua robusto e será ainda maior se os ganhos econômicos forem bem aplicados para a melhoria de vida da população e para o desenvolvimento das liberdades e das capacidades humanas. Depois de 200 anos de dominação colonial, a economia parece estar pronta para remediar a notória condição de pobreza do país.

A Índia estabeleceu-se como um centro inovador não apenas na aplicação da tecnologia da informação mas também como o grande fornecedor de medicina moderna, barata e confiável para os pobres do mundo.

Como o jornal americano The New York Times expressou em um editorial recentemente, ‘a Índia é o maior fornecedor mundial de medicamentos genéricos, suas políticas potencialmente afetam bilhões de pessoas ao redor do mundo’. 

Juntamente com o progresso econômico, há também significativas mudanças sociais. A expectativa de vida na Índia atual (cerca de 66 anos) é mais do que o dobro da de 1951 (32 anos), a mortalidade infantil é de cerca de um quarto da registrada naquele ano (44 por 1 000 nascidos vivos hoje, em oposição a algo em torno de 180 em 1951) e a taxa de alfabetização feminina subiu de 9% para 65%.

Certamente, houve grandes melhorias nos níveis miseráveis de diversos indicadores sociais que prevaleciam no momento da independência da Índia. É também uma substancial conquista política o fato de muitos dos atuais líderes virem de grupos permanentemente negligenciados, como mulheres, minorias e castas desfavorecidas.

Restam ainda enormes desigualdades — e muitas divisões não diminuíram de forma alguma. Mas o fato de que algumas mudanças significativas ocorreram mesmo na arena política da hierarquia deve ser uma razão para acreditar que muito mais deveria ser possível.

O político e acadêmico Bhimrao Ramji Ambedkar, morto nos anos 50, defensor dos discriminados e crítico do sistema indiano de casta, insistia em afirmar que temos de buscar o poder de ‘educar, agitar e organizar’ — em vez de perder a fé nele.

Não é fácil negar o registro de conquistas da Índia, mas elas revelam toda a história recente do país? Uma imagem de um país avançando em marcha rápida rumo ao desenvolvimento com justiça não seria um retrato fiel do que realmente está acontecendo.

Na verdade, longe disso. Há deficiências e falhas importantes — embora grupos privilegiados e, sobretudo, a mídia festiva estejam inclinados a ignorá-las. É preciso reconhecer que a negligência desses problemas na argumentação pública é custosa, pois sua correção depende da compreensão das pessoas e da discussão dos sérios entraves que têm de ser resolvidos.

Uma agenda inacabada

Uma comparação entre China e Índia, duas grandes economias emergentes, mostra isso. Não apenas a distribuição de renda foi ficando cada vez mais desigual nos últimos anos (fato que afeta tanto indianos quanto chineses) mas também o rápido aumento dos salários reais na China, do qual as classes trabalhadoras se beneficiaram grandemente, não é correspondido de forma alguma pelos salários reais estagnados na Índia.

Não menos importante: a receita pública gerada pelo rápido crescimento econômico não foi usada para expandir a infraestrutura física de uma forma planejada (nesse aspecto, a China deixou a Índia bem para trás).

Também há uma contínua falta de serviços sociais essenciais (desde escolaridade e cuidados com a saúde até o fornecimento de água potável e esgoto) para uma grande parte da população.

Embora a Índia tenha ultrapassado outros países no progresso de sua renda real, ela foi ultrapassada em termos de indicadores sociais por muitas dessas nações, até mesmo dentro da própria região do sul da Ásia.

Apesar de a Índia ter significativamente alcançado a China em termos de crescimento do PIB, seu progresso tem sido muito mais lento do que o dos chineses em indicadores como longevidade, alfabetização, desnutrição infantil e mortalidade materna.

Há 20 anos a Índia ocupava a segunda posição em melhores índices sociais entre os seis países do sul da Ásia (Índia, Paquistão, Bangladesh, Sri Lanka, Nepal e Butão). Agora, aparece na segunda pior posição (à frente apenas do Paquistão, país sobrecarregado de problemas). A Índia foi subindo a escada da renda per capita, enquanto deslizava na ladeira dos indicadores sociais.

Não apenas a nova renda gerada pelo crescimento econômico tem sido desigualmente distribuída mas também os recursos recém-criados não têm sido adequadamente utilizados para aliviar as gigantescas carências sociais dos oprimidos da sociedade. As pressões democráticas foram em outras direções em vez de corrigir as principais injustiças que caracterizam a Índia contemporânea.

Há muito trabalho a ser realizado, tanto fazendo bom uso dos frutos do crescimento econômico para melhorar as condições de vida das pessoas como reduzindo as enormes desigualdades que caracterizam a economia e a sociedade indianas. Manter — e se possível aumentar — o ritmo do crescimento econômico terá de ser apenas parte de um compromisso maior, muito maior.”

Acompanhe tudo sobre:ÁsiaDesenvolvimento econômicoEconomistasEdição 1066ÍndiaLivrosNobelPrêmio Nobel

Mais de Revista Exame

A tecnologia ajuda ou prejudica a diversidade?

Os "sem dress code": você se lembra a última vez que usou uma gravata no trabalho?

Golpes já incluem até máscaras em alta resolução para driblar reconhecimento facial

Você maratona, eles lucram: veja o que está por trás dos algoritmos